11 maio 2023

concha garcía / um gesto útil

 
 
Nove em cada dez vezes
da pouca juventude que resta
meto-me no fundo, simulo
que o negro é uma luz
e no seu reflexo olho pontos mortos.
Uma mulher que escreve um verso
afunda-se na palavra, pisca os olhos
diante de uma cintilação pergunta-se
se tal como ela esquece
também os outros esquecem.
 
 
 
concha garcía
ayer y calles
poesia espanhola de agora vol. I
tradução de joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997



10 maio 2023

rúben marques / reflexos

 
 
Não escrevemos poesia,
Escrevemos janelas interiores
Para acordar as verdades
Simples e óbvias,
Em nós
E em quem se julga sozinho.
 
 
 
rúben marques
quem somos quando ninguém nos vê
cordel d´prata
2023





09 maio 2023

jack gilbert / é óbvio porque é que os anjos não voltam

 
 
É óbvio porque é que os anjos não voltam.
Ali parados, majestosos, no seu belíssimo latim,
como podiam eles aceitar ser diluídos
tão diminutamente noutra gramática, ou abandonar
o seu canto perfeito por esta fala avariada?
Porque deveriam eles tropeçar por este mundo estranho?
 
Invejei sempre aos anjos a sua graça.
Mas larguei a minha esperança de tamanho bizantino
e cheguei a este embaraço, a esta estupidez.
Cheguei finalmente a ti e lavavas-me a cara
enquanto todos se riam, e encontrei uma floresta
abrindo-se enquanto o casamento corria em mim. Todas
 
as folhas no mundo teceram uma pequena
entoação: os anjos estão errados.
 
 
 
jack gilbert
deixem-me ser ambos
trad. leonor castro nunes e marcos pereira
destrauss
2020




08 maio 2023

robert frost / o caminho que não tomei

 



 
Dois caminhos, um para cada lado:
Ah, ir por ambos na mesma viagem!
Olhei para o primeiro ali, parado,
Nesse bosque de tom amarelado,
Até perder-se longe entre a folhagem.
 
Mas o outro também me atraía,
Por uma razão diferente, afinal:
Desbastar erva que densa crescia.
Quem por eles passara, todavia,
Os fora desgastando por igual.
 
E cada um nessa manhã jazia
Com a mesma cor, a mesma frescura.
Reservei o primeiro para outro dia!
Como um caminho a outro levaria,
Duvidei lá voltar noutra altura.
 
Daqui a mil anos, o que aconteceu,
Suspirando, estarei contando a ti:
Dois caminhos bifurcavam, e eu –
O menos pisado tomei como meu,
E a diferença está toda aí.
 
 
 
robert frost
antologia de poesia anglo-americana
de chaucer a dylan thomas
tradução antónio simões
campo das letras
2002
 


07 maio 2023

cesare pavese / a arte de desenvolver os pequenos motivos




9 de Outubro de 1938
 
A arte de desenvolver os pequenos motivos para nos decidirmos a realizar as grandes acções que nos são necessárias. A arte de nunca nos deixarmos desencorajar pelas reacções dos outros, recordando que o valor de um sentimento é juízo nosso, pois seremos nós a senti-lo e não os que assistem. A arte de mentir a nós próprios, sabendo que estamos a mentir. A arte de encarar as pessoas de frente, incluindo nós próprios, como se fossem personagens de uma novela nossa. A arte de recordar sempre que, não tendo nós qualquer importância e não tendo também os outros qualquer espécie de importância, nós temos mais importância do que qualquer outro, simplesmente porque somos nós. A arte de considerar a mulher como um pedaço de pão: problema de astúcia. A arte de mergulhar fulminante e profundamente na dor, para vir novamente à tona graças a um golpe de rins. A arte de nos substituirmos a qualquer um, e de saber, portanto, que cada pessoa se interessa apenas por si própria. A arte de atribuir qualquer dos nossos gestos a outrem, para verificarmos imediatamente se é sensato.
 
A arte de viver sem arte.
 
A arte de estar só.
 
 
 
cesare pavese
o ofício de viver - diário (1935-1950)
trad. alfredo amorim
relógio d´água
2004
 



 

06 maio 2023

gonçalo m. tavares / o táxi



 
Uma mulher levanta o braço. Está no passeio. Não tem pressa, mas levanta o braço e acena com a mão. O táxi pára. Está vazio, mas não pára.
 
A mulher veste calças elegantes, castanhas. Tem um lenço ao pescoço.
 
De novo, vemos a sua mão levantada a acenar. Outro táxi que não pára.
 
A mulher está a sorrir. É bonita. Levanta o braço de novo. Estamos sempre a vê-la, a ver o seu entusiasmo sorridente. Mas não, de novo o táxi não pára. Também vazio, mas não pára.
 
O plano agora abre-se mais. Vemos a mulher, sim, as suas calças elegantes castanhas. E, junto aos seus pés, um corpo inerte; provavelmente morto.
 
 
 
gonçalo m. tavares
short movies
caminho
2011
 



 

05 maio 2023

konstantinos kaváfis / na aldeia aborrecida




 

Na aldeia aborrecida em que trabalha –
empregado num estabelecimento
comercial; muito jovem – e onde aguarda
que passem ainda dois ou três meses,
dois ou três meses ainda para que o trabalho abrande,
e assim possa ir para a cidade e todo
se entregar ao bulício e à diversão;
na aldeia aborrecida em que aguarda –
caiu esta noite na cama tomado pelo amor,
abrasada toda a sua juventude na paixão da carne,
numa bela intensidade toda a sua formosa juventude.
E com o sono chegou o prazer; no sono
vê e faz sua a imagem, a carne que desejava…
 
1925
 
 
 
konstantinos kaváfis
konstantino kaváfis, 145 poemas
tradução de manuel resende
flop livros
2017


 



04 maio 2023

jorge de sousa braga / montanhas

 
 
1.
Quando uma montanha se apaixona tudo pode acontecer… Começar aos saltos ou então ficar para ali deitada a olhar as nuvens. Convém por isso não a escalar nesses dias e sobretudo não beber da água das suas nascentes.
 
2.
As montanhas apaixonam-se com frequência. Vestem-se de branco. De verde ou azul. Por vezes abrem as pálpebras. E a lava da sua paixão corre-lhe pelas faldas.
 
 
 
jorge de sousa braga
o poeta nu
fenda
1991
 



03 maio 2023

joan margarit / depois de jantar

 
 
 
Oiço tocar à porta e vou abrir
mas não é ninguém.
Penso naqueles que amo e não virão.
Não fecho a porta e insisto em dar as boas-vindas.
Com a mão no puxador, espero.
A vida vai-se ancorando na dor
como as casas sobre os alicerces.
E sei por quem me demoro lançando o feixe
de luz familiar na rua deserta.
 
 
 
joan margarit
misteriosamente feliz
trad. miguel filipe mochila
flâneur / língua morta
2020




02 maio 2023

carlos saraiva pinto / havia mais ar

 



 
havia mais ar.
mais limites de árvores.
um charco era um espelho
que tinha sua esperança
e os musgos sabiam que a chuva
chegava cedo
quando o outono
escolhia os choupos das margens
para dar ao douro
o nome que um corpo sentia,
 
próximo da boca e do olhar
por quem são João da cruz
abandonava neve nas montanhas
 
eu subia para a lareira
e tudo era um livro aberto
de navios infantis
no caudal dos tanques.
 
hoje, a luz é mais complexa
e dorme neste quarto asilar
a que pertence a desordem
dos papéis.
os meus projectos são poucos.
apenas desejo sentir os ombros
sobre as ruínas das famílias sepultadas.
 
teu ramo de rosas chegou tarde.
 
o sublime não arde nos quintais
onde decido desprender-me
dos papéis insensatos e loucos.
 
a orfandade é o ciclone que uivará
nas vidraças
que escondem aquele recanto da casa
em que repousa a minha cabeça na travesseira.
 
O tempo não pertence ao amor.
tarde o reconheço.
 
a palavra da vigília
alimenta vasos e sementeiras
que no pátio
dão alguma serenidade
àquilo que a poesia antecipa.
dispo o casaco vulgar
e a poeira torna-se líquida.
os remos são poucos
nas metáforas.
nem sei se o pão
que trouxe para as paisagens
bastará para a fome.
 
 
 
carlos saraiva pinto
escrever foi um engano
o correio dos navios
2001
 



01 maio 2023

alexandre o'neill / o tabaco da vida

 



 
De amor cantando,
sem nele demasiado acreditar,
dei a volta ao coração (demorei anos):
está só – mas sem nenhuma vontade de parar…
 
Desiludidos? Paciência, amigos…
Bebamos mais, fumemos, refumemos,
entre as mulheres, o tabaco da vida.
Como cedilhas pendurados que felizes seremos,
 
exemplares cretinos nesta noite comprida…
 
 
 
alexandre o´neill
poemas com endereço 1962
poesias completas
assírio & alvim
2000
 



30 abril 2023

irene lisboa / se eu fosse…

 



 

Se eu guardasse patos.
Mas não figura romântica, dama, estilizada.
Não como a que se debruça risonha, regaçada,
para o lago pequeno do jardim da Estrela.
 
Se eu guardasse patos, de pé descalço ou de
tamancos…
De cana na mão, malhada do sol, esgrouviada,
sem graça nem disfarces!
Levaria o meu rebanho à minha frente, direitinho
à pancada.
Vá tu, mole. Vá tu, mal mandado. Vá, vá!
 
Real guardadora de patos de borda-de-água…
Se eu fosse!
Patos, meus cuidados, batidos e dóceis correríeis
como gamos.
 
Ou se eu fosse uma mulher de canastra.
Das que atravessam a correr as pranchas, carre-
gadas e airosas.
Tantos passos para lá, tantos outros para cá…
Entre o barco e o cais o espaço é curto e
debaixo há água.
E a prancha ginga.
Mas elas correm pesadas, seguras e rítmicas.
 
Ser uma mulher de canastra…
Se eu fosse!
 
 
 
irene lisboa
um dia e outro dia…
poesia I
obras de irene lisboa  I
editorial presença
1991
 



29 abril 2023

manuel gusmão / é isto: a noite de manhã


8
 
É isto: a noite de manhã
Tu levantas-te
 
Manhã e noite não se vêem ao espelho
antes o estilhaçam para dentro
desencontram-se interminavelmente
 
mas ouvem-se uma à outra entre as salas da casa
 
Tu estás súbita ali na esquina do corredor
sinto por momentos a tua cara negra
e a imensidão do teu corpo anoitecido
 
passas-me a manhã devagar
de mão a mão
como um mapa fosforescente
 
onde por certo íamos morrer
 
 
 
manuel gusmão
mapas o assombro a sombra
anos 90 e agora
uma antologia da nova poesia portuguesa
selecção e organização de jorge reis-sá
quasi
2001