08 setembro 2023

rené char / argumento

 



 

Como viver sem desconhecido diante de nós?
 
Os homens de hoje em dia querem que o poema seja à imagem das suas vidas, com tão poucas considerações, tão pouco espaço, consumidas de intolerância.
 
Porque já não lhes é permitido agir supremamente, nessa preocupação fatal com a auto-destruição através dos seus semelhantes, porque a sua riqueza inerte os refreia e s amarra, os homens de hoje em dia, debilitado o instinto, perdem, muito embora se conservem vivos, a própria poeira do sue nome.
 
Nascido do chamamento do porvir e da angústia da retenção, o poema, elevando-se do seu poço de lama e de estrelas, testemunhará, quase silenciosamente, que nada havia nele que não existisse verdadeiramente noutro sítio, neste rebelde e solitário mundo de contradições.
 
 
  
rené char
furor e mistério
o poema pulverizado (1945-1947)
trad. margarida vale de gato
relógio d’água
2000



07 setembro 2023

philippe soupault / estrada

 
 
Vi a lembrança da sua voz empoleirar-se
O meu corpo embalava os meus pensamentos
Os fios telegráficos fugiam
 
O choque de um calhau tocou o meio-dia
 
 
philippe soupault
sonhador definitivo e perpétua insónia
uma antologia de poemas
surrealistas escritos em língua francesa
trad. regina guimarães
contracapa
2021






06 setembro 2023

andre breton / antes a vida

 




 
Antes a vida que estes prismas sem espessura mesmo se as cores são mais puras
Antes ela que esta hora sempre enevoada estas terríveis carruagens de labaredas frias
Estas pedras sorvadas
Antes este coração engatilhado
Que este charco de murmúrios
Este pano branco a cantar ao mesmo tempo na terra e no ar
E esta bênção nupcial que une o meu rosto ao da total fatuidade
                                                        Antes a vida
 
Antes a vida com os seus lençóis de esconjuro
As suas cicatrizes de fugas
Antes a vida antes esta rosácea no meu túmulo
A vida da presença só da presença
Onde uma voz diz Estás aí outra responda Estás aí
Eu pobre de mim não estou
E mesmo quando jogarmos ao que fazemos morrer
                                                        Antes a vida
 
Antes a vida antes a vida Infância venerável
A faixa que parte dum faquir
Parece o escorregadouro do mundo
Não importa que o sol não passe de um destroço
Por pouco que o corpo da mulher se lhe compare
Pensas tu ao contemplar a extensão da trajectória
Ou tão-só ao fechar os olhos sobre a tormenta adorável que se chama a tua mão
                                                        Antes a vida
 
Antes a vida com as suas salas de espera
Mesmo sabendo não ir entrar nunca
Antes a vida que estas estâncias termais
Onde o serviço é feito por coleiras
Antes a vida adversa e longa
Quando aqui os livros se fecharem sobre estantes menos suaves
E lá longe fizer mais que melhor fizer livre sim
                                                        Antes a vida
 
Antes a vida como fundo de desdém
A esta cabeça já de si tão bela
Como antídoto da perfeição aspirada e temida
A vida a maquilhagem de Deus
A vida como um passaporte virgem
Ou uma vilória como Pont-à-Mousson
E como tudo foi dito já
                                                        Antes a vida
 
 
Claire de Terre (1923)
 
 
 
andre breton
claire de terre (1923)
poemas
trad. de ernesto sampaio
assírio & alvim
1994
 




05 setembro 2023

jacques roubaud / todas as fotografias são eu



 

«
 
Perecíveis, sentimentais, eu próprio perecível
 
Tudo o que nos arriscamos a perder. dar-te isso. vais per-
dê-lo.
 
Continuarei a não me parecer com o mundo.
 
Eu também já fui mundo.
 
Tão semelhante que podia ser confundido com ele.
 
Não dissipo a sombra do esquecimento. tento brilhar ful-
gurante fora da memória. contrabando indiscernível da
pura recordação.
 
Entra, assiste à minha infância interior, ao segundo lado
do tempo.
 
»
 
 
 
jacques roubaud
alguma coisa negro
trad. josé mário silva
tinta-da-china
2016
 





 

04 setembro 2023

jacques prévert / para ti meu amor

 



 
 
Fui à feira dos pássaros
E comprei pássaros
Para ti
meu amor
Fui à loja das flores
E comprei flores
Para ti
meu amor
Fui à feira da sucata
E comprei correntes
Pesadas correntes
Para ti
meu amor
E depois fui à feira dos escravos
E procurei-te
Mas não te encontrei
meu amor
 
 
 
jacques prévert
palavras
trad. manuela torres
sextante editora
2007




03 setembro 2023

benjamin péret / a floresta bébeda

 
 
Uma árvore abatida para ti será
também duas
e a floresta igualmente
pois que uma fonte brota do meu joelho
levando-me o machado para outros continentes
 
Uma árvores abatida para ti será
Quer chova neve ou sopre vento
usa-a ao pescoço
para que a tua vida seja quente como brasa
 
Oxalá o meu machado refloresça na sua floresta natal
ou erre qual velho náufrago
ao sabor das mortes súbitas
uma árvore abatida para ti será
 
 
 
benjamin péret
sol de bolso
uma antologia de poemas
trad. regina guimarães
contracapa
2023
 



02 setembro 2023

jean cocteau / os heurtebise de jean cocteau


 



 No seu ensaio Opium e, sobretudo, em Journal d´un Inconnu, Cocteau conta como lhe nasceu o anjo Heurtebise:

 
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A semelhança entre as palavras ange (anjo) e angle (ângulo), a palavra ange faz-se angle se lhe acrescarmos um l (ou asa), é um acaso da língua francesa se existir acaso em matérias como esta. Mas eu sabia que este acaso deixava de sê-lo em hebreu, onde a palavra anjo e a palavra ângulo são sinónimos.
Na Bíblia, a queda dos anjos simboliza a queda dos ângulos, quer dizer, a criação toda humana de uma esfera convencional. Esvaziada da sua alma geométrica, feita de um enredamento de hipotenusas e ângulos rectos, a esfera deixa de assentar sobre os pontos que lhe garantiriam a emissão dos raios.
Eu também sabia que a queda desta alma geométrica é que importa em nós evitar, e que perder todos os nossos ângulos, ou os nossos anjos, é um perigo que ameaça os indivíduos excessivamente agarrados à vida.
 
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Acontecia-me, muito intoxicado, dormir intermináveis sonos de meio segundo. Um dia que fui visitar Picasso à rua La Boétie, no elevador julguei-me a aumentar de tamanho, ao lado de qualquer coisa de terrível e que seria eterna. Uma voz gritava-me: «O meu nome está na placa.» Um abalo despertou-me e li na placa de cobre das alavancas: ELEVADOR HEURTEBISE. Lembro-me de que falámos de milagres, na casa de Picasso. Picasso diz que tudo é milagre, e que milagre era ele não se derreter no banho como um torrão de açúcar.
 
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Verifico, à distância, como esta frase me influenciou. Resume o estilo de uma peça [Orphée] onde os milagres não devem sê-lo, devem estar ligados ao cómico e ao trágico, intrigar tanto como o mundo das pessoas crescidas intriga as crianças.
Eu já tinha deixado de pensar no episódio do elevador. De repente, tudo se alterou. O meu projecto de peça perdeu os contornos. À noite eu adormecia e acordava em sobressalto, incapaz de recuperar o sono. Durante o dia afundava-me e tropeçava numa massa de sonhos. Perturbações que se tronaram atrozes. O anjo habitava-me, sem eu ter qualquer espécie de dúvida, e foi preciso que a pouco e pouco o nome Heurtebise me obcecasse para tomar consciência dele.
À custa de o ouvir, de o ouvir sem o ouvir, se assim puder dizer-se de lhe ouvir a forma numa qualquer zona onde o homem não pode tapar os ouvidos, à custa de ouvir um silêncio que gritava esse nome em altos berros, à custa de ser perseguido por esse nome, voltei a lembrar-me do grito do elevador: «O meu nome está na placa», e nomeei o anjo que se revoltava contra a minha tolice, já que ele e não eu tinha a si próprio dado o nome. Ao ter nome esperei que me deixasse tranquilo. Estava muito enganado. A fabulosa criatura fez-se insuportável. Atravancava-me, abria-se, passeava, batia como as crianças no ventre da mãe. E eu não conseguia abrir-me, fosse com quem fosse. Tinha de aguentar o suplício. Porque o anjo me atormentava sem parar, ao ponto de eu esperar, recorrendo ao ópio, acalmá-lo com astúcia. Mas a astúcia desagradou-lhe e fez-me pagá-lo caro.
 
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O anjo não se preocupava muito com a minha revolta. Eu só era o seu veículo, e ele tratava-me como veículo. Preparava a sua saída. As minhas crises aceleraram-lhe a cadência e todas se fizeram uma só crise comparável à aproximação do parto. Mas parto monstruoso, que não beneficiava do instinto maternal e da confiança que daí resulta. Imagine-se uma partogénese, um casal formado por um só corpo e que dá à luz. Depois de uma noite em que pensei no suicídio, a expulsão teve enfim lugar na rua d’Anjou. Durou sete dias em que o vale-tudo da personagem ultrapassava todos os limites por me forçar a escrever contra vontade.
 
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No sétimo dia (eram sete horas da noite) o anjo Heurtebise fez-se poema e libertou-me. Fiquei apático. Olhava para a figura que ele tinha tomado. Mantinha-se afastado, altivo, por completo indiferente a tudo o que não era ele. Um monstro de egoísmo. Um bloco de invisibilidade.
Esta invisibilidade construída com ângulos que lançam fogo, este navio aprisionado nos gelos, este icebergue rodeado de água, permaneceu sempre invisível. Assim foi decidido pelo anjo Heurtebise. A sua configuração terrestre não tem, para ele, o mesmo sentido que nós lhe damos. Sobre ela acontece fazer-se uma dissertação ou um texto. Esconde-se, então, às nossas exegeses. Como costuma dizer-se, é desembaraçado. Quis penetrar o nosso reino. Que ele por lá se mantenha.
Quando o olho faço-o sem rancor, mas depressa desvio a vista. Os seus grandes olhos incomodam-me porque me fixam sem olhar.
Parece-me notável que este poemas estranho a mim me conte (estranho, a não ser na substância) e o anjo me faça galar dele como se o conhecesse de longa data e na primeira pessoa. Provando assim que a personagem seria inapta a ganhar rosto sem o meu veículo, e ao cabo e ao resto não poderia, como os génios dos contos orientais, habitar o vaso do meu corpo. A única maneira de uma figura abstracta se fazer concreta, continuando invisível, é contrair connosco matrimónio, reservar para si a parte maior, conceder-nos apenas uma dose infinitesimal de invisibilidade. E a reprovação por inteiro, bem entendido.
Na minha visita seguinte olhei para a placa. Tinha lá o nome OTIS-PIFRE; o elevador mudara de marca.
 
 
 
jean cocteau
o livro branco
trad. aníbal fernandes
assírio & alvim
2010




01 setembro 2023

arthur rimbaud / uma temporada no inferno



 
«Outrora, se bem me lembro, a minha vida era um festim em que todos os corações se abriam, em que corriam todos os vinhos.
Uma noite, sentei a Beleza nos meus joelhos. – E achei-a amarga. – E injuriei-a.
Armei-me contra a justiça.
Fugi. Ó feiticeiras, ó miséria, ó ódio, é a vós que foi confiado o meu tesouro!
Alcancei que se desvanecesse do meu espírito toda a esperança humana. Sobre toda a alegria para estrangular lancei o salto surdo do animal feroz.
Convoquei os carrascos para lhes morder, perecendo, a coronha dos fuzis. Convoquei os flagelos, para me sufocar com a areia, o sangue. A desgraça foi o meu deus. Deitei-me ao comprido na lama. Sequei ao ar do crime. E preguei boas partidas à loucura.
E a Primavera trouxe-me o horrível riso do idiota.
Ora, bem recentemente, vendo-me prestes a soltar o último pio, ocorreu-me procurar a chave do antigo festim, que me devolveria talvez o apetite.
Esta chave é a caridade. – Esta inspiração prova que sonhei!
«Hiena hás-de ser sempre, etc…», proclama o demónio que me coroou de tão amáveis papoulas. «Arriba à morte com todos os teus apetites, e o teu egoísmo e todos os pecados capitais.»
Ah! Disso já fiz bem mais do que a conta: - Mas, conjuro-vos, meu caro Satã, uma pupila menos irritada! E enquanto aguardais umas tantas ou quantas pequenas cobardias em atraso, aqui tendes, vós que apreciais no escritor a ausência das faculdades descritivas ou instrutivas, algumas horríveis folhas do meu caderno danado.
 
 
 
jean-arthur rimbaud
une saison en enfer
obra completa
trad. miguel serras pereira e joão moita
relógio d´água
2018
 
 


31 agosto 2023

pedro homem de mello / carta a bill

 
 
 
Bill!
Se algum dia voltares
Aos caminhos do passado,
Acharás tudo mudado:
A dança, o trajo, os cantares…
Fica a máscara por fora?
Por baixo dela, ainda igual,
Se ergue a bandeira real –
Branca e azul – intacta, agora?
 
Bailam a Gota?
                     – Eu te digo:
Veio, há tempos, um amigo
(Meu país foi sempre o teu
E esse país não morreu!)
Ver de perto com seus olhos
O lírio de que eu falava
(Lírio tão branco entre abrolhos!)
Em versos de silva brava.
Branco lírio!
Branco lírio!
Ao alto da serra da Agra!
Lembro nele o Fandangueiro
Que, ao bailar, de corpo inteiro,
Era uma flor, doce e amarga…
 
Mas, em chegando, ouvi só
Insultos de altifalantes!
Onde estavam os amantes
Do Poeta?
              Apenas pó.
E olhos, olhos espantados
E toda a monotonia
Da voz que o rosto desvia
Dos rouxinóis dos silvados.
Que loucura!
(Pense-o, pense-o
Quem quiser de lábios mudos.)
 
– Comprei por dez mil escudos
Dez minutos de silêncio.
 
Calou-se o altifalante!
Castanholaram os dedos…
 
De novo,
Naquele instante,
Voltou o povo a ser povo!
E voltaram homens ledos:
– Veio o Nelson e a Artemisa,
Veio Afife e Gondarém
E os de Carreço também
Misturar-se aos da Galiza…
 
E bastaram dez minutos
(Os dez minutos comprados!)
Para dez mil namorados
Sorrirem, de olhos enxutos.
Que loucura! – (Pense-o, pense-o
Quem quiser de lábios mudos!)
 
Comprei por dez mil escudos
Dez minutos de silêncio!
 
 
 
pedro homem de mello
cartas de Inglaterra (1973)
poesias escolhidas
imprensa nacional-casa da moeda
1983



30 agosto 2023

manuel de castro / o asteróide em fuga

 
 
Penetra a filigrana dos nervos
o olhar desarmado dos objectos
ameaçador, gelado de penumbra
com um ruído convulso e persistente
de facas, de vidros, de engrenagens.
 
Impõe-se uma ultrapassagem aérea de conquista
        a dobragem do medo
para o assalto da estratosfera líquida,
aonde o movimento é amplo e de vertigem.
 
Cada centímetro cúbico da noite
se adquire no precipício do jogo
com as palavras decompostas    livres     propulsoras
lubrificadoras de ossos     vorazes
no ritmo largo das muralhas vencidas.
 
No tempo permanente
o exercício do extremo limite
amplifica os ângulos
destrói as máquinas antigas
propôs a celeridade como estilo
no regresso possível à pureza dos nomes
 
Deixa correr célere a pena sobre o papel branco e gelado
semeado de gotículas azuis que são as palavras
umas a seguir às outra velozmente
quase nem refreadas
As palavras e o azulado das gotículas tomam a cor de um céu
                                                                                            [molhado
angustioso como o punho que dói ao escrever
Deixa que célere voe o pensamento
porque irás indubitavelmente infantil
encontrar o teu modo inevitável de dizer as coisas
IMPORTANTE
Somos as águias falsas sobre o oriente
ligado por fios eléctricos a cinco minutos que nunca mais passam
– já teriam passado –
O papel agora é mais branco
a vida poderia ter sido verdadeiramente amada e retribuir
porém os erros tornaram-me conveniente e apto
mais apto
para o ofício egoísta de escrever palavras azuis
gotículas sobre o papel de neve
 
 
(A Estrela Rutilante)
 
 
 
manuel de castro
o surrealismo na poesia portuguesa
organização, prefácio e notas de natália correia
frenesi
2002






29 agosto 2023

manuel simões / laguna véneta



 

1
 
A névoa flutua à flor
da ausência. Ofusca o olhar
sem horizonte.
Envolve-nos, densa
e branca; avança nua,
sensual como o algodão
que subtilmente se insinua
e nos invade o coração.
 
2
 
Os navios soltam sons agudos,
sinais do desespero,
como as grandes aves
à deriva,
deslizando sem memória
de navegação.
 
 
Veneza, 31.1.97
 
 
 
manuel simões
errâncias, 1998
da outra margem
antologia de poesia de autores portugueses
organização de armandina maia
instituto camões
2001
 



 

28 agosto 2023

mário de sá-carneiro / o recreio

 



 
Na minha Alma há um balouço
Que está sempre a balouçar ---
Balouço à beira dum poço,
Bem difícil de montar...
 
--- E um menino de bibe
Sobre ele sempre a brincar...
 
Se a corda se parte um dia
(E já vai estando esgarçada),
Era uma vez a folia:
Morre a criança afogada...
 
--- Cá por mim não mudo a corda,
Seria grande estopada...
 
Se o indez morre, deixá-lo...
Mais vale morrer de bibe
Que de casaca... Deixá-lo
Balouçar-se enquanto vive...
 
--- Mudar a corda era fácil...
Tal ideia nunca tive...
 
 
 
mário de sá-carneiro
(Lisboa, 1890-1916)
maria alzira seixo
os poemas da minha vida
público
2005
 



27 agosto 2023

antónio gedeão / uma qualquer pessoa

 
 
Precisava de dar qualquer coisa a uma qualquer pessoa.
Uma qualquer pessoa que a recebesse
num jeito de tão sonâmbulo gosto
como se um grão de luz lhe percorresse
com um dedo tímido o oval do rosto.
 
Uma qualquer pessoa de quem me aproximasse
e em silêncio dissesse: para si.
E uma qualquer pessoa, como um luar, nascesse,
e sem sorrir, sorrisse,
e sem tremer, tremesse,
tudo num jeito de tão sonâmbulo gosto
como se um grão de luz percorresse
com um dedo tímido o oval do rosto.
 
Na minha mão estendida dar-lhe-ia
o gesto de a estender,
e uma qualquer pessoa entenderia
sem precisar de entender.
 
Se eu fosse o cego
que acena com a mão à beira do passeio,
esperaria em sossego,
sem receio.
Se eu fosse a pobre criatura
que estende a mão na rua à caridade,
aguardaria, sem amargura,
que por ali passasse a bondade.
Se eu fosse o operário
que não ganha o bastante para viver,
lutava pelo aumento do salário
e havia de vencer.
 
Mas eu não sou o cego,
nem o pobre,
nem o operário a quem não chega a féria.
 
Eu sou doutra miséria.
A minha fome não é de pão, nem de água a minha sede.
A minha mão estendida e tímida, não pede.
Dá.
Esta é a maior miséria que, em todo o mundo: há.
 
E eu que precisava tanto, tanto, de dar qualquer coisa a uma
      qualquer pessoa!
 
E se ela agora viesse?
Se ela aparecesse aqui, agora, de repente,.
se brotasse do chão, do tecto, das paredes,
se aparecesse aqui mesmo, olhando-me de, frente
toda lantejoulada de esperanças
como fazem as fadas nos contos das crianças?
 
Ai, se ela agora viesse!
Se ela agora viesse, bebê-la-ia de um trago,
sorvê-la-ia num hausto,
sequiosamente,
tumultuosamente,
numa secura aflita,
numa avidez sedenta,
sôfregamente,
como o ar se precipita
quando um espaço vazio se lhe apresenta.
 
 
 
antónio gedeão
máquina de fogo
1961