18 dezembro 2023

josé miguel silva / nocturno

 




 

A arte já sabemos nasce
da imperfeição das coisas
que trazemos para casa
com o pó da rua
quando a tarde finda
e não temos água quente
para lavar a cabeça.
 
Tentamos regular
com açudes de orações
o curso da tristeza
mudamos de cadeira
e levamos a note
a dizer oxalá
como se a palavra
praticasse anestesia.
 
 
josé miguel silva
ulisses já não mora aqui
língua morta
2014



17 dezembro 2023

konstandinos kaváfis / trouxe à arte

 
 
Dou-me ao enleio aqui.     Desejos e sensações
trouxe à Arte –     umas meio vistas,
caras e linhas;     de inacabados amores
umas memórias incertas.     A ela me deixe.
Sabe formar     Figura da Beleza;
quase imperceptível     completa a vida,
combina impressões,      combina os dias.
 
 
 
konstandinos kavafis
os poemas
I (1919-1932)
trad. joaquim manuel magalhães e
nikos pratsinis
relógio d´água
2005





16 dezembro 2023

heiner müller / welcome to santa monica

 
Um homem a morrer entra no salão do hotel
Onde outros moribundos matam o seu tempo
Curto ou longo entre nascimento e morte
A falar de negócios ou sós com um copo
No qual habita o esquecimento o recém-vindo
Está marcado com o signo de uma outra morte
A sua figura as suas mãos o olhar e a estatura
Já metade anjo ou uma gravura
De Dürer o pedante da melancolia
Um homem beija-o ele é mesmo de carne
Os seus dias ainda não estão contados
Se é permitido acreditar no que vemos
Eles desaparecem por detrás de uma coluna
Em imitação de mármore passado algum tempo
Uma imagem como tirada de um velho filme
Vejo entre uma palmeira em vaso e uma coluna
O homem de boa saúde sentado num cadeirão
E uma mão já quase descarnada
Que acaricia a sua cabeça uma vez várias vezes
Ele não pode parar ela conta as horas
Frente à embassy da nossa pensão
Com o aquecimento avariado Old World Charm
Diz a tabuleta e Proibido entrar
Um antigo combatente chora o seu gato
Que se esconde no jardim da pensão
He’s my only friend in life you know
I watch him not allowed to enter the garden
I’m afraid they stolen him the name is Tiger
A vida não é o mais elevado de todos os valores
Tiger’s the name Tier Tiger
 
 
 
heiner müller
poemas (1949-1995)
trad. adolfo luxúria canibal
officina noctua
2021





15 dezembro 2023

harold pinter / luz do dia

 




 
Atirei um punhado de pétalas sobre os teus seios.
Arranhada pela luz do dia, jazes petalisada.
Assim a tua pele imita o rubor, a cabeça
Roda em todos os sentidos, exibindo um massacre de flores.
 
Eu levo-te então das trevas até ao dia,
E pouso pétala sobre pétala.
 
                                                     
                                         1956
 
 
 
harold pinter
várias vozes
tradução jorge silva melo e francisco frazão
quasi
2006
 




14 dezembro 2023

henri michaux / a estátua e eu

 
 
 
Nos meus tempos mortos, ensino uma estátua a andar. Dada a sua imobilidade exageradamente prolongada, não é nada fácil. Nem para ela. Nem para mim. Dou-me conta de que uma grande distância nos separa. Não sou tão imbecil que não me dê conta disso.
 
Mas não se pode ter todas as boas no nosso jogo. Ou então, adiante.
 
O que interessa é que o seu primeiro passo seja bom. Para ela, tudo reside nesse primeiro passo. Bem sei. Sei disso muito bem. Daí a minha angústia. Por conseguinte, aplico-me. Aplico-me como jamais o fiz.
 
Coloco-me junto dela de modo rigorosamente paralelo: o pé, como ela, levantado e rígido tal estaca enterrada na terra.
 
Porém nunca é exactamente igual. Ou o pé, ou a curva, ou o porte, ou o estilo, há sempre qualquer coisa que falha e o tão esperado arranque não pode ter lugar.
 
É por isso que cheguei a um estado em que eu próprio já quase não consigo andar, tomado de uma rigidez, todavia toda feita de impulso, e o meu corpo fascinado faz-me medo e já não me leva a parte nenhuma.
 
 
 
henri michaux
aparições (1946)
antologia
trad. margarida vale de gato
relógio d´água
1999
 


13 dezembro 2023

manuel de freitas / but not for me (billie holiday)

 




 

                         

Desistir do rosto, dos propósitos, das
palavras. Há sílabas assim.
Com a vergonha do afecto
emprestada ao desalinho das mesas.
 
Por ali, encenando a imobilidade,
a rudeza de haver dor.
Eu sei que não virás.
Bebo por ti, sem ti, contra ti,
com o coração no bengaleiro
a fingir que não, não faz diferença.
 
E o pior é que até faz,
por muito que ninguém o saiba.
 
 
 
manuel de freitas
[ sic ]
assírio & alvim
2002





12 dezembro 2023

manuel antónio pina / tudo o que te disser

 
 
São feitas de palavras as palavras
e da melancolia da
ausência da prosa e da ausência da poesia.
 
É o que falta que fala
do lugar do exílio
do sentido e da falta de sentido.
 
Tudo o que te disser
tudo o que escrever
sou eu a perder-te,
 
cada palavra entre
o que em mim é corpo
e é nela sopro.
 
 
 
manuel antónio pina
em prosa provavelmente
todas as palavras, poesia reunida
assírio & alvim
2012
 



11 dezembro 2023

rui knopfli / fim de tarde no café

 




 
Na tarde cor de azebre
falávamos de coisas amargas.
Ali, na mesa triste do café
com moscas adejando
sobre restos de açúcar
e um copo de água
morna de esquecida,
falávamos da amargura das coisas,
entre rostos graníticos e enxovalhados,
entre estranhos e estranhos
de estranhos e os que,
nada tendo de estranhos,
cuidam de cuidar
o que se passa entre estranhos.
Na tarde comprida e silenciosa
tecíamos gestos inúteis
e palavras entre dentes,
mergulhados na paisagem geométrica
do café. Do café tão cheio de gente
e fumo e moscas e caras tristes
e afinal tão profundamente,
tão desesperadamente vazio.
 
 
 
rui knopfli
motivações
memória consentida
20 anos de poesia 1959/1979
imprensa nacional -casa da moeda
1982
 



10 dezembro 2023

alberto de lacerda / bach

 



 
No claro silêncio desnudo,
      a Geometria dança livremente.
 
Eu sinto, eu creio, eu canto, e a luz é tanta
que a sala se esboroa por completo
e o céu cobre, em palácio, o mundo inteiro.
 
Sou a recta sublime que se cumpre
desde o centro da terra ao infinito.
 
 
 
alberto de lacerda
cadernos de poesia
II série, fascículo 8
Lisboa 1951
campo das letras
2004
 




09 dezembro 2023

rolf dieter brinkmann / poema

 
 
Paisagem destruída, com
latas de conserva, as entradas das casas
vazias, o que há lá dentro? Aqui cheguei
 
à tarde, de comboio,
duas panelas atadas
ao saco de viagem. Agora deixei
 
para trás os sonhos que sopram
numa encruzilhada. E pó,
pavana fragmentada, néon
 
morto, jornais e carris,
este dia, que me resta agora,
um dia mias velho, mais afundado e morto?
 
Quem é que disse que a isto
se chama vida? Eu retiro-me
para outros tons de azul
 
 
 
rolf dieter brinkmann
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
tradução de joão barrento
assírio & alvim
2001
 
 

08 dezembro 2023

samuel beckett / sobressaltos


 
(…)
 
Tinha havido um tempo em que às vezes ele levantava a cabeça o suficiente para ver as mãos. O que havia delas para ver. Uma deitada sobre a mesa e a outra por cima dela. em repouso depois de tudo o que tinham feito. Levantava a antiga cabeça por um momento para ver as antigas mãos. Depois deitava-a outra vez sobre elas para que também ela repousasse. Depois de tudo o que tinha feito.
 
(...)
 
 
 
samuel beckett
sobressaltos
trad. miguel esteves cardoso 
o independente
05-01-1990




07 dezembro 2023

billy collins / aranha irlandesa

 
 
Valeu bem a pena viajar até aqui
apenas para me sentar numa caixa de luz do sol
junto a uma janela de uma casa de campo
 
com uma chávena de chá a fumegar
e observar uma aranha irlandesa à espera
no centro da sua teia orvalhada
 
fingindo ser uma aranha qualquer –
uma aranha sem país –
mas nem por um minuto me enganando.
 
 
 
billy collins
a aranha irlandesa & outros poemas,
trad. francisco José craveiro de carvalho
do lado esquerdo
2023




06 dezembro 2023

julio cortázar / manual de instruções

 
 
Ter de ganhar o dia-a-dia todos os dias, esbracejar num mundo pegajoso, ter de acordar todas as manhãs num repugnante cubículo, e satisfeito que nem um cão por tudo estar nos seus lugares: a mesmíssima mulher, os sapatos de sempre, o eterno sabor da eterna pasta dentífrica, a mesma tristeza das casas fronteiras, a suja tabuleta com o letreiro HOTEL DE BELGiQUE.
 
Enfiar a cabeça como um touro vencido pela multidão transparente em cujo centro tomamos o café com leite e folheamos o jornal para saber o que aconteceu num ponto qualquer do globo. Não consentir que o acto delicado de girar o trinco da porta, acto que tudo poderia modificar, se cumpra com a fria eficácia de um reflexo quotidiano. Até logo, querida. Passa bem.
 
Apertar uma colher na mão e sentir o seu gemido de metal, sua advertência suspeita. Dói negar uma colher, negar uma porta, negar tudo o que o hábito seduz com suavidade satisfatória. É tão mais simples aceitar a solicitude fácil da colher, usá-la para mexer o café.
 
E não há nada de mal em que as coisas nos vejam mudar.
 
Que ao nosso lado esteja sempre a mesma mulher, o mesmo relógio e que o livro aberto sobre a mesa de cabeceira recomece a andar na bicicleta dos nossos óculos, porque haveria isso de ser mau? Mas há que baixar a cabeça como um touro triste e empurrar para longe o centro do globo de cristal, até outro tão perto de nós, inacessível como o picador tão perto do touro. Forçar os olhos para o que no céu aceita teimosamente o nome de nuvem, sua réplica catalogada na memória. Não pense que o telefone te irá dará o número que procuras. Por que razão to daria? Somente o que já tens preparado e pronto, o triste reflexo da tua esperança, esse macaco que se coça à mesa e treme de frio, chegará aos teus ouvidos. Escavaca a cabeça a esse macaco, vai contra as paredes, rebenta-as. Alguém que canta no andar de cima! Nesta casa há um andar de cima, com outras pessoas! Um andar de cima onde vivem pessoas que nem imaginam o andar de baixo, e cá estamos todos na bola de cristal. E se de repente uma traça aparece na ponta de um lápis e palpita como um fogo cinzento, olha-a, eu olho-a, sinto esse coração pequeníssimo, oiço-a, a essa traça que vive na bola de cristal frio, nada está perdido. Ao abrira porta, ao chegar à escada, saberei que a rua está já ali em baixo; não o molde imposto, não as casas conhecidas, não o hotel em frente: a rua, floresta viva onde cada instante pode invadir-me como uma magnólia, onde as caras começam quando as olho, quando avanço, quando com os cotovelos, pestanas e unhas me atiro minuciosamente contra a massa da bola de cristal, e arrisco a vida enquanto avanço passo a passo para ir comprar o jornal à esquina.
 
 
 
júlio cortázar
histórias de cronópios e de famas
manual de instruções
tradução de alfacinha da silva
editorial estampa
1973