12 maio 2024

elizabeth bishop / cidade nocturna

 



                                

[Do avião]
 
Nenhum pé o conseguia suportar,
os sapatos são demasiado finos.
Vidro partido, garrafas partidas
montes deles a arder.
 
Por cima daquelas fogueiras
ninguém conseguia caminhas:
aqueles ácidos flamejantes
e diversos sangues.
 
A cidade queima lágrimas.
Um lago enrugado
de um verde azulado
começa a fumegar.
 
A cidade queima o crime.
– Para a libertação do crime
o calor central
tem de ser assim intenso.
 
Linfa diáfana,
túrgido sangue vivo,
salpicam o exterior
com coágulos de ouro
 
para onde correm, fundidos,
nos subúrbios escuros,
verdes e luminosos
rios de silicato.
 
Uma lagoa de betume
um grande magnate
chorava sozinho,
uma lua escurecida.
 
Um outro exaltava
um arranha-céus.
Olhem! Incandescente,
os seus fios gotejam.
 
O incêndio
luta por ar
num terrível vácuo.
O céu está morto.
 
(Porém, há criaturas,
cuidadosas, suspensas.
Poisam os pés, caminham
Verde, vermelho; verde, vermelho.)
 
 
 
elizabeth bishop
geografia III
trad. maria de lourdes guimarães
relógio d´água
2006
 



11 maio 2024

emily dickinson / entre a forma de vida e a vida

 
 
 
Entre a forma de Vida e a Vida
É tão grande a diferença
Como o Álcool entre o Lábio
E o Álcool no Jarro
Este – excelente a manter –
Mas no desejo em êxtase
O sem rolha é melhor –
Eu sei porque provei
 
 
 
emily dickinson
duzentos poemas
trad. ana luísa amaral
relógio d´água
2014




10 maio 2024

louise glück / neve de primavera

 
 
 
Olha o céu nocturno:
há em mim dois eus, dois tipos de poder.
 
Estou aqui contigo, à janela,
a ver como reages. Ontem
a lua ergueu-se sobre a terra húmida no jardim.
Agora, a terra cintila como a lua,
matéria morta incrustada de luz.
 
Já podes fechar os olhos.
Ouvi o teu pranto, e o pranto antes do teu,
e o que eles exigiam.
Mostrei-te o que desejas:
não crença, mas rendição
à autoridade, o que depende da violência.
 
 
 
louise glück
a íris selvagem
tradução de ana luísa amaral
relógio d´água
2020




09 maio 2024

wislawa szymborska / poema para

 
 
Houve uma vez. Criou o zero.
Num incerto país. À luz de estrela
já porventura extinta. Entre datas
nas quais alguém jurou. Sem um nome,
polémico que fosse. Não deixando
abaixo do seu zero uma ideia simples e dourada
sobre a vida, que é aquilo que é. A lenda ao menos
de ter um dia acrescentado um zero à rosa
que colheu e feito um ramalhete.
De que, estando a morrer, partiu para o deserto
num camelo de cem bossas. De ter adormecido
à sombra das palmas da vitória. De que acordará
quando estiver já tudo contado
até ao mais pequeno grão de areia. Que homem este!
Interstício entre facto e pensamento
Passou despercebido. Refractário
a todos os destinos. Repelindo
cada silhueta que lhe dou.
Sobre ele se adensou um silêncio sem cicatriz na voz.
Transfigurou-se a ausência em horizonte.
O zero escreve-se sozinho.
 
 
 
wislawa szymborska
paisagem com grão de areia
trad. júlio sousa gomes
relógio d’água
1998




 

08 maio 2024

giórgios seféris / automóvel

 
 
Na estrada, abraço de compasso,
dois braços, um apelo,
dedos de vento no cabelo
mil milhas no regaço,
 
vamos os dois livres, sem cruz,
chibata no olhar langue;
são-nos enfeites alma e sangue,
e vamos nus! Nus! Nus!
 
Nesse leito de alto espaldar
de almofadas de penas,
ao longe fogem nossas penas,
qual peixe à beira-mar.
 
E nos dois braços estendidos,
apenas corpos, vamos,
pelos dois lados, em dois ramos,
corações repartidos.
 
De Strofi, 1931
 
 
 
giórgios seféris
a grécia de que falas…
antologia de poetas gregos modernos
trad. de manuel resende
língua morta
2021





 

07 maio 2024

ángeles mora / a rua em que tu vives

 
 
Não faço nada desde que te vi.
Os livros continuam abertos onde estavam.
Os cadernos em branco.
O relógio mudo.
O calendário, ai,
deteve-se num dia…
 
Não faço nada desde que te vi.
 
Mas os meus passos aprenderam
O caminho da tua casa.
 
 
 
ángeles mora
poesia espanhola de agora I
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997




06 maio 2024

gottfried benn / mãe

 
 
 
Trago-te em mim como uma ferida
que não se fecha em minha fronte.
Nem sempre dói. E não se apouca
ao coração por ela a vida.
Só fico às vezes cego de repente e sinto
sangue na boca.
 
 
 
gottfried benn
50 poemas
tradução vasco graça moura
relógio d’água
1998



05 maio 2024

jorge luís borges / talho

 
 
 
Mais vil do que um bordel,
O talho rubrica a rua como uma afronta.
Sobre o dintel
uma cega cabeça de vaca
preside ao conciliábulo
de carne berrante e mármores finais
com a majestade remota de um ídolo.
 
 
 
jorge luís borges
obras completas 1923-1949 vol. 1
fervor de buenos aires (1923)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998




04 maio 2024

joan margarit / a liberdade

 
 
É a razão da nossa vida,
dissemos, estudantes sonhadores.
É a razão dos velhos, matizamos agora,
a sua única e céptica esperança.
A liberdade é uma estranha viagem.
Começa nas praças
De touros com cadeiras na areia
nas primeiras eleições.
É o perigo, de madrugada, no metro,
são os jornais ao fim do dia.
a liberdade é fazer amor nos parques.
A liberdade é quando começa a madrugada
de um dia de greve geral.
É morrer livre. São as guerras médicas.
As palavras República e Civil.
Um rei partindo de comboio para o exílio.
A liberdade é uma livraria.
Andar indocumentado.
As canções proibidas.
Uma forma de amor, a liberdade.
 
 
 
joan margarit
misteriosamente feliz
trad. miguel filipe mochila
flâneur / língua morta
2020




03 maio 2024

fernando echevarría / na primavera

 



 

 
Na primavera o ritmo é doloroso.
Desprende-se do peso enegrecido
da letargia. Para trazer o sono
à fulgência da enxúndia. Ao gordo limo
de onde o incremento recôndito dos pomos
há-de extrair o seu licor polícromo.
De aí que, enquanto se enresinam troncos,
ceda a matéria à densidão do brio
e rebente por onde a delgadez dos poros
melhor se afaz à floração do brilho.
Por isso a primavera espanta. Todo
o arranque de sangue traz consigo
essa cesura de depois de o fogo
deixar o espaço para a paz do espírito.
 
 
 
fernando echevarría 
geórgicas
afrontamento
1998





02 maio 2024

lawrence ferlinghetti / era um rosto que a escuridão podia matar

 



8
 
Era um rosto que a escuridão podia matar
                                                      num ápice
     um rosto que tão facilmente se magoaria
                                         com o riso ou a luz
 
 
          «Nós pensamos de aneira diferente à noite»
                                                        disse-me ela uma vez
recostando-se languidamente
 
 
                                    E era capaz de citar Cocteau
 

«Sinto que há um anjo em mim» dizia ela
                                          «que estou constantemente a escandalizar»

 
          Então sorria e desviava o olhar
                    acendia-me um cigarro
                                                     suspirava e erguia-se
e espreguiçava
                      a sua doce anatomia
 
                                                    descaía um collant
 
 
 
lawrence ferlinghetti
poemas de pictures of the gone world (1955)
uma coney Island da mente
tradução margarida vale de gato
antígona
2024
 



01 maio 2024

josé saramago / não me peçam razões

 




 

 
Não me peçam razões, que não as tenho,
Ou darei quantas queiram: bem sabemos
Que razões são palavras, todas nascem
Da mansa hipocrisia que aprendemos.
 
Não me peçam razões por que se entenda
A força da maré que me enche o peito,
Este estar mal no mundo e nesta lei:
Não fiz a lei e o mundo não aceito.
 
Não me peçam razões, ou que as desculpe,
Deste modo de amar e destruir:
Quando a noite é de mais é que amanhece
A cor de primavera que há de vir.
 
 
 
josé saramago
os poemas possíveis
porto editora
2018



30 abril 2024

natália correia / verdadeira litania para os tempos da revolução





 

                               Burgueses somos nós todos
                               ó literatos
                               burgueses somos nós todos
                               ratos e gatos
 
                               Mário Cesariny

 
 
Mário nós não somos todos burgueses
os gatos e os ratos se quiseres,
os literatos esses são franceses
e todos soletramos malmequeres.
 
Da vida o verbo intransitivo
não é burguês é ruim;
e eu que nas nuvens vivo
nuvens! o que direi de mim?
 
Burguês é esse menino extraordinário
que nasce todos os anos em Belém
e a poesia se não diz isto Mário
é burguesa também.
 
Burguês é o carro funerário.
Os mortos são naturalmente comunistas.
Nós não somos burgueses Mário
o que nós somos todos é sebastianistas.
 
 
 
natália correia
inéditos (1959/61)
antologia poética
dom quixote
2018