12 novembro 2022

fernando alves dos santos / novo

 



 

Novo é aquilo que o desejo diz
o texto que existe
no subterrâneo das palavras
que se escrevem no espaço da sede.
Novo é o verbo que me encontra
e respira            e não cessa
e regressa
seara orvalhada.
Novo é o tronco
que não demora a crescer
para os olhos do sol.
Novo é a seiva
que no tronco circula pertinaz.
 
 
 
fernando alves dos santos
diário flagrante [poesia]
edição perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
2005
 




11 novembro 2022

fátima maldonado / cinco poemas do quotidiano

 
 
1
 
A casa recusa adormecer
lá fora um pássaro simulando extravio
pede socorro.
Um pensamento a néon cintila
azul prateado,
ressoando bate nos móveis, não se despedaça
e mergulha na chávena onde enfim descansa.
O que fazer neste tempo que vai arrefecendo
e mesmo arrefecendo não se multiplica,
não se transforma em matéria nova, decomposta
permanece assim abandonado a cada síntese julgada pertinente.
Nenhum de nós se gaba de ter transformado seja o que for,
é exacto, ninguém abalou o alicerce.
As colunas mantêm-se de pé, abanaram apenas e persistem.
O olhar descansa numa concha, detém-se num rochedo
e retorna à pupila.
O que sentimos bate nas coisas e regressa a penates.
Olhando a pedra, a estria, a recortada pena, a pele da maçã,
Apenas se detecta um crispado arrepio, leve memória.
O arranhão não fere, a linfa prosseguindo circula mais depressa.
 
 
 
fátima maldonado
sem rasto
cinco poemas do quotidiano
averno
2021






10 novembro 2022

fernando lemos / falam de pão

 



 

Falam de pão
mas comem pão
falam de suor mas tomam banho
falam de amor mas traem amigos
falam de injustiça
falam de justiça
mas roubam
falam de tudo
mas fazem tudo
 
falam mas não desistem
não pensam nem se recusam
ninguém se demite
daquilo que é
 
entretanto as coisas acontecem
embora poucos olhem para elas
 
 
 
fernando lemos
poesia
porto editora
2019




09 novembro 2022

jorge de sena / descerrar




Cansado, consentir-me-ei.
 
Nesse dia próximo ou distante,
                                            quando me sentar,
pegará uma das mãos a outra mão,
direi consolações balsâmicas
do bálsamo guardado avaramente
lá onde a solidão cala a ternura,
direi tão doce, que estarei sorrindo
ao terminar dizendo que o destino existe…
 
e então, hei-de ter piedade de mim próprio.
 
 
 
jorge de sena
coroa da terra (1946)
trinta anos de poesia
editorial inova
1972





 

08 novembro 2022

andrés trapiello / as ruas

 
 
Há uma hora nelas que é perfeita.
Essa hora tão breve
depois de ter fechado o último dos bares.
Hora de madrugada e quase noite,
de maquilhagem e tédio e o estômago frio.
A hora em que todos nos parecemos tanto
que não nos conhecemos e em que beijar se torna,
portanto, coisa inútil,
porque beijamos nada, uma miragem
debaixo da luz azul da alba
mais pura que o álcool e mais daninha.
A hora em que inferno e paraíso têm
uma porta comum: a debandada.
A essa hora as rua
a pessoas como tu ou como eu
reconhecem-nos e acompanham-nos
com o seu silêncio cúmplice.
E se a negra sorte quer
que vomites a tua vida numa esquina,
elas voltam a cara para outro lado,
e seguram-te pelo braço, como o melhor amigo.
 
 
 
andrés trapiello
poesia espanhola de agora vol. I
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997
 



07 novembro 2022

pablo neruda / volta o outono

 
 
Um enlutado dia cai dos sinos
como teia tremente duma vaga viúva,
é uma cor, um sonho
de cerejas afundadas na terra,
é uma cauda de fumo que chega sem descanso
para mudar a cor da água e dos beijos.
 
Não sei se me entendem; quando lá do alto
se avizinha a noite, quando o solitário poeta
à janela ouve correr o corcel do outono
e as folhas do medo calcado estalam nas suas artérias,
há qualquer coisa sobre o céu, como língua de boi
espesso, qualquer coisa na dúvida do seu e da atmosfera.
 
Voltam as coisas ao lugar,
o advogado indispensável, as mãos, o óleo,
as garrafas,
todos os indícios da vida: sobretudo as camas
estão cheias dum líquido sangrento,
as pessoas depositam a confiança em sórdidos
                                                        [ouvidos,
os assassinos descem escadas,
e afinal não é isto, mas o velho galope,
o cavalo do velho outono que treme e dura.
 
O cavalo do velho outono tem a barbada
                                                       [vermelha
e a espuma do medo cobre-lhe as ventas
e o ar que o segue tem forma de oceano
e perfume de vaga podridão enterrada.
 
Todos os dias desce do céu uma cor de cinza
que as pombas devem repartir pela terra:
a corda que o esquecimento e as lágrimas
                                                   [entretecem,
o tempo adormecido longos anos dentro dos
                                                            [sinos,
tudo,
as velhas roupas traçadas, as mulheres que
                                      [vêem chegar a neve,
as papoilas negras que ninguém pode
                                   contemplar sem morrer,
tudo vem cair às mãos que levanto
no meio da chuva.
 
 
 
pablo neruda
antologia breve
tradução de fernando assis pacheco
dom quixote
1971




06 novembro 2022

ovídio / metamorfoses

 


 

“Se tu me conhecesses bem, arrependias-te de fugir de mim;
tu própria reprovarias as demoras e tudo farias para me reter.
Tenho grutas, parte de uma montanha, de tectos abobadados
na rocha viva, onde nem o sol no pino do Verão se sente,
nem se sente o Inverno. Tenho maçãs nos ramos carregados,
tenho, nas longas vides, cachos de uvas iguais ao ouro,
e tenho também purpúreas; umas e outras guardo para ti.
Com as tuas mãos, tu própria colherás deliciosos morangos
que brotam na sombra do bosque, colherás cornisos outonais
e ameixas, não só aquelas azuladas com o seu sumo escuro,
mas também aquelas, tão requintadas, que parecem cera fresca.
Se casares comigo, jamais te faltarão castanhas, jamais faltarão
os frutos do medronheiro; todas as árvores serão ao teu serviço.
Todos estes rebanhos são meus; muitos outros erram nos vales,
muitos no bosque se abrigam, muitos estão recolhidos nas grutas.
Não seria capaz de dizer quantos são, se acaso perguntasses.
Só pobres contabilizam os animais! No elogio que lhes faço,
não precisas de acreditar: vem aqui e tu própria poderás ver
como de tão inchados os úberes mal cabem entre as coxas.
E quanto a crias, possuo em tépidos redis cordeirinhos,
e possuo também, da mesma idade, cabritos noutros redis.
Nunca me falta o leite da cor da neve; parte dele guardo
para o beber, parte o coalho nele dissolvido endurece.
As prendas que te caberão não são encantos fáceis de obter,
nem demasiado banais, como gamos ou lebres ou um bode,
ou um casal de pombas ou um ninho roubado a uma copa.
Nos cimos da serra descobri, para poderem brincar contigo,
duas crias de felpuda ursa, de tal forma iguais entre si
que dificilmente conseguirás distinguir uma da outra.
Achei-as e disse: ‘estes vou guardar para a minha senhora’.
Agora, tira só a tua brilhante cabeça para fora do mar azul,
vem agora, Galateia, e não desdenhes os meus presentes!
 
 
 
ovídio
metamorfoses
livro XIII
tradução paulo farmhouse alberto
livros cotovia
2018

 




05 novembro 2022

abdul hadi sadoun / que passem estes dias

 



Que passem estes dias
e a chuva me acaricie
ou me magoe,
é o mesmo.
A montanha vizinha
persiste em olhar-me,
em falar comigo,
a pobre, rocha gigantesca,
persiste na solidão
e eu sobre ela sentado
encurtando o breve caminho do voo.
 
 
 
abdul hadi sadoun
todos escrevem sobre o amor menos tu
trad. manuel neto dos santos
editora urutau
2021

 




04 novembro 2022

joaquim manuel magalhães / adiafa

 



Esta noite dormi com os amantes
que tinham morrido. Ouvia-os
no espaço por onde ondeia o nada.
nenhum falhou no seu precipício.
 
Noites com divãs perto das janelas,
tapetes que deixavam nas costas
as suaves marcas da lã,
lamparinas que vacilavam quartos desaparecidos.
No enclave da vida adormecem-nos com jeito
em braços prontos para a corrida sem fim
com que ganhamos a mordaça do reconhecimento.
 
Visitam-me com a separação,
respiram sem som algum,
com a alma já não peregrina.
Emprestam à minha mão o sexo
que também eles um dia prenderam,
o obscuro onde a garra deflagra
para que chegue um resto desse odor
que deixavam ao partir, num fim de tarde,
na gabardina colhida depois de toda a roupa
ter sido o nosso chão.
 
Na rede transitória da paixão já sem causa
encontro a semente cujo limite
é o entorpecimento, e também a pujança
que perdeu a autoridade dos sentidos.
 
Há uma distância destruída
mesmo no lugar sobre o qual ousamos
reconhecer-nos sem nenhum sinal.
Perdem no artifício a proporção,
eles que foram sempre o meu aviso
sem nada cumprirem do que me avisavam.
E nessa lonjura de um olhar que quer perder-se
raiam na beleza dos mais justos filmes pornográficos.
 
O dízimo do mundo numa noite de outono,
o lugar aceso da lareira enferrujado,
o vazadouro agreste em que nos cerraram.
O que mata transporta estas oferendas,
esta catástrofe apaziguada,
enquanto detrás de um qualquer portão
se aproxima a máscara de cada forma,
toda por dentro da ossatura já desfeita
e nem então desaparecem.
 
Tudo o que se diz ou faz
sem o amor ter chegado ou porque partiu
é um trabalho desconjunto
pronto para a saliva do arrependimento.
A qual em massa com cada regra esquecida
nada consegue nunca vedar.
 
Tornam-se inteiramente aquilo
que certa vez me deram
com o seu toque da morte.
Trazem o amor e o pequeno amor.
E quando um amplo quarto no coração
nos renova sem qualquer travessia
afastam-se para o que não tem fim.
 
Permaneço no escuro, entrevejo
a rega rarefeita que cintila, descubro
o ritmo decepado da matéria
e no lugar que nos segura
estamos assim acompanhados
pela boa aventurança do que só existe
na mão ausente em despedida.
 
Não podia nem maior ser cada avanço
e contudo o resto do corpo inebriado
esqueceu-se dos caminhos, escuta
amortalhada a planície incolor
e quase toca os que não mais a voltarão a ver.
As conversas vinham daí, daqueles sons deitados
onde golpeava um foco que reacendia pupilas
e as suas pernas estendiam-se no ferro
de um repouso, à sombra
das altas neves que na cerviz dormiam.
 
A força, que fez jorrar o meu mais dentro
em líquidos que nos apagam a fogueira
logo reacesa, é um cordão sem nó que prenda,
um gaveto oculto de que são estilhaço,
um contágio divagante, um aconchego bárbaro
à pouco urgente divindade da vida.
 
Quando a meio da noite me levanto
e vejo pousado o comprimido
não percebo como adormeci tão de repente.
Mas entenderei depois que na madrugada
o pavor não queria senão entender
a sabedoria fantasma das glândulas
que tanto assusta quando a alba tarda em romper;
e depois de vinda nos obriga a agir
com os lençóis pousados na cabeça
à espera da dissolução e do porvir.
 
Com tanto túmulo para visitar.
 
 
 
joaquim manuel magalhães
alta noite em alta fraga
relógio d´água
2001





03 novembro 2022

maria gabriela llansol / inquérito às quatro confidências

 


16 de Março de 1995
 
 
_________________________________cada um de nós escreverá o que viu – «ex-crê-ve-rá», como diz o meu companheiro filosófico – e, como rotas planetárias diferentes mas do mesmo sol, estaremos em conjunção no circo da estrebaria de Herbais, daqui a nove meses e alguns dias.
 
     No há que escolhi,
a minha espinha dorsal é o júbilo. Escrever
está dentro do redil do paraíso, que é também uma sebe onde
eu entro através do ar; minha constituição material é frágil;
de facto, os pés são a minha única matéria não
constantemente atravessada pelo ar,
que leva imagens,
traz imagens e é,
muitas vezes,
persistente nos perfumes que a tristeza leva.
 
     Quem foi a tristeza?
 
 
 
maria gabriela llansol
inquérito às quatro confidências
relógio d´água
1996
 




02 novembro 2022

antónio franco alexandre / corto viaggio sentimentale, capriccio italiano



4
 
mas chegados em terra o que tinha
para te dar era pouco. vivia, então,
marquês, de ramo em ramo;
dizia hegel, murmurava kant,
adivinhava verdi de assobio;
em duras mãos, em duros lábios
colhia o suor branco do teu corpo
como água do lume.
 
 
 
antónio franco alexandre
quatro caprichos
assírio & alvim
1999




 


 

01 novembro 2022

luís miguel nava / transparência

 



 

Momentos há em que a toda a nossa volta os objectos se tornam insuportáveis como se nos roubassem o ar, como se neles houvesse uma respiração onde o ar e a luz interviessem simultaneamente. Entre os sabores que tocam no meu espírito procuro então o que melhor me possa devolver à transparência, não a dos espelhos ou dos vidros, que a literalidade impregna, mas a abrupta transparência dos sentidos.
 
 
luís miguel nava
o céu sob as entranhas
poesia completa (1979-1994)
publicações dom quixote
2002




 


31 outubro 2022

juan luis panero / cerimónias de outono


 
Entre a pele e o osso ainda respira um tremor
– isso a que chamam alguns alma –
um obstinado estertor, inútil esforço de sobrevivência.
A vida e as suas ocultas raízes tenazes aferram-se
no húmido entardecer, de princípios de outono,
enquanto o distorcido rosto representa o seu estranho papel
e o coro, com a sua estúpida e crédula aparência,
aposta no mais além ou no mais aquém, que importa?
Apenas uma respiração, apenas uma respiração entrecortada,
entre a pele e o osso,
simboliza um final ou, simplesmente,
o nevoento sonho de outro sonho deserto.
E para quem tantas aparatosas expressões,
se todas as testemunhas, os olhos que, quase às escondidas,
se olham e se encontram, unicamente afirmam
o terror – tão real – do próprio cadáver delas?
Depois – fora do hospital inóspito –
a última luz do sol desenha o mar,
ocultando-se detrás do verde e da pedra do Monte Igueldo
e treme nas tuas mãos o pesado copo
que leva aos teus lábios o vidro funerário,
onde o álcool e o gelo desenham outra morte.
 
 
 
juan luis panero
poemas
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2003