13 setembro 2024

juan vicente piqueras / lembrança de amanhã

 



 

Ficámos nas fotografias todos juntos
(vivos, mortos, tanto faz, sim, todos juntos)
com caras de turistas já cansados
de percorrer cidades invisíveis
à procura das mães. O turismo
é uma forma alegre de orfandade.
Pagar para sofrer, perder países.
 
Fartos de tirar fotografias, epitáfios
a cores, e felizes por nada compreendermos,
regressamos a casa, já era tempo,
carregados de recordações e desejos
de não voltar a sair,
de nos deixarmos de viagens e histórias,
de não termos de percorrer o mundo
perguntando ao mundo,
com um mapa na mão,
onde estamos, quem falta, aonde vamos.
 
O caos tem um calendário rigoroso
e o nada, festas para guardar.
 
Trouxe-te estas fotografias, vê-as.
 
São uma estranha lembrança da morte.
 
 
 
juan vicente piqueras
o quarto vazio
trad. manuel alberto valente
assírio & alvim
2024




12 setembro 2024

cesário verde / deslumbramentos

 




 
 
Milady, é perigoso contemplá-la,
Quando passa aromática e normal,
Com seu tipo tão nobre e tão de sala,
Com seus gestos de neve e de metal.
 
Sem que nisso a desgoste ou desenfade,
Quantas vezes, seguindo-lhe as passadas,
Eu vejo-a, com real solenidade,
Ir impondo toilettes complicadas!...
 
Em si tudo me atrai como um tesoiro:
O seu ar pensativo e senhoril,
A sua voz que tem um timbre de oiro
E o seu nevado e lúcido perfil!
 
Ah! Como m’estonteia e me fascina...
E é, na graça distinta do seu porte,
Como a Moda supérflua e feminina,
E tão alta e serena como a Morte!...
 
Eu ontem encontrei-a, quando vinha,
Britânica, e fazendo-me assombrar;
Grande dama fatal, sempre sozinha,
E com firmeza e música no andar!
 
O seu olhar possui, num jogo ardente,
Um arcanjo e um demônio a iluminá-lo;
Como um florete, fere agudamente,
E afaga como o pelo dum regalo!
 
Pois bem. Conserve o gelo por esposo,
E mostre, se eu beijar-lhe as brancas mãos,
O modo diplomático e orgulhoso
Que Ana d´Áustria mostrava aos cortesãos.
 
E enfim prossiga altiva como a Fama,
Sem sorrisos, dramática, cortante;
Que eu procuro fundir na minha chama
Seu ermo coração, como um brilhante.
 
Mas cuidado, milady, não se afoite,
Que hão de acabar os bárbaros reais;
E os povos humilhados, pela noite,
Para a vingança aguçam os punhais.
 
E um dia, ó flor do Luxo, nas estradas,
Sob o cetim do Azul e as andorinhas,
Eu hei de ver errar, alucinadas,
E arrastando farrapos - as rainhas!
 
 
 
cesário verde
o livro de cesário verde e outros poemas
penguin clássicos
2024
 



11 setembro 2024

william carlos williams / retrato proletário

 
 
 
Uma jovem alta sem chapéu
de avental
 
Parada na rua com o cabelo
puxado para trás
 
Um pé com a peúga tocando
a calçada
 
O sapato na mão. Examinando-o
atentamente
 
Retira a palmilha
à procura do prego
 
Que a magoava tanto
 
 
 
william carlos williams
antologia breve
tradução josé agostinho baptista
assírio & alvim
1993
 



10 setembro 2024

wislawa szymborska / ao coração num domingo

 
 
 
Eu te agradeço, coração,
a diligência, porque te esfalfas
sem adulações, sem prémios,
numa inata urgência.
 
Tens setenta merecimentos por minuto.
Cada tua contracção
é como impulso a um barco
no mar alto
em rota de circum-navegação.
 
Eu te agradeço, coração,
por uma vez e outra ainda
me ires retirando de um todo
mesmo no sonho separada.
 
E zelas por que não sonhe um voo fundo
um voo tão fundo
que torne desnecessárias as asas.
 
Eu te agradeço, coração,
por mais uma vez ter acordado,
e por, embora domingo,
dia de descanso,
sob as costelas
ir o frenesim normal das sextas-feiras.
 
 
 
wislawa szymborska
paisagem com grão de areia
trad. júlio sousa gomes
relógio d’água
1998
 



09 setembro 2024

vergílio ferreira / de vez em quando

 
 
 
338 – De vez em quando descobre-se uma criação extraordinária nas artes e nas letras. Ou redescobre-se, que é o mesmo. Mas quantas obras ficaram desconhecidas para sempre. Quantos não escreveram obras-primas que ninguém leu ou se perderam. Ou as imaginaram mas nunca as realizaram para existirem. Ou morreram cedo, antes de as imaginarem. Há monumentos ao «soldado desconhecido». Mas fazer guerra não é o acto sublime do homem. Penso neles agora, e eles existem ao menos no meu pensamento. E aqui lhes ergo, na minha compaixão, o monumento que nunca ninguém se lembrou de lhes erguer.
 
 
vergílio ferreira
pensar
bertrand editora
2004





08 setembro 2024

bernardo soares / no alto ermo dos montes naturais, quando chegamos,

 
 
L. do D.
 
No alto ermo dos montes naturais temos, quando chegamos, a sensação do privilégio. Somos mais altos, de toda a nossa estatura, do que o alto dos montes. O máximo da Natureza, pelo menos naquele lugar, fica-nos sob as solas dos pés. Somos, por posição, reis do mundo visível. Em torno de nós tudo é mais baixo: a vida é encosta que desce, planície que jaz, ante o erguimento e o píncaro que somos.
 
Tudo em nós é acidente e malícia, e esta altura que temos não a temos; não somos mais altos no alto do que a nossa altura. Aquilo mesmo que calcamos, nos alça; e, se somos altos, é por aquilo mesmo de que somos mais altos.
 
Respira-se melhor quando se é rico; é-se mais livre quando se é célebre; o próprio ter de um título de nobreza é um pequeno monte. Tudo é artifício, mas o artifício nem sequer é nosso. Subimos a ele, ou levaram-nos até ele, ou nascemos na casa do monte.
 
Grande, porém, é o que considera que do vale ao céu, ou do monte ao céu, a distância que é diferença não faz diferença. Quando o dilúvio crescesse, estaríamos melhor nos montes. Mas quando a maldição de Deus fosse raios, como a de Júpiter, de ventos, como a de Eolo, o abrigo seria o não termos subido, e a defesa o rastejarmos.
 
Sábio deveras é o que tem a possibilidade da altura nos músculos e a negação de subir no conhecimento. Ele tem, por visão, todos os montes; e tem, por posição, todos os vales. O sol que doura os píncaros dourá-los-á para ele mais [que] para quem ali o sofre; e o palácio alto entre florestas será mais belo ao que o contempla do vale que ao que o esquece nas salas que o constituem de prisão.
 
Com estas reflexões me consolo, pois que me não posso consolar com a vida. E o símbolo funde-se-me com a realidade quando, transeunte de corpo e alma por estas ruas baixas que vão dar ao Tejo, vejo os altos claros da cidade esplender, como a glória alheia, das luzes várias de um sol que já nem está no poente.
 
14-4-1930
 
 
 
fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.II
ática
1982




 

07 setembro 2024

albert camus / os antigos filósofos

 



 
Os antigos filósofos (naturalmente) pensavam muito mais do que liam. Eis porque se agarravam tão tenazmente ao concreto. A imprensa modificou as coisas. Lê-se mais do que se pensa. Não temos hoje filosofias mas apenas comentários. É o que diz Gilson ao afirmar que à idade dos filósofos que se ocupavam de filosofia sucedeu a idade dos professores de filosofia que se ocupam dos filósofos. Há nesta atitude ao mesmo tempo modéstia e impotência. E um pensador que começasse o seu livro por estas palavras. «Tomemos as coisas a partir dos seus princípios» ficaria exposto aos sorrisos. Chegou-se ao ponto em que um livro de filosofia que fosse hoje publicado e não se apoiasse em nenhuma autoridade, citação, comentários, etc., não seria tomado a sério. E no entanto…
 
 
 
albert camus
primeiros cadernos
caderno n.º 4 janeiro 1942 / setembro 1945
trad. não disponível (antónio quadros?)
livros do brasil
1973



06 setembro 2024

antonia pozzi / precoce outono

 




 

 

O nevoeiro é de prata, apaga
as sombras dos pinheiros:
são maiores os jardins
ao amanhecer.
 
Uma folha do choupo secou,
morreu um ramo do castanheiro
no monte.
 
Medos que eles próprios desconhecem
dormindo no ar celeste:
este fim que regressa todos os anos,
que se renova todos os anos.
 
Como a última árvore do bosque,
o último homem já contou os mortos:
mas a sua morte apanha-o
ainda de surpresa.
 
 
 
antonia pozzi
morte de uma estação
trad. inês dias
averno
2019
 



05 setembro 2024

ernesto sampaio / tão pouco

 



 

Sondar
a linguagem das trevas
dormir
na neve dos limites
atravessar
flores distraídas
 
Decifrar
numa pedra fria
letras a arder
entrar
em comboios remotos
no olho gigante
das estações do fim do inundo
 
Ser
um sinal
lançado ao acaso na noite
deixar
noutra boca
o gosto de uma ausência
 
Temos tão pouco tempo
tão pouco sonho
tão pouco
 
 
 
ernesto sampaio
poesia
saldos
vs editor
2024



04 setembro 2024

billy collins / cupido

 
 
 
Acabado de vir da chuva,
perguntaste-me
quanto era um côvado.
 
Pensei
que o assunto em questão
fosse amor.
 
Mas era uma arca
que estavas a construir,
pequena, só para ti.
 
 
 
billy collins
a aranha irlandesa & outros poemas,
trad. francisco José craveiro de carvalho
do lado esquerdo
2023





03 setembro 2024

benjamin péret / a luz dentro do sol

 
 
A pequena nudez
aborrece-se no seu painço barco ruço
Deita-se como o mar
como os seus cabelos
Pede à chuva e à bonança
um ramalhete de serras aguçadas
e uma corda de evangelho
com altos círios caseiros
É duma juventude e duma beleza tal
que a fuligem grande marota
se abeira dela com as mãos de cisne
lavados pelo álcool limpo e pelos ventos
Mas a chuva sorri à bonança
que afaga o pêlo das montanhas
e ambos se entendem para afugentar os vales
que vivem de folhas e de poeira
de pedras e de paus
 
 
 
benjamin péret
sol de bolso
uma antologia de poemas
trad. regina guimarães
contracapa
2023
 



02 setembro 2024

robert desnos / pedra a pedra

 
 
 
Pedra a pedra e pé a pé
E coração a coração e cabeça a cabeça
Os dias bons passaram
Fio a fio e folha a folha
E um a um e só a só
Os dias são bons e não passam
Grão a grão corpo a corpo
E flanco a flanco e mão a mão
Só alguém muito astuto ganhará a batalha
Pedra a grão e só a um
E de mão no coração e cabeça no coração
O amor é vasto como o mundo.
 
 
 
robert desnos
luto por luto / poemas
trad. diogo paiva
sr teste edições
2022
 



01 setembro 2024

heiner müller / problema de visão

 
 
 
O meu amigo o pintor diz-me Se eu pinto
É porque não quero mais ver Viva a cegueira
É com os meus olhos que eu pago
Por cada imagem A minha morte era a minha infância
A câmara escura A luz debaixo da porta
Esperar a erupção Terror branco
Como pôr a minha noite ao abrigo do dia
A morte a figura imposta a vida as figuras livres
Deixa-me claridade viver na tua sombra
Privado de mim nas minhas zonas patogénicas
 
 
 
heiner müller
poemas (1949-1995)
trad. adolfo luxúria canibal
oficina noctua
2021