30 julho 2024

irene lisboa / saímos os três da casa de g..

 
 
SAÍMOS os três da casa de G.. E fomos esperar um autocarro. Ele disse-me: há-de vir a nossa casa. E ela ficou calada.
Têm uma casa nova, encantadora, oiço dizer, onde recebem a nata das letras, política e artes, onde deram e darão grandes saraus, etc.. Mas porque havia eu de ir a casa deles, se até aqui nunca de mim se lembraram? Conhecemo-nos há trinta anos, perto ou certo.
E nunca me retribuíram um certo convite, feito e aceite há dezoito, em que lhes ofereci um jantar de galinha… Ou então, ele mo quis pagar ontem: ao que ela ainda se recusou.
Nesse tal dia, ou noite, tão recuados! ela, preciosa, desdenhosa, dizia com aquela graça franca de quem se sente fora do seu ambiente, desnivelada: e eu que detesto canja! tudo o que cheire a galinha…
Uma mulher encantadora, natural, amável, sociável e caprichosa: com isto se diz tudo.
 
 
irene lisboa
1949 a 1957
solidão II
portugália editora
1966





 

29 julho 2024

ana hatherly / 463 tisanas

 
 
222
 
Estamos no campo. Vamos apanhar amoras. Vamos correndo, rindo como crianças. Quando regressamos a casa temos as mãos tingidas e feridas de mugir as silvas. Preparando as amoras para a sobremesa penso: eis o caviar silvestre!
 
 
ana hatherly
463 tisanas
quimera
2006
 



28 julho 2024

antónio reis / poemas quotidianos


 
41
 
Partem todos
 
o abandono os leva
um barco
o medo
 
Quando voltam
para nenhum de nós
é um segredo
 
 
antónio reis
poemas quotidianos
tinta da china
2017
 






 

27 julho 2024

eduardo pitta / foi longa e dura…

 
 
 
Foi longa e dura a batalha do silêncio
por mesas de café, improváveis becos,
pátios e terraços.
 
 
Nada mais havia para argumentar.
 
 
Decerto haveria gente capaz de supor
que seria fácil
fazer as malas aos sentimentos.
 
 
Os outros continuariam como dantes.
 
 
 
eduardo pitta
olhos calcinados
desobediência
poemas escolhidos
dom quixote
2011





 

26 julho 2024

andrea cohen / alameda

 



 

Concordou em vivermos
juntos só depois
 
de termos pendurado imagens
de lugares em todas
 
as paredes, de modo que houvesse,
para onde se olhasse,
 
uma ruela ou uma alameda
verde, um ponto de fuga para
 
em direcção a ele nos movermos.
 
 
 
andrea cohen
serenamente sobre as lanternas
trad. francisco josé craveiro de carvalho
do lado esquerdo
2024




25 julho 2024

alejandra pizarnik / quarto solitário

 
 
               
Se te atreves a surpreender
a verdade desta velha parede;
e as suas fissuras, rasgões,
formando rostos, esfinges,
mãos, clepsidras,
certamente virá
uma presença para a tua sede,
provavelmente partirá
esta ausência que te bebe.
 
 
 
alejandra pizarnick
antologia poética
los trabajos y las noches (1965)
tradução fernando pinto do amaral
tinta da china
2020
 



24 julho 2024

inger christensen / alfabeto

 
 
 
4
 
as diurnas pombas existem; os sonhadores, as bonecas,
os assassinos existem; as pombas, as pombas;
a neblina, a dioxina e os dias; os dias
existem; os dias e a morte; e os poemas
existem; os poemas, os dias, a morte
 
 
 
inger christensen
alfabeto
trad. ricardo marques
não (edições)
2024
 


23 julho 2024

paul auster / desenterrar

 



 

XV
 
Frágil amanhecer: a fronteira
da tua obscurecida lâmpada: ar
sem palavra: uma pendente
corola de cinza, arredondada em rosa.
Pões água na fervura
do mais pequeno
dos teus sóis: casca
de luz assoreada: a verdadeira semente
no pousio da tua palma, aprofundando-se
em torpor. Para lá desta hora, o olhar
ensinar-te-á. O olhar aprenderá
a desejar.
 
 
 
paul auster
poemas escolhidos
tradução de rui lage
quasi
2002
 





22 julho 2024

cesare pavese / não sabes das colinas

 
 
Não sabes das colinas
onde se verteu o sangue.
Todos nós fugimos
todos nós abandonámos
a arma e a honra. Uma mulher
olhava-nos enquanto fugíamos.
Só um de entre nós
estacou, de punho cerrado,
olhou para o céu vazio,
inclinou a cabeça e morreu
contra o muro, em silêncio.
É agora um farrapo de sangue
e um nome. Uma mulher
espera por nós nas colinas.
 
                 9 de Novembro de 1945
 
 
 
cesare pavese
a terra e a morte
virá a morte e terá os teus olhos
trad. rui caeiro
edições do saguão
2021
 




21 julho 2024

camilo pessanha / branco e vermelho

 



 

 

A dor, forte e imprevista,
Ferindo-me, imprevista,
De branca e de imprevista
Foi um deslumbramento,
Que me endoidou a vista,
Fez-me perder a vista,
Fez-me fugir a vista,
Num doce esvaimento.
 
Como um deserto imenso,
Branco deserto imenso,
Resplandecente e imenso,
Fez-se em redor de mim.
Todo o meu ser suspenso,
Não sinto já, não penso,
Pairo na luz, suspenso...
Que delícia sem fim!
 
Na inundação da luz
Banhando os céus a flux,
No êxtase da luz,
Vejo passar, desfila
(Seus pobres corpos nus
Que a distância reduz,
Amesquinha e reduz
No fundo da pupila)
 
Na areia imensa e plana
Ao longe, a caravana
Sem fim, a caravana
Na linha do horizonte,
Da enorme dor humana,
Da insigne dor humana...
A inútil dor humana!
Marcha, curvada a fronte.
 
Até o chão, curvados,
Exaustos e curvados,
Vão um a um, curvados,
Os seus magros perfis;
Escravos condenados,
No poente recortados,
Em negro recortados,
Magros, mesquinhos, vis.
 
A cada golpe tremem
Os que de medo tremem,
E as pálpebras me tremem
Quando o açoite vibra.
Estala! e apenas gemem,
Pavidamente gemem,
A cada golpe gemem,
Que os desequilibra.
 
Sob o açoite caem,
A cada golpe caem,
Erguem-se logo. Caem,
Soergue-os o terror...
Até que enfim desmaiem,
Por uma vez desmaiem!
Ei-los que enfim se esvaem,
Vencida, enfim, a dor...
 
E ali fiquem serenos,
De costas e serenos…
Beije-os a luz, serenos,
Nas amplas frontes calmas,
Ó céus claros e amenos,
Doces jardins amenos,
Onde se sofre menos,
Onde dormem as almas!
 
A dor, deserto imenso,
Branco deserto imenso,
Resplandecente e imenso,
Foi um deslumbramento.
Todo o meu ser suspenso,
Não sinto já, não penso,
Pairo na luz, suspenso
Num doce esvaimento.
 
Ó Morte, vem depressa,
Acorda, vem depressa,
Acode-me depressa,
Vem-me enxugar o suor,
Que o estertor começa.
É cumprir a promessa.
Já o sonho começa...
Tudo vermelho em flor...
 
               Clepsidra (1920)
 
 
 
camilo pessanha
edoi lelia doura
antologia das vozes comunicantes da
poesia moderna portuguesa
organizada por herberto helder
assírio & alvim
1985




20 julho 2024

jaime rocha / zona de caça

 



 

36.
 
É o tempo das cinzas. O tempo em que os pagens
procuram o rasto nos espelhos. O tempo do choro.
O corpo da mulher regressa para a luz e eles
caminham nessa direcção, indiferentes aos gestos
e à música. Os seus pés são feitos de chumbo, secam
junto aos muros para que as plantas cresçam e a
mulher se possa deitar enquanto a lua percorre
o seu ciclo de nudez. O cavaleiro contempla a morte,
uma árvore quieta entre dois cabeços, um pombo
com uma asa ferida, comendo a própria cria. Tudo
se resume a pedras deixadas por um deus anterior
e entre elas uma zona de uvas, um átrio, uma
morada onde ela poisa os cabelos sem se magoar.
 
 
 
jaime rocha
zona de caça
relógio d´água
2002
 



19 julho 2024

paul éluard / ainda escuto a voz

 



 

 

Ainda escuto a voz
 
Ama ama
Igual ao castanheiro te sentirás ficar
 
Floresta será a tua sombra
Na tua fronte poisam os pássaros e as estrelas
 
Só poderás dormir um sono todo outro
E outros olhos sem sono vigiarão nos teus
 
Ficarás como louco ao pensares na ventura
E tomarás nos braços as ramagens do sol
 
 
 
paul éluard
poemas políticos
trad. carlos grifo
editorial presença
1971



18 julho 2024

jack gilbert / além do prazer

 
 
 
Gradualmente percebemos que o que se sente não é tão importante
(por muito encantador ou cruel) como o que o sentimento contém.
Não o que nos acontece na infância, mas o que estava
dentro do que aconteceu. Ken Kesey sentado nos bosques,
atrás da sua cerca de motas esbranquiçadas, disse que quando
escrevia em ácidos, não estava a escrever sobre isso.
Usava o que escrevia como clarões para encontrar o caminho de volta
ao que conhecia então. A poesia regista
sentimentos, prazeres e paixão, mas a melhor procura
o que está além do prazer, fora do processo.
Não tanto a paixão quanto aquilo para que pode o fervor
ser um caminho. A poesia pesca-nos para encontrar um mundo
peça por peça, como a fotografia interrompe o fluxo
para nos dar tempo de ver cada coisa separada e suficiente.
O poema escolhe parte do nosso inesgotável fluir em diante
para conhecer o seu mérito com atenção.
 
 
 
jack gilbert
deixem-me ser ambos
trad. leonor castro nunes e marcos pereira
destrauss
2020