25 dezembro 2023

alberto caeiro / o mistério das coisas, onde está ele?

 
 
XXXIX
 
O mistério das coisas, onde está ele?
Onde está ele que não aparece
Pelo menos a mostrar-nos que é mistério?
Que sabe o rio e que sabe a árvore
E eu, que não sou mais do que eles, que sei disso?
Sempre que olho para as coisas e penso no que os homens pensam delas,
Rio como um regato que soa fresco numa pedra.
 
Porque o único sentido oculto das coisas
É elas não terem sentido oculto nenhum,
É mais estranho do que todas as estranhezas
E do que os sonhos de todos os poetas
E os pensamentos de todos os filósofos,
Que as coisas sejam realmente o que parecem ser
E não haja nada que compreender.
 
Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos: —
As coisas não têm significação: têm existência.
As coisas são o único sentido oculto das coisas.
 
s.d.
 
 
 
alberto caeiro
o guardador de rebanhos
poemas de alberto caeiro
fernando pessoa
ática
1946



24 dezembro 2023

josé de almada negreiros / não te desejo mal nenhum a ti

 



 
Não te desejo mal nenhum a ti
mas ao mundo
que deixa passar tanto engano,
que o permite
que o consente
que o aproveita
e tão imprudente
como se a natureza pudesse fazer o mesmo!
Não, não e não
no circo não há milagres
nenhum palhaço atravessará o círculo
sem rasgar o papel!
É o mistério deste meu amor por ti
que põe a viveza nos meus sentidos
e eu não sou louco a ponto de romper o mistério
a troco de paz para a minha inquietação.
Sou do amor
pertenço-lhe
obedeço-lhe a todas as formas que tomem as suas ordens
e conheço-lhas como aos meus dedos.
Não sou como tu, Amigo
que deixaste o mundo equivocar os teus sentidos
e pôr-te arremedos de sentidos
para mistificar a mímica.
Amo-te, Amigo
e não te posso ajudar a teres-te
como eu te tenho no meu amor por ti.
Atrapalhou-se-te a vida nas tuas mãos
mas tu lá estás embrulhado na tua atrapalhação
e os curiosos em roda
são os únicos que têm a certeza de te safares daí.
 
 
 
josé de almada negreiros
poemas
assírio & alvim
2017



23 dezembro 2023

juan luis panero / por vezes, muito raramente

 
 
Quando pouco na vida nos consola
do tempo, esse verdugo indiferente,
por vezes, muito raramente, na monotonia da noite,
entre repetidos sonhos, surge uma imagem
que reflecte o desejo que deixamos aí
e um rosto – a sua remota aparência – reconstrói
um intenso instantâneo da felicidade.
Quando tão misterioso privilégio nos chega,
acordar em seguida é viver o inferno:
não aquele jogo grotesco de chamas e demónios,
mas o demónio da luz de novo,
o fogo do primeiro cigarro.
 
 
 
juan luis panero
poemas
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2003
 



22 dezembro 2023

josé carlos barros / longe de casa

 




 

A Princesa
lava tachos e descasca batatas
das dez e meia às
quatro da tarde
e das seis às onze da noite.
Nos intervalos
varre o chão
e limpa as bancadas
da cozinha. Chega
a nem ter tempo
de usar a coroa.
 
 
 
josé carlos barros
o uso dos venenos
língua morta
2018
 



21 dezembro 2023

gonçalo m. tavares / os prédios dos pobres

 
 
O cão não urina junto à árvore
como já vi mulheres de banqueiros fazerem.
As duas patas de trás paralelas,
o rabo encostado ao tronco para evitar a queda,
e depois o mijo: quente, rápido e amarelo
como a cor dos prédios dos pobres
assinalados com a subtileza possível
          pelo arquitecto.
 
 
 
gonçalo m. tavares
1 poesia
relógio d´água
2004
 



20 dezembro 2023

tomás sottomayor / a tua voz

 





 
A tua voz – uma flor
Na noite sob o meu peito.
A tua voz – como leite
Ou a ideia apenas
Do que não tem nome.
 
Fermenta, singelo
Um rebento na escuridão.
 
 
 
tomás sottomayor
auberge ravoux
língua morta
2021
 




19 dezembro 2023

luís filipe parrado / no catálogo do mundo

 
 
 
De todos os temas à disposição no catálogo do mundo,
deste mundo, não de outro qualquer,
o que mais me arrebata é
o das flores de plástico. São todas muito doces
e muito tristes,
nos seus vasos de porcelana,
um tema sem dúvida fascinante.
Para começar,
pensem só no que seria a nossa vida se desconhecêssemos
o calor, a sede, o frio.
 
 
 
luís filipe parrado
roma não perdoa a traidores
língua morta
2021
 



18 dezembro 2023

josé miguel silva / nocturno

 




 

A arte já sabemos nasce
da imperfeição das coisas
que trazemos para casa
com o pó da rua
quando a tarde finda
e não temos água quente
para lavar a cabeça.
 
Tentamos regular
com açudes de orações
o curso da tristeza
mudamos de cadeira
e levamos a note
a dizer oxalá
como se a palavra
praticasse anestesia.
 
 
josé miguel silva
ulisses já não mora aqui
língua morta
2014



17 dezembro 2023

konstandinos kaváfis / trouxe à arte

 
 
Dou-me ao enleio aqui.     Desejos e sensações
trouxe à Arte –     umas meio vistas,
caras e linhas;     de inacabados amores
umas memórias incertas.     A ela me deixe.
Sabe formar     Figura da Beleza;
quase imperceptível     completa a vida,
combina impressões,      combina os dias.
 
 
 
konstandinos kavafis
os poemas
I (1919-1932)
trad. joaquim manuel magalhães e
nikos pratsinis
relógio d´água
2005





16 dezembro 2023

heiner müller / welcome to santa monica

 
Um homem a morrer entra no salão do hotel
Onde outros moribundos matam o seu tempo
Curto ou longo entre nascimento e morte
A falar de negócios ou sós com um copo
No qual habita o esquecimento o recém-vindo
Está marcado com o signo de uma outra morte
A sua figura as suas mãos o olhar e a estatura
Já metade anjo ou uma gravura
De Dürer o pedante da melancolia
Um homem beija-o ele é mesmo de carne
Os seus dias ainda não estão contados
Se é permitido acreditar no que vemos
Eles desaparecem por detrás de uma coluna
Em imitação de mármore passado algum tempo
Uma imagem como tirada de um velho filme
Vejo entre uma palmeira em vaso e uma coluna
O homem de boa saúde sentado num cadeirão
E uma mão já quase descarnada
Que acaricia a sua cabeça uma vez várias vezes
Ele não pode parar ela conta as horas
Frente à embassy da nossa pensão
Com o aquecimento avariado Old World Charm
Diz a tabuleta e Proibido entrar
Um antigo combatente chora o seu gato
Que se esconde no jardim da pensão
He’s my only friend in life you know
I watch him not allowed to enter the garden
I’m afraid they stolen him the name is Tiger
A vida não é o mais elevado de todos os valores
Tiger’s the name Tier Tiger
 
 
 
heiner müller
poemas (1949-1995)
trad. adolfo luxúria canibal
officina noctua
2021





15 dezembro 2023

harold pinter / luz do dia

 




 
Atirei um punhado de pétalas sobre os teus seios.
Arranhada pela luz do dia, jazes petalisada.
Assim a tua pele imita o rubor, a cabeça
Roda em todos os sentidos, exibindo um massacre de flores.
 
Eu levo-te então das trevas até ao dia,
E pouso pétala sobre pétala.
 
                                                     
                                         1956
 
 
 
harold pinter
várias vozes
tradução jorge silva melo e francisco frazão
quasi
2006
 




14 dezembro 2023

henri michaux / a estátua e eu

 
 
 
Nos meus tempos mortos, ensino uma estátua a andar. Dada a sua imobilidade exageradamente prolongada, não é nada fácil. Nem para ela. Nem para mim. Dou-me conta de que uma grande distância nos separa. Não sou tão imbecil que não me dê conta disso.
 
Mas não se pode ter todas as boas no nosso jogo. Ou então, adiante.
 
O que interessa é que o seu primeiro passo seja bom. Para ela, tudo reside nesse primeiro passo. Bem sei. Sei disso muito bem. Daí a minha angústia. Por conseguinte, aplico-me. Aplico-me como jamais o fiz.
 
Coloco-me junto dela de modo rigorosamente paralelo: o pé, como ela, levantado e rígido tal estaca enterrada na terra.
 
Porém nunca é exactamente igual. Ou o pé, ou a curva, ou o porte, ou o estilo, há sempre qualquer coisa que falha e o tão esperado arranque não pode ter lugar.
 
É por isso que cheguei a um estado em que eu próprio já quase não consigo andar, tomado de uma rigidez, todavia toda feita de impulso, e o meu corpo fascinado faz-me medo e já não me leva a parte nenhuma.
 
 
 
henri michaux
aparições (1946)
antologia
trad. margarida vale de gato
relógio d´água
1999
 


13 dezembro 2023

manuel de freitas / but not for me (billie holiday)

 




 

                         

Desistir do rosto, dos propósitos, das
palavras. Há sílabas assim.
Com a vergonha do afecto
emprestada ao desalinho das mesas.
 
Por ali, encenando a imobilidade,
a rudeza de haver dor.
Eu sei que não virás.
Bebo por ti, sem ti, contra ti,
com o coração no bengaleiro
a fingir que não, não faz diferença.
 
E o pior é que até faz,
por muito que ninguém o saiba.
 
 
 
manuel de freitas
[ sic ]
assírio & alvim
2002