10 junho 2023

al berto / truque do veneno

 
 
ofereço-te uma laranja
tenho sempre laranjas escondidas no fundo das algibeiras
berlindes como olhos assustados de pantera, cordéis encerados
bons para estrangular
lâminas doces para abrir sinais de vida sobre a pele
e uma faca quebrada que me ajuda a recordar alguns nomes de cidade
 
o pior é que nos jogos de laranjas, mesmo nos mais difíceis
quem PERDE GABHA
sabemos que o veneno age sempre dos pés para a cabeça
estonteia
espero, atento à última convulsão
 
mais tarde, desato o cordel
retiro a faca profundamente enterrada, recuo um pouco
contemplo o sangue e a obra, esvazio as algibeiras
substituo os objectos, descalço as luvas
apago as impressões digitais, falsifico as fotografias
lavo demoradamente o sangue e o esperma da boca
saio para a rua, clandestino
procuro outro puto tardio pela cidade
seduzo-o com a imagem deslavada duma laranja, recomeço
o inocente jogo
 
 
 
al berto
alguns truques de ilusionismo 1979/80
o medo
assírio & alvim
1997




 

09 junho 2023

josé miguel silva / seis

 



 
As lágrimas trazem um cão para dentro de casa.
Numa casa compassiva dá-se valor ao choro,
aceita-se o repto de mais uma boca
para morder. Assim a criança já não vai sozinha
à mercearia. Se quiser bater na professora,
bate no cão, o cão foge
para debaixo de um táxi, a criança
deixa crescer as unhas, arranha
com paciente fúria a magreza dos seus braços e chora,
chora a sua infância morta.
 
 
 
josé miguel silva
vista para um pátio seguido de desordem
relógio d´água
2003




08 junho 2023

vicente gallego / setembro, 22

 
 
 
                                                           setembro, 22
 
 
Dizes-me que tudo isto é absurdo,
que não tem sentido a vida se a pensares.
Não é, porém, um fim o que eu procuro,
qualquer explicação ou uma promessa,
mas sim estar aqui e à deriva,
uma garrafa que na praia
aguarda a maré, nenhum caminho ou ansiedade,
o completo abandono sobre a água,
no mar, sendo parte das ondas
unicamente, a absoluta plenitude no oceano,
não a venda que a vossa meta põe nos meus olhos
pois esse fim pressupõe uma renúncia.
Nada parece alheio se respira,
mas não te enganes, o absurdo só existe
a partir da aceitação de um paraíso imaginado.
 
 
 
vicente gallego
poesia espanhola de agora II
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997
 

07 junho 2023

pier paolo pasolini / sem ti regressava

 
 
Sem ti regressava, qual bêbado,
incapaz de estar só à noite
quando as cansadas nuvens se dissipam
na escuridão incerta.
 
Estive milhares de vezes só
Desde que estou vivo, e em milhares de noites
                                                           iguais
foram-me escurecidos aos olhos a relva, os
                                                        montes,
os campos, as nuvens.
 
A sós de dia, e depois adentro o silêncio
da noite fatal. E ora, bêbado,
regresso sem ti, e ao meu lado
só há sombra.
 
E de mim longe estarás milhares de vezes,
e depois para sempre. Não sei travar
esta angústia que galopa dentro do peito;
estar só.
 
 
 
pier paolo pasolini
a poesia é uma mercadoria inconsumível
poemas e recensões
trad. joão coles
sr teste edições
2022




06 junho 2023

maurice blanchot / embora com a vista apenas diminuída

 
 
Embora com a vista apenas diminuída, andava pelas ruas como um caranguejo, agarrando-me firmemente às paredes e, assim que as largava, uma vertigem cercava os meus passos. Frequentemente via o mesmo cartaz nas paredes – um simples cartaz com letras enormes: Tu também o desejas. Claro que o desejava. E a cada vez que esbarrava nestas palavras, eu desejava-o.
 
 
maurice blanchot
a loucura do dia
trad. ricardo ribeiro
sr teste edições
2021




05 junho 2023

benjamin péret / melancólica sala da caldeira

 



 
Sonho com todas as estrelas
e elas fazem o mesmo
Não há tempo a perder
tudo isto vai rebentar
Estamos perdidos
estamos perclusos
Suspirar ou olhar
nem nem já não sonho e vou-me embora
Não estamos perdidos
 
 
 
benjamin péret
sol de bolso
uma antologia de poemas
trad. regina guimarães
contracapa
2023




04 junho 2023

robert desnos / conto de fadas

 
 
Era uma vez muitas vezes
Um homem que amava uma mulher
Era uma vez muitas vezes
Uma mulher que amava um homem
Era uma vez muitas vezes
Uma mulher e um homem
Que não amavam aquele e aquela que os
                                                                  amavam
Era uma vez
Talvez uma vez apenas
Uma mulher e um homem que se amavam
 
 
 
robert desnos
luto por luto / poemas
trad. diogo paiva
sr teste edições
2022




03 junho 2023

alejandra pizarnik / como água sobre uma pedra




                
a quem regressa em busca da sua antiga busca
a noite fecha-se como água sobre uma pedra
como ar sobre um pássaro
como se fecham dois corpos ao amar-se
 
 
 
alejandra pizarnick
antologia poética
extracción de la pidra de locura (1968)
tradução fernando pinto do amaral
tinta da china
2020


 



02 junho 2023

octavio paz / madrigal



 

Mais cristalina
que essa gota de água
entre os dedos da trepadeira
meu pensamento estende uma ponte
de ti mesma a ti mesma
                                   Vê-te
mais real que o corpo que habitas
imóvel no centro de minha fronte
 
Nasceste para viver numa ilha
 
 
octavio paz
antologia poética
iniciação (1964-1968)
trad. luís pignatelli
publicações dom quixote
1984


 



01 junho 2023

martín lópez-vega / junho

 
 
                             Vai donc, e si-t prec del chan
                             Que no-l peiurs.
 
                             Giraut de Borneth

 
 

Conduzíamos rumo a Piran
enquanto um melro
bicava uma cereja
e deixava dentro a sua canção.
 
Passeámos junto ao mar.
Invejámos os adolescentes que riam
seminus e se semidesnudavam
uns aos outros apenas com o olhar.
O tempo nunca faz o caminho de volta,
pensámos todos, mas ninguém o diz.
Nem faz falta, escapou-se-me em voz alta.
Comemos peixe defronte à Croácia.
Sonhámos ser amigos das velas.
A Casa de Giuseppe Tartini estava fechada
mas escutámos um violino tocado
quem sabe se pelo sue fantasma.
 
Já de volta
detivemo-nos no caminho
para comprar fruta recém-colhida.
A primeira cereja que comi
estava bicada por um pássaro,
e agora trago dentro a sua canção.
 
 
 
martín lópez-vega
a eterna qualquercoisa
tradução de jorge melícias
officium lectionis edições
2022




31 maio 2023

rui diniz / carta



 
Escrevo-te da noite girassolada dos trópicos. A riviera é
Um velhíssimo meeting de gerações de ébrios. As raparigas,
em Madrid, foram muito amáveis. Mas tenho razões para
voltar a barcelona, talvez no verão. Viajei no comboio
de Paris onde conheci alguns escritores refugiados. Um poeta
das astúrias ria com vinho escorrendo-lhe dos lábios.
Tenho a impressão que em alguns minutos te descrevia
O amor quente que me tomou em Almalfi, onde me lembro
de sebastian. Subitamente, num outono escuro, em Pádua de
que já falei, estive toda uma tarde a ler os teus poemas e
a chorar. Fazia um vento azulado e áspero e as mesas de
metal emitiam dolorosos sons ao longo da vazia esplanada.
Dos jardins queimados em Toledo não te direi nada. Ríamos.
Éramos um grupo estranho, talvez por um sopro azulado de
Nêsperas ter feito curvar os rostos até aos livros, numa
praia. Era o algarve, extenso, com a doce cal e os terraços
de choro nocturno, com o céu claríssimo do sul sacrificando
o que nos era possível criar, escrever, amar. Regressei
a portimão quando as flores de pesca se alongavam
pela margem. Alguém me escrevera de um café em Lagos
e eu conhecia mesmo vários poetas em badajoz, onde me
lembro de hemingway indo às touradas. Escrevo-te
pois, de um snack-bar, em pleno setembro, com um
rosto lindíssimo afundado numas nuvens, e destilando
o seu cinzento choro, com a guerra civil cantando
à minha volta os hinos roucos das ruas, suaves como
casacos de montanha, com a sua maquillage
de sangue e de crianças. Tudo são preparativos para uma
expedição que desconheço, mas lentamente em mim
apercebo-me de que também eu irei nela e verei os
aviões sobrevoando os vestidos escuros das mulheres,
onde os lábios desmanchados compõem ao som das
fogueiras nocturnas e nos vasos áticos do repouso,
as amadas flores de sal, os beijos ardentes que receberão
os poetas presos no Bósforo.
 
 
 
rui diniz
ossuário
(ou: a vida de james whistler)
& etc
1977



 

30 maio 2023

luís miguel nava / os nervos

 



 
Começaram-se-lhe os nervos, um dia, a reproduzir com uma violência inusitada, abrindo-lhe por fim a pele, por fora da qual, como a hera nas paredes, rapidamente se espalharam, sobrepondo-se aqui e acolá à própria roupa, com que deixou de poder dissimular o acontecido. Não havia, além disso, peça de vestuário que, depois de a ter vestido há algumas horas, o seu espírito já quase não houvesse totalmente devorado. O mesmo sucedia com os óculos. À nudez que o espírito lhe impunha, vinha-se juntar assim uma espécie de cegueira, entre as quais não tardou a haver quem encontrasse afinidades.
 
 
 
luís miguel nava
o céu sob as entranhas
poesia
assírio & alvim
2020




29 maio 2023

rui costa / a selva é redonda

 



 

Os macacos comem bananas porque
era a fruta que tinham mais à mão.
Se tivessem mais à mão morangos, os
macacos comeriam na mesma bananas,
porque os morangos são muito difíceis de
descascar. As bananas são comidas por
macacos porque são os animais com mais
mãos que têm ali à mão. As bananas não
têm mãos mas têm casca, que é uma espécie
de mão à volta da banana. As bananas prefe-
riam ter mãos mas saiu-lhes antes casca.
Ser casca não deve ser fácil, passar a vida
a ser deitado fora. Os árbitros de futebol
têm duas mãos, uma para cada cartão.
Os macacos também arbitram as bananas,
Comendo-as. Os macacos não mostram
os cartões às esposas. Preferem seduzi-las
usando da inteligência. Não sei como vim
parar à selva. Talvez tenha corrido demais
atrás da bola.
 
 
rui costa
«se uma estrela me falha, agarro numas nuvens»
mike tyson para principiantes
antologia poética
assírio & alvim
2017