05 outubro 2023

sophia de mello breyner andresen / intervalo

 




 
Eu só quero silêncio neste porto
Do mar vermelho, do mar morto
 
Perdida, baloiçar
No ritmo das águas cheias
 
Quero ficar sozinha neste espanto
Dum tempo que perdeu a sua forma
 
Quero ficar sozinha nesta tarde
Em que as árvores verdes me abandonam
 
 
 
sophia de mello breyner andresen
coral 1950
obra poética I
caminho
1999
 



04 outubro 2023

neil curry / sobre nada em especial

 



 

 
Eu nunca teria conseguido
                      fazer nada,
              Se não tivesse sido capaz
                             de não fazer nada.
 
 
neil curry
companhia a mrs woolf
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2017





03 outubro 2023

natércia freire / logo que nasci






 

 
Logo que nasci
Foi-me dada ordem
De me procurar.
Logo assim e aqui
Não vou ter descanso
Em nenhum lugar
 
 
 
natércia freire
liberdade solar (1978)
antologia poética
assírio & alvim
2001
 


 

02 outubro 2023

amalia bautista / conheci um dia um homem tão estranho




 

Conheci um dia um homem tão estranho
que continuo a recordá-lo. Disse
que estava condenado para sempre
a suportar o peso de uma enorme
pedra sobre os seus ombros, e que nunca
a levaria até ao seu destino.
Contive a vontade de lhe dizer
“que achas que faço eu com estes fios?”
 
 
 
amalia bautista
trevo
tradução de inês dias
averno
20212
 


 

01 outubro 2023

ana paula inácio / auto-retrato II

 




 
Vivo com a crença estranha
de que nasci morta
e fiz a opção precoce
plas ruas escuras
de la Calle de l’Amargura de Cáceres
à de los Tigres de Martín del Castañar.
Parasita de quem me deita a mão,
fantoche presa por fios,
como se foram tubos
de alimentação artificial,
vivo da generosidade alheia
de quem me dá poesia
por pão ou rosas, Salvé rainha,
nascera eu a 19 de Maio de 1980
e poderia chamar Mário de Sá-Carneiro, meu doce irmão.
Nasci mesmo em 1966
aos doze dias do mês de Junho
sem par,
filha única
«tenho a minha casa para olhar»
 
 
 
ana paula inácio
2010-2011
averno
2011



30 setembro 2023

ana hatherly / 463 tisanas

 
 
337
 
A minha poética do real manda-me que o diga. Mas o que vêem os meus olhos? O melhor do que eu vejo não se vê olhando. Penso nisso e depois escrevo: como eu gostava de poder acreditar nessa vaidade que a todos deita por terra.
 
 
ana hatherly
463 tisanas
quimera
2006
 






29 setembro 2023

ana luísa amaral / a impossível sarça





 
Que mais fazer
se as palavras queimam
e tanta coisa em fumo em tanta coisa
sarças ardentes do avesso
o fogo em labaredas que mais
fazer
 
Que mais fazer
se nem a água tantas vezes
descrita        abençoada
mas de mais e cristã
também castigo
 
Mas como nem castigo
nem as nuvens de fumo na sarça
do avesso
se tudo no avesso
das palavras
 
que não chegam
– mas cegam
 
 
ana luísa amaral
vozes
dom quixote
2011
 


 


28 setembro 2023

wislawa szymborska / sorrisos

 
                                                              
 
Mais alma põe o mundo em ver do que em ouvir.
Os homens de estado têm que sorrir.
Sorrir é sinal de que mantêm a calma.
Seja o jogo ínvio, os interesses outros,
incerto o final, é sempre um consolo
ver a dentadura branca e cordial.
 
Têm que gentis mostrar os seus rostos,
nas salas de encontro, lajes de aeroportos.
Moverem-se lestos, parecerem felizes.
Este acolhe aquele, diz adeus ao outro.
Uma cara risonha é sempre precisa
para o ajuntamento, para a objectiva.
 
Os dentistas, tratando os diplomatas,
são o garante de triunfos espantosos.
Caninos fidedignos, condignos incisivos,
não podem faltar nos transes perigosos.
Os tempos não vão ainda de feição
a que se possa ver nas faces uma simples tristeza.
 
Pensa quem sonha, que a humanidade fraterna de certeza
há-de mudar o mundo na terra dos sorrisos.
Eu cá duvido e, sejamos mais precisos, os estadistas
não deviam rir-se assim e dar tanto nas vistas.
Só às vezes: é primavera, é outono,
sem crispações nem urgência escusada.
É triste por sua natureza o ser humano.
A minha esperança é vê-la um dia revelada.
 
 
 
wislawa szymborska
paisagem com grão de areia
trad. júlio sousa gomes
relógio d’água
1998
 




27 setembro 2023

wallace stevens / mulheres vulgares



 

Então da pobreza delas se ergueram,
Dos catarros secos, e para as guitarras
Esvoaçaram
Através dos muros do palácio.
 
Atiraram para trás a monotonia,
Distraídas da sua penúria, e, indolentes,
Abarrotaram
Os átrios nocturnos.
 
Os camarotes envernizados repletos ali
Murmuravam zia-zia e a-zia, a-zia.
O luar
Defraudava os candelabros.
 
E os vestidos frios que usavam,
Na vápida neblina das janelas de sacada,
Ficavam sossegados
Enquanto inclinadas observavam
 
Dos peitoris das janelas os alfabetos
Beta b e gama g,
Estudando
Os arabescos oblíquos
 
Do céu e do celestial argumento.
E aí leram acerca do leito nupcial.
Ti-lili-oh!
E leram longamente.
 
Os magros guitarristas nas cordas
Arranhavam um-dia e um-dia, um-dia.
O luar
Ergueu-se no chão de areia.
 
Quão nítidos se fizeram os penteados,
A pedra de diamante, a pedra de safira,
As lantejoulas
Dos finos leques!
 
Insinuações de desejo,
Conversa pujante, idêntica em todas,
Quitação gritada
Aos átrios escuros.
 
Então da pobreza delas se ergueram,
Das guitarras secas, e para os catarros
Esvoaçaram
Através dos muros do palácio.
 
 
 
wallace stevens
harmónio
trad. Jorge fazenda Lourenço
relógio d´água
2006
 



 

26 setembro 2023

william carlos williams / a um discípulo solitário

 
 
Repara, mon cher,
que mais importante é a lua
inclinada
sobre o campanário
do que a sua cor
de rosa nacarado.
 
Mais importante
é o nascer do dia
do que o céu
pálido
como uma turquesa.
 
Mais importantes
são as linhas convergentes
do campanário
que, sombrias
se juntam no zimbório –
repara como
o seu reduzido ornamento
pretende interceptá-las –
 
Tão inútil é o seu afã!
Repara como as linhas convergentes
da agulha hexagonal
se escapam para cima –
recuando, separando-se!
– sépalas
que guardam e contêm
a flor!
 
Repara
como imóvel
a lua cheia
jaz protegida pelas linhas.
É verdade:
nas leves cores
da manhã
 
pedra parda e ardósia
brilham em laranja e azul-escuro.
 
Mas repara
no opressivo peso
do edifício atarracado!
Repara
na claridade de jasmim
da lua.
 
 
 
william carlos williams
antologia breve
tradução josé agostinho baptista
assírio & alvim
1993
 



25 setembro 2023

pedro de queirós tavares / pardaleco

 
 
 
Sou este migalho de aldrabice
que vive nas árvores ocas
(tolhido para não afugentar os pintassilgos)
sempre com os pés para a noite como se a luz me denunciasse:
atentem, ali vai a versão pardaleco do homem possível
Entretenho-me a fazer fogueiras com as mãos
apesar de encarquilhadas de tanto escarafunchar os olhos
o segredo é não esbanjar as pinhas
é tudo o que sei sobre calor
Sou esta batota que escorraça em leque
e só está bem na cama
com o focinho enterrado na própria máscara
de gesso de viúvo de colisão entre comboios
favoreço o musgo
e sou inseparável desta colecção de navalhas imaginárias
não acredito em meias
só em música desgrenhada
Deixo palitos por todo o lado
como um gatuno morto por ser apanhado
cheio de ouro a escorrer-lhe dos dentes
o meu espelho é o vácuo
até te mostrava a barriga não fossem as marcas dos rodados
há uma toupeira no meu estandarte
e uma mulher invisível de bonita
por quem espero
 
 
pedro de queirós tavares
se tens fósforos
fresca / poetria
2023
 



24 setembro 2023

vergílio ferreira / não tenhas pena de ser mortal

 




 

155 – Não tenhas pena de ser mortal e de não conheceres a eternidade. Porque a eternidade está em ti, no momento incrível de te desprenderes do teu corpo, da sua miséria e estrume, e te pensares a ti mesmo e te sentires ser. Ou quando uma imagem de outrora, luminosa, ténue, se abre ao teu imaginar. Ou quando, fulminante, uma obra de arte. Ou quando, violento intenso instantâneo, o todo de uma mulher. Ou quando pela manhã a terra espera em silêncio que o dia vá começar. Ou quando. A eternidade mora em nós e na vida, deixa apenas que ela se diga e te habite. E serás mais do que Deus, cuja eternidade passou.
 
 
vergílio ferreira
pensar
bertrand editora
2004




23 setembro 2023

fernando namora / pacto

 
 
Não me estendas a mão
como quem devolve
o que dado não foi.
Quando a deres
a mão já não será tua
mesmo antes de dada ser.
 
É assim que aceito
entrares em mim
sem de ti saíres.
É assim que nos
saberemos tu e eu
sendo um
sem deixarmos
de ser dois.
 
 
 
fernando namora
nome para uma casa
livraria bertrand
1984