20 setembro 2024

faiha abdulhadi / no meu país

 



 

 
Num país que não é o meu
O vento continua a soprar
As árvores dão frutos
O sol nasce
O rio corre
O mar ruge
A chuva cai
As pessoas continuam a rir
As pessoas continuam a errar
 
No meu país
O vento espera pela licença de soprar
O rio espera pelo direito de se derramar
O galo espera pela permissão de cantar
A chuva espera a regalia de chorar
 
No meu país
Só o coração bate sem autorização
Só a liberdade paira sem pré-aviso.
 
 
 
faiha abdulhadi
(palestina)
trad. regina guimarães
nervo/22
colectivo de poesia
setembro / dezembro 2024
 
 
 

 


19 setembro 2024

herberto helder / ode do desesperado

 
 
 
A morte está agora diante de mim
como a saúde diante do inválido,
como abandonar um quarto após a doença.
 
A morte está agora diante de mim
como o odor da mirra,
como sentar-se sob uma tenda num dia de vento.
 
A morte está agora diante de mim
como o perfume do lótus,
como sentar-se à beira da embriaguez.
 
A morte está agora diante de mim
como o fim da chuva,
como o regresso de um homem
que um dia partiu para além-mar.
 
A morte está agora diante de mim
como o instante em que o céu se torna puro,
como o desejo de um homem de rever a pátria
depois de longos, longos anos de cativeiro.
 
 
 
herberto helder
poesia toda
o bebedor nocturno (versões)
poemas do antigo egipto
assírio & alvim
1996




18 setembro 2024

gastão cruz / on melancholy




 

 
A beleza protege-te destrói-te
A ela te submetes dela vives
Ama-la sobre tudo Queres vê-la
nos corpos e nos versos dela filhos
 
Para que te proteja tu proteges
a pele em que se expõe húmida e íntima
e se te acorda acordas e repetes
os símbolos perdidos da poesia
 
Vês os versos Protege as cicatrizes
e as glórias da pele entristecida
Por elas vives e por elas vive
a beleza que crias e te cria
 
 
 
gastão cruz
campânula
os poemas (1960-2006)
assírio & alvim
2009



 

17 setembro 2024

armando silva carvalho / armas brancas

 
 
 
4.
 
Ouve os pigmentos bíblicos. Acorda
nas entradas da recriação estilística.
Númen – a ave de ouro que lambuza o bico
nos altares altíssimos entorna sobre ti
a grossa baba.
Teus périplos felizes debaixo da canção
recebes da condensação polifónica.
Saem do fogo as figuras da escrita
raízes de metal absorvem-te os sintomas.
A febre sopra sobre a tua carne
o linho para sempre inexpressivo.
Debruças-te no rebordo inflamado
e as vozes irrompem do tecido aberto.
És um gume sonoro sob o céu da boca
e escutas os irmãos que gritam da Colina
o Pai está morto alcançámos a Mãe
na encosta do Texto.
Óperas vocalizos o lavar dos dentes
árvores que sobem de feridas doidas
com o sabor dos trinos e a guerras dos dissídios.
À beira de um riacho serás o ancião que se ocupa das
sílabas. Sinecura sem cura os brilhos mitigados
afagam-te os artelhos
e gerações cansadas pesam nos teus ombros.
 
 
 
armando silva carvalho
armas brancas 1977
o que foi passado a limpo, obra poética
assírio & alvim
2007
 



16 setembro 2024

josé carlos ary dos santos / nocturno

 



 

 
Como se fosses noite e me atirasses
Uma corda de músculos e rosas.
Como se fosses noite e me deixasses
Deslumbrado com todas as sombras,
Com todos os silêncios,
Com todos os passeios de mãos dadas com o
                                               [impossível,
Com todos os minutos,
Os lentos, os belos, os terríveis minutos
Que se escoam com a angústia nas escadas.
Como se fosses noite e acordasses
Todos os olhares furtivos aos bancos vazios,
Todos os passos hesitantes que ninguém segue
Mas que deixam na rua deserta,
Na cidade ausente,
O arabesco triunfal dum arcanjo que passa,
O rasto vitorioso dum condenado que dança,
Rindo dos deuses que o julgaram.
 
Como se fosses noite e arrastasses
O tule hierático e vermelho da cauda de todas as
                                                      [prostitutas
Que desafiam o mistério, roçagando,
A ganga de todos os operários
Que sofrem o mistério, fumando,
O cabeção ingénuo de todos os marujos
Que sonham o mistério, ondulando,
A renda esfarrapada, esvoaçante e preciosa de todos
                                                         [os invertidos
Que inventam o mistério, desesperando,
E a carne, o sangue,
O cheiro a suor e o sono de todos os vadios,
De todo os ladrões que dormem nas esquadras
E têm o mistério, ousando!
 
Ah! Se tu fosses noite e me atirasses
A um poço de membros e de raiva
Onde plantas carnívoras crescessem
E onde Deus – se existisse – talvez me abrisse os
                                                           [braços!
 
 
 
ary dos santos
a liturgia do sangue (1963)
ary, obra poética
edições avante!
2017




15 setembro 2024

judite canha fernandes / abril



 

 
já estivemos apaixonados
por tua longa cabeça de orquídea
e pelo banho de gozo
de tuas construções aéreas.
 
abril
acho que nos esquecemos
das ruas sem vigia
da tua coragem.
dos corpos loucos               invencíveis
de astronautas apavorados com a carta astral da libertação.
 
entre nossas mãos de areia,
o pequeno umbigo de mareantes
que por um breve dia                fez corar de vergonha
todas as espingardas do mundo.
 
 
 
judite canha fernandes
carta de amor ao pesadelo
editora urutau
2023
 



 

14 setembro 2024

wladimir vaz mourão / galo branco

 



 

 
existia,
depois do mar,
das cidades poluídas e dos morros verdes,
um homem que me disse que não morreria.
 
lembro,
através das lembranças
que não são feitas de dias e anos,
mas de constelações,
desse homem
com um boné manchado de suor
e os olhos pequenos atrás dos óculos de sol.
ele me falava de nomes raros,
do prazer de beber a cachaça envelhecida
e dos desenhos que fazia –
gostei da cachaça, todavia não dos traços.
 
hoje,
aqui onde o negro e o branco
só se mesclam no céu –
recebo a notícia que
o corpo desse homem
aduba as canas-de-açúcar.
 
 
(para e., amigo que desenhou o rótulo da cachaça galo branco)
 
 
 
wladimir vaz mourão
para quem está se afogando, crocodilo é tronco
urutau
2023
 



13 setembro 2024

juan vicente piqueras / lembrança de amanhã

 



 

Ficámos nas fotografias todos juntos
(vivos, mortos, tanto faz, sim, todos juntos)
com caras de turistas já cansados
de percorrer cidades invisíveis
à procura das mães. O turismo
é uma forma alegre de orfandade.
Pagar para sofrer, perder países.
 
Fartos de tirar fotografias, epitáfios
a cores, e felizes por nada compreendermos,
regressamos a casa, já era tempo,
carregados de recordações e desejos
de não voltar a sair,
de nos deixarmos de viagens e histórias,
de não termos de percorrer o mundo
perguntando ao mundo,
com um mapa na mão,
onde estamos, quem falta, aonde vamos.
 
O caos tem um calendário rigoroso
e o nada, festas para guardar.
 
Trouxe-te estas fotografias, vê-as.
 
São uma estranha lembrança da morte.
 
 
 
juan vicente piqueras
o quarto vazio
trad. manuel alberto valente
assírio & alvim
2024




12 setembro 2024

cesário verde / deslumbramentos

 




 
 
Milady, é perigoso contemplá-la,
Quando passa aromática e normal,
Com seu tipo tão nobre e tão de sala,
Com seus gestos de neve e de metal.
 
Sem que nisso a desgoste ou desenfade,
Quantas vezes, seguindo-lhe as passadas,
Eu vejo-a, com real solenidade,
Ir impondo toilettes complicadas!...
 
Em si tudo me atrai como um tesoiro:
O seu ar pensativo e senhoril,
A sua voz que tem um timbre de oiro
E o seu nevado e lúcido perfil!
 
Ah! Como m’estonteia e me fascina...
E é, na graça distinta do seu porte,
Como a Moda supérflua e feminina,
E tão alta e serena como a Morte!...
 
Eu ontem encontrei-a, quando vinha,
Britânica, e fazendo-me assombrar;
Grande dama fatal, sempre sozinha,
E com firmeza e música no andar!
 
O seu olhar possui, num jogo ardente,
Um arcanjo e um demônio a iluminá-lo;
Como um florete, fere agudamente,
E afaga como o pelo dum regalo!
 
Pois bem. Conserve o gelo por esposo,
E mostre, se eu beijar-lhe as brancas mãos,
O modo diplomático e orgulhoso
Que Ana d´Áustria mostrava aos cortesãos.
 
E enfim prossiga altiva como a Fama,
Sem sorrisos, dramática, cortante;
Que eu procuro fundir na minha chama
Seu ermo coração, como um brilhante.
 
Mas cuidado, milady, não se afoite,
Que hão de acabar os bárbaros reais;
E os povos humilhados, pela noite,
Para a vingança aguçam os punhais.
 
E um dia, ó flor do Luxo, nas estradas,
Sob o cetim do Azul e as andorinhas,
Eu hei de ver errar, alucinadas,
E arrastando farrapos - as rainhas!
 
 
 
cesário verde
o livro de cesário verde e outros poemas
penguin clássicos
2024
 



11 setembro 2024

william carlos williams / retrato proletário

 
 
 
Uma jovem alta sem chapéu
de avental
 
Parada na rua com o cabelo
puxado para trás
 
Um pé com a peúga tocando
a calçada
 
O sapato na mão. Examinando-o
atentamente
 
Retira a palmilha
à procura do prego
 
Que a magoava tanto
 
 
 
william carlos williams
antologia breve
tradução josé agostinho baptista
assírio & alvim
1993
 



10 setembro 2024

wislawa szymborska / ao coração num domingo

 
 
 
Eu te agradeço, coração,
a diligência, porque te esfalfas
sem adulações, sem prémios,
numa inata urgência.
 
Tens setenta merecimentos por minuto.
Cada tua contracção
é como impulso a um barco
no mar alto
em rota de circum-navegação.
 
Eu te agradeço, coração,
por uma vez e outra ainda
me ires retirando de um todo
mesmo no sonho separada.
 
E zelas por que não sonhe um voo fundo
um voo tão fundo
que torne desnecessárias as asas.
 
Eu te agradeço, coração,
por mais uma vez ter acordado,
e por, embora domingo,
dia de descanso,
sob as costelas
ir o frenesim normal das sextas-feiras.
 
 
 
wislawa szymborska
paisagem com grão de areia
trad. júlio sousa gomes
relógio d’água
1998
 



09 setembro 2024

vergílio ferreira / de vez em quando

 
 
 
338 – De vez em quando descobre-se uma criação extraordinária nas artes e nas letras. Ou redescobre-se, que é o mesmo. Mas quantas obras ficaram desconhecidas para sempre. Quantos não escreveram obras-primas que ninguém leu ou se perderam. Ou as imaginaram mas nunca as realizaram para existirem. Ou morreram cedo, antes de as imaginarem. Há monumentos ao «soldado desconhecido». Mas fazer guerra não é o acto sublime do homem. Penso neles agora, e eles existem ao menos no meu pensamento. E aqui lhes ergo, na minha compaixão, o monumento que nunca ninguém se lembrou de lhes erguer.
 
 
vergílio ferreira
pensar
bertrand editora
2004





08 setembro 2024

bernardo soares / no alto ermo dos montes naturais, quando chegamos,

 
 
L. do D.
 
No alto ermo dos montes naturais temos, quando chegamos, a sensação do privilégio. Somos mais altos, de toda a nossa estatura, do que o alto dos montes. O máximo da Natureza, pelo menos naquele lugar, fica-nos sob as solas dos pés. Somos, por posição, reis do mundo visível. Em torno de nós tudo é mais baixo: a vida é encosta que desce, planície que jaz, ante o erguimento e o píncaro que somos.
 
Tudo em nós é acidente e malícia, e esta altura que temos não a temos; não somos mais altos no alto do que a nossa altura. Aquilo mesmo que calcamos, nos alça; e, se somos altos, é por aquilo mesmo de que somos mais altos.
 
Respira-se melhor quando se é rico; é-se mais livre quando se é célebre; o próprio ter de um título de nobreza é um pequeno monte. Tudo é artifício, mas o artifício nem sequer é nosso. Subimos a ele, ou levaram-nos até ele, ou nascemos na casa do monte.
 
Grande, porém, é o que considera que do vale ao céu, ou do monte ao céu, a distância que é diferença não faz diferença. Quando o dilúvio crescesse, estaríamos melhor nos montes. Mas quando a maldição de Deus fosse raios, como a de Júpiter, de ventos, como a de Eolo, o abrigo seria o não termos subido, e a defesa o rastejarmos.
 
Sábio deveras é o que tem a possibilidade da altura nos músculos e a negação de subir no conhecimento. Ele tem, por visão, todos os montes; e tem, por posição, todos os vales. O sol que doura os píncaros dourá-los-á para ele mais [que] para quem ali o sofre; e o palácio alto entre florestas será mais belo ao que o contempla do vale que ao que o esquece nas salas que o constituem de prisão.
 
Com estas reflexões me consolo, pois que me não posso consolar com a vida. E o símbolo funde-se-me com a realidade quando, transeunte de corpo e alma por estas ruas baixas que vão dar ao Tejo, vejo os altos claros da cidade esplender, como a glória alheia, das luzes várias de um sol que já nem está no poente.
 
14-4-1930
 
 
 
fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.II
ática
1982