Todo o espaço é uma linha no centro do átomo
a que se reduz cada homem, no seu canto de solidão. O horizonte,
que nos parece imenso com o seu desenho matinal,
cabe no fundo de um copo, quando bebemos o primeiro
café, em que os sonhos da noite se desfazem com um sabor
amargo a dia de inverno. E as nuvens descem ao nível dos olhos,
para que as metamos no dedal de uma costura de limites,
e o seu contorno sirva de renda à almofada do tédio. Então,
o ser soltar-se-á desta caixa vazia. Levará com ele o
horizonte e as nuvens; e só se nos agarrarmos a um fio de névoa
poderemos seguir o seu caminho, até esse rebordo de
falésia que o corpo não transpõe. Para lá dele, é o mar
da essência, com as suas marés de inquietação e de
certeza, e o abismo de dúvida que se abre quando o
temporal nos ameaça. Para trás, ficou a existência,
a vida, as coisas concretas, como os sentimentos e
as palavras que formam e transformam o que somos. Porém,
nesta fronteira, que fazer dos caminhos que se nos abrem?
Como avançar, sem barco ou rumo, em direcção a que
porto? E que nos espera no regresso ao lugar de
onde ninguém deve partir se não tiver, no bolso, a carta
de chamada, o endereço, a voz acolhedora de um deus?
nuno júdice
50 anos de poesia
antologia pessoal (1972-2022)
dom quixote
2024