06 julho 2024

eugénio de andrade / as mãos e os frutos

 
 
 
VII. Noite Transfigurada
 
Criança adormecida, ó minha noite,
noite perfeita e embalada
folha a folha,
noite transfigurada,
ó noite mais pequena do que as fontes,
pura alucinação da madrugada
– chegaste,
nem eu sei de que horizontes.
 
Hoje vens ao meu encontro
nimbada de astros,
alta e despida
de soluços e lágrimas e gritos
– ó minha noite, namorada
de vagabundos e aflitos.
 
Chegaste, noite minha,
de pálpebras descidas;
leve no ar que respiramos,
nítida no ângulo das esquinas
– ó noite mais pequena do que a morte:
nas mãos abertas onde me fechaste
ponho os meus versos e a própria sorte.
 
 
 
eugénio de andrade
as mãos e os frutos
poesia
fundação eugénio de andrade
2000
 


05 julho 2024

antónio gancho / arco-íris

 
 
 
A luz arco-irizante dos céus
numa noite de trovoada
estabelece-se depois de dia
num mistério o arco-íris.
Tem sete cores o arco-íris
ou o arco-íris compõe-se de sete cores
vermelho, violeta, anil, roxo, lilás, castanho e amarelo.
Depois destas sete cores acabada a trovoada
a gente pode parar, tirar o chapéu, etc., etc.
Ou aussitôt que l’idée du déluge se fût rassise
un lievre s’arrêta dans les sainfoins et les clochettes mouvantes
et dit sa prière à l’arc-en ciel à travers la toile de l’araignée
E depois é assim. Oh les pierres précieuses qui se cachaient
no fim do mundo onde fica o arco-íris
les fleurs qui regardaient déjà.
No entrementes Madame établit un piano dans les Alpes.
Pois ou aussitôt que l’idée du delúge acabou
ou assim mal acabou a ideia que já não havia de haver dilúvio
é que então uma lebre parou de repente entre as papoilas no feno e entre as
papoilas ou as campainhas de feno e
disse a sua prece ao arco-íris feito e apareceu o arco-íris
ao qual então a lebre disse uma prece fez uma prece.
E chovia muito nesse dia.
 
 
 
antónio gancho
gaio do espírito (dez. 85 / Fev. 86 )
o ar da manhã
assírio & alvim
1995




04 julho 2024

gonçalo m. tavares / perceber os deuses

 
 
 
Perceber os deuses e a catástrofe; melhorar o dia, percebendo.
Aproveitar o chão para subir: nada acontece no céu até lá chegarmos.
Atar o invisível ao quotidiano com uma corda de estender a roupa:
devorar dias, oferecê-los sobre a mesa como um almoço. Fugir.
Não têm factos: s Deuses bebem apenas: fumam velhos, recém-
-nascidos: no céu os animais valem tanto como os reis.
Só o sangue importa; e o modo como se morre.
Os Deuses também morrem, mas neles, os ossos, desaparecem
de forma distinta.
Como se fôssemos água: alguém nos bebe.
 
 
 
gonçalo m. tavares
1 poesia
relógio d´água
2004
 



03 julho 2024

pat boran / desde que te foste embora…




 
os dias aprenderam uma linguagem nova,
os anoiteceres falam em línguas –
 
as vozes da chuva na janela do quarto,
do vento a sussurrar na rua varrida pela chuva,
 
os canos de casa a barulharem,
torneira atrás de torneira.
 
A perda descobre novas canções
em instrumentos antigos.
 
 
 
pat boran
o sussurro da corda
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2018




 

02 julho 2024

guillaume apollinaire / laços

 




 

 
Cordas feitas de gritos
 
Sons de sinos através da Europa
Séculos enforcados
 
Carris que amarrais nações
Não somos mais que dois ou três homens
Livres de todas as peias
Vamos dar-nos as mãos
 
Violenta chuva que penteia os fumos
Cordas
Cordas tecidas
Cabos submarinos
Torres de Babel transformadas em pontes
 
Aranhas-Pontífices
Todos os apaixonados que um só laço enlaçou
 
Outros laços mais firmes
Brancas estrias de luz
Cordas e Concórdia
 
Escrevo apenas para vos celebrar
Ó sentido ó sentidos caros
Inimigos do recordar
Inimigos do desejar
 
Inimigos da saudade
Inimigos das lágrimas
Inimigos de tudo o que eu amo ainda
 
 
 
guillaume apollinaire
poesia do século xx
(de thomas hardy a c. v. cattaneo)
antologia e tradução de jorge de sena
editorial inova
1978
 




01 julho 2024

john ashbery / a vida como um livro que se fechou

 



 

Apagámos todas as letras
E a afirmação mantém-se vagamente,
Como uma inscrição sobre a porta de um banco,
Com números romanos difíceis de decifrar,
E que, à sua maneira, talvez digam de mais.
 
Não estávamos a ser surrealistas? E porque é que
No bar estranhos observavam o teu cabelo
E as tuas unhas, como se o corpo
Não procurasse e encontrasse a posição mais confortável,
E a tua cabeça, essa coisa estranha,
Não ficasse cada vez mais problemática de cada vez que alguém fechava a porta?
 
Falámos um com o outro,
Levámos cada coisas só até onde podíamos,
Mas na ordem certa, e assim ela é música,
Ou qualquer coisa como música, falando da distância.
Temos apenas algum saber
E mais que a ambição necessária
Para o transformar num fruto feito de nuvem
Que nos protegerá até desaparecer.
 
Mas o seu sumo é amargo,
Não temos disso nos nossos jardins,
E tu devias subir até onde mora o saber
Com esse sarcasmo desprendido, para aí alguém
Te dizer de vez: não está aqui.
Só fica o fumo,
E o silêncio, e a velhice
Que fomos construindo como uma paisagem,
De alguma maneira, e a paz que bate todos os recordes,
E o cantar no campo, um prazer
Que há-de vir e não nos conhece.
 
 
 
john ashbery
uma onda e outros poemas
tradução colectiva / joão barrento
poetas em mateus
quetzal editores
1992
 




30 junho 2024

juan ramón jimenez / virá um dia um homem




 
109
 
Virá um dia um homem
que, lançado sobre ti, tente despir-te
do teu luto de ignota,
– palavra minha, hoje tão nua, tão clara!
Um homem que te creia
sombra feita água de delgado murmúrio,
a ti, voz minha, água
de luz tão simples!
 
 
 
juan ramón jimenez
antologia poética
tradução de josé bento
relógio d’ água
1992




 

29 junho 2024

jorge luís borges / o despertar

 
 
 
Entra a luz e ascendo inertemente
Dos sonhos para o sonho repartido
E as coisas recuperam o seu devido
E aguardado lugar e no presente
Concentra-se, opressivo e vasto, o vago
Ontem: as seculares migrações
Das aves e dos homens, as legiões
Que o ferro destruiu, Roma e Cartago.
Também regressa a quotidiana história:
Meu rosto, minha voz, receio e sorte.
Ah, se aquele outro despertar, a morte
Me apresentasse um tempo sem memória
Do meu nome e de tudo o que fui sendo!
Se nesse dia houvesse esquecimento!
 
 
 
jorge luís borges
obras completas 1952-1972 vol. II
o outro, o mesmo (1964)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998




28 junho 2024

júlio pomar / explicação aos que já sabem



 
 
          A invenção da palavra não tem data
nem número de registo.
A palavra inventa e inventa-se cada dia e é isso que
à falta de melhor se chama poesia.
 
“À falta de melhor” é critério
manhoso de quem não teve
sempre o necessário e passa o tempo
a busca-lo no que mais se aproxima.
 
Tiro de zagalote ou granada, a poesia mina
cada estilhaço
da via sacra dos significados
e não há contraceptivo que a proteja.
 
Aprendeu a poesia à mesa do bilhar
ao levar as bolas a tocarem-se
quando para isso
desejo e arte andarem de mão dada.
 
Troque-se as bolas por coisas ou palavras e
siga a banda! a compor com os limites porque tudo é música
e, afinados os trompetes, tire-se
de coisas e palavras
 
 
a mistura explosiva.
 
 
 
júlio pomar
poema TRATAdoDITOeFEITO
dom quixote
2004
 




 

27 junho 2024

josé pascoal / sal grosso

 
 
 
No movimento piscatório,
Os pescadores sofrem
De hipotermia.
 
Navalhas frias
Enterram-se nos ventres
Vazios.
 
E na terra parada
Há quem se aqueça
Com peixe assado
Na brasa.
 
 
 
josé pascoal
excertos excertos
editorial minerva
2018



26 junho 2024

anna akhmatova / quando morre um homem

 
 
 
Quando morre um homem
Todos os seus retratos mudam.
Os olhos observam-nos de forma diferente,
Os lábios sorriem com outro sorriso.
Dei por isto ao regressar
Do funeral de um poeta.
Constatei-o depois inúmeras vezes
E a minha suposição confirmou-se.
 
 
 
anna akhmatova
é por isso que a alegria é mais alta
poemas russos dos séculos vinte e vinte um
versões de luís filipe parrado
contracapa
2022
 



25 junho 2024

rené char / os primeiros instantes

 
 
 
Víamos correr diante de nós a água que aumentava. Apagava de repente a montanha, expelindo-se dos seus flancos maternais. Não era uma torrente que se oferecia ao seu destino, mas um animal inefável, em cuja palavra e substância nos tornávamos. Retinha-nos apaixonados sob o arco todo-poderoso da sua imaginação. Que intervenção teria podido constranger-nos? Já não se fazia sentir a exiguidade quotidiana, o sangue derramado fora restituído ao seu calor. Adoptados pelo espaço aberto, desbastados até ao invisível, éramos uma vitória que jamais teria fim.
 
 
 
         
rené char
a fonte narrativa (1947)
furor e mistério
trad. margarida vale de gato
relógio d’ água
2000




24 junho 2024

konstantinos kaváfis / longe

 
 
 
Quisera evocar esta lembrança…
Mas já se esvaiu… como se nada restasse –
porque jaz longe, nos primeiros anos de juventude.
 
Uma pele como que feita de jasmim…
Essa noite de Agosto – seria Agosto? – essa noite…
Apenas lembro por fim os olhos; eram, creio, azuis…
Ah, sim, azuis! – um perfeito profundo azul.
 
1914
 
 
 
konstantinos kaváfis
konstantino kaváfis, 145 poemas
tradução de manuel resende
flop livros
2017