25 outubro 2022

julien gracq / inabordável

 
 
É uma jovem mulher sob os passos da qual as imagens se erguem, profusas. Por vezes, numa senda de abril, ela levanta uma mão mole e doce tal uma pena e acalma, como que a contra-gosto, as inquietudes da paisagem – ou então a misteriosa assinatura do seu andar entre margens de betume rivaliza com o mais belo instrumento do literato. Gosto de seguir os meandros duma rua colorida, o fio dessa melodia de morte súbita que a sua aparição repercute, dum lado para o outro, do horizonte das fachadas. Que rua sonora – onde um teatro arrasado, vitrinas estilhaçadas, ardinas uivando o mais belo assassínio do século – que vidrilhos pintados a sangue, que belo sangue espumando e cantando algo parecido a trinados, a harpejos, que flácida inflexão de saxofone poderá alguma vez valer, para mim, o olhar que ela derrama, a partir do canto do seu olho preciso e sereno, o regato magnético do seu olhar que corre transbordante entre as casas como a saliva ácida dum glaciar?
 
 
 
julien gracq
sonhador definitivo e perpétua insónia
uma antologia de poemas
surrealistas escritos em língua francesa
trad. regina guimarães
contracapa
2021



 
 

24 outubro 2022

wislawa szymborska / paisagem com grão de areia




Chamamos-lhe grão de areia.
E ele a si nem areia nem grão.
Passa muito bem sem nome
genérico, específico,
duradouro, efémero,
erróneo ou real.
 
Nada é para ele o nosso olhar, o nosso tacto.
Não se sente observado e tocado.
E se caiu no parapeito da janela
é peripécia nossa, não dele.
Para ele é o mesmo cair aqui ou acolá,
sem a certeza de já ter caído
ou de estar ainda a cair.
 
Da janela há uma bonita vista sobre o lago
mas esta vista não se vê a ela própria.
Informe e descolorido,
inodoro e sem voz
e sem dor se lhe apresenta o mundo.
 
Como que desfundadamente ao fundo do lago
e desmarginadamente às suas margens.
Nem seco nem molhado à sua água,
nem singular nem múltiplo às suas ondas,
marulhando surdas ao próprio marulhar
ao redor de pedras nem grandes nem pequenas.
 
E tudo sob um céu de natureza inceleste
onde se põe um sol nunca poente
escondendo-se sem se esconder atrás de nuvem inconsciente.
Impele-a o vento sem outra razão
a não ser a de que venta.
 
Passa um segundo.
Dois segundos.
E um terceiro.
Mas são só nossos estes três segundos.
 
Precipitou-se o temo como mensageiro com notícia premente.
Mas a comparação é apenas nossa.
A figura inventada, a pressa insinuada,
e a notícia inumana.
 
 
 
wislawa szymborska
paisagem com grão de areia
trad. júlio sousa gomes
relógio d’água
1998
 



 

23 outubro 2022

gonçalo m. tavares / o amor



 

A Natureza tem uma entrada por trás
como os clubes clandestinos;
e o coração, mesmo apaixonado, não é tão estúpido
como uma galinha, por exemplo,
que é capaz de seguir durante horas
uma linha traçada a giz no chão.
 
 
 
gonçalo m. tavares
1 poesia
relógio d´água
2004





 

22 outubro 2022

gastão cruz / corda

 
 
Ninguém tem nome: apenas uma escura
corda de sons que prende o corpo e deixa
queimaduras na pele, esse é o preço
de ser nomeado porque o chamamento
 
de cada vez se torna mais ardente
até ser casa ou roupa ou outra pele
que fere o corpo e finalmente o veste
do nome que é o dele
 
 
 
gastão cruz
relâmpago, revista de poesia nº 34
abril 2014
fundação luís miguel nava
2014




21 outubro 2022

josé viale moutinho / triestinos

 



à ilse pollack e à claudia santos
 
 
 
1      com os vidros anos se desdobram
        murmuram-se os jogos e as damas
        como um regresso a todas as mesas
        onde o vento começa a completar-se
 
2      havia uma corda no meio da terra
        e todos os bustos do jardim municipal
        slataper saba joyce svevo e os outros
        ouvindo o que resta do vento do outono
 
3      quem se eu gritar virá à porta
        do castelo trazer-me os papéis de rilke
        e asas para que voe até ao rochedo
        de dante onde falo com nuvens baixas
 
4      merda jovem príncipe das pedras
        que as paredes se tornem chamas
        aí onde o rasto de rilke é castelo
        de cartas e papéis assombrados
 
5      eis alguns dos rostos de bronze
        sobre cada pedra os seus nomes
        numa escrita que a chuva limpa
 
        e o pó em joyce a erva em slataper
        uma gota de água em umberto saba
        svevo folhetim no diário popular
 
        aqui não entram os cães nem o vento
        e entre as árvores nada acontece
        as alamedas são o esguio giotti
 
        das bicicletas dos triestinos dos
        olhos tristes de quem se afasta
        deste outono de apontamentos mortos
 
 
 
josé viale moutinho
hífen 2 abr / set 88
cadernos semestrais de poesia
1988

 

 


20 outubro 2022

rui caeiro / o toureiro de deus

 




Os que procuram Deus nos pátios da miséria,
onde ele não está
 
os que procuram Deus nos jardins da abastança,
onde ele também não
 
os que procuram Deus na memória longínqua,
onde ele nunca por nunca
 
e os que o procuram nos curros onde, cegos,
os touros investem a esmo
 
porque é aí, porque é aí e não em outro lugar,
porque é precisamente aí
 
 
 
rui caeiro
o toureiro de deus
o sangue a ranger nas curvas apertadas do coração
maldoror
2019





 


19 outubro 2022

cesare pavese / és como uma terra

 
 
És como uma terra
que nunca ninguém disse.
Não espera nada
a não ser a palavra
que brotará do fundo
como fruto entre os ramos.
Um vento que se aproxima.
Coisas secas e mortas
embaraçam-te e vão no vento.
Membros, palavras antigas.
Tremes no verão.
 
            29 de Outubro de 1945
 
 
 
cesare pavese
a terra e a morte
virá a morte e terá os teus olhos
trad. rui caeiro
edições do saguão
2021






 

18 outubro 2022

heiner müller / cem passos

 



(segundo Defoe)
 
 
No século da peste
Um homem habitava em Bow, a norte de Londres,
Barqueiro, sem meios nem consideração, mas
Fiel aos seus. Circunspecto mesmo
Na sua fidelidade.
Das cidades a jusante
Onde havia a peste
Ele trazia os víveres rio acima
Para os burgueses ansiosos
Nos seus barcos
A meio do rio.
Assim a epidemia alimentava-o.
Mas a peste estava também
Com a sua mulher e o seu filho de quatro anos
Na sua cabana.
E do rio todas as tardes ele fazia subir, fruto da sua jornada,
Um saco de comida que pousava sobre uma pedra a cem passos da sua cabana.
Depois, estendendo-se, chamava a sua mulher. Observava-a
Quando ela erguia o saco, seguia com atenção cada um dos seus movimentos
Ficava ainda um instante
A boa e segura distância
E respondia à sua saudação.
 
 
 
heiner müller
poemas (1949-1995)
trad. adolfo luxúria canibal
oficina noctua
2021





17 outubro 2022

martín lópez-vega / política




Como tinha lido em René Char
(«Aquele que acredita no girassol não meditará dentro de casa.
Todos os pensamentos de amor serão os seus pensamentos»)
pus girassóis no jarrão, ao lado das laranjas,
em completa harmonia com o teu vestido. Cúpulas douradas
entregues à sua reza, politeísta e nós
dervixes giróvagos em redor da sua alegria.
 
Sobre a mesa os objectos contemplam-se.
Quando a mão os mover
calar-se-ão e falará a mão.
Escuta-os antes,
não terás outra oportunidade;
assim com tudo.
 
Numa conca de madeira com castanhas
uma romã e um marmelo são uma ética.
Como duas partes de algo anterior agora reunido
quando tento pintá-las
o vermelho foge para o amarelo e o verde para o laranja.
 
Na cozinha fumega ainda
o chá vermelho com mel de urze, sem procurar a chave
de uma emoção precisa (cf. Durrell, Lawrence, Collected Poems,
Dutton, New York, 1960, pp. 92-93), enquanto que da rua
chegam pela varanda aberta as vozes dos lojistas,
o chiar da corrente de uma bicicleta,
uma canção que não conhecemos e cujas notas
ouvidas ao acaso procuram o seu lugar bem dentro de nós
para voltar num outro dia a perturbar-nos, sem saber bem porquê.
 
– Que fazeis?
– Política.
 
Parámos a meio do caminho
Que vai do subiectum ao subiectus, detivemos o dispositivo
para contemplar cada detalhe do instante, os ínfimos
grãos de pó suspensos no ar da habitação,
cada minúscula fenda nas vigas de madeira do tecto,
o preguiçoso gato eslovaco, o tiquetaque do despertador,
os livros empilhados, a canção, as vozes, a bicicleta…
parámos o tempo e podemos mover-nos pela sua quietude.
 
– Isto é o que a poesia ensina ao mundo.
– Parecer-te-á pouco.
 
 
 
martín lópez-vega
a eterna qualquercoisa
tradução de Jorge melícias
officium lectionis edições
2022






 

16 outubro 2022

r. lino / palavras do imperador hadriano no princípio de antinöé



o dinheiro ficará pardo
enquanto te uso; relembro;
falo pouco das gretas,
anónimas margens das mãos,
e do calor
mais de ti, porém…
recebo a imortalidade
que para mim deixaste
alienada na obrigação dos escravos,
procurados a partir de nós
– como o Império –
no sítio desta boca.
convém deixar (assim o penso)
outro rasto
feito miragem do trabalho
e, no entanto,
o mundo correrá exactamente
para o contrário.
famoso ficará o inventor
das diferenças no vasto bosque
da igualdade…
tu,
quem eras
para deste modo o permitires?
 
 
 
r. lino
palavras do imperador hadriano
políptico
companhia das ilhas
2016

 




 

15 outubro 2022

bernardo soares / tudo é encontrar qualquer coisa.

 
 
Tudo é encontrar qualquer coisa. Mesmo perder é achar o estado de ter essa coisa perdida. Nada se perde; só se encontra qualquer coisa. Há no fundo deste poço, como na fábula, a Verdade.
 
Sentir é buscar.
 
s.d.
 
 
 
fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol. II
europa-américa
1986




14 outubro 2022

francisco sardo / penélope

 



 
cantariam seus olhos a distância
neles deixaram os meses desavindos
uma promessa embora      ou o desatino
dos dias     na memória atribulada
 
digamos contudo que era apenas
a placidez da noite contra a insónia
a febre desse sonho vigilante
que nos confins da noite ainda esperava
 
 
 
francisco sardo
as rugas do calcário
edição do autor
1983

 


13 outubro 2022

gemma gorga / a casa

 
Os ossos são longos corredores onde faz sempre
frio, como se a morte tivesse deixado a porta
aberta. Talvez seja no coração que primeiro
germina a espora da dor, húmida e vermelha,
mas é nos ossos que essa dor perdura,
insistente, como um grão de areia feito pó.
O ar fica carregado, e desprende-se, dispara, espalha
fotografias sobre estas toalhas
onde é tão difícil acabar o jantar
agora que já não existes, agora que a sala se enche
de absurdas borboletas da memória.
Tento prender-lhes as asas com agulhas
muito finas, mas sem querer perfuro os meus próprios dentes
e lábios. E já não consigo dizer, já não consigo fazer
mais nada a não ser passa-las de uma mão para a outra:
fotografias como pequenas caveiras
entre o ser do passado e o não ser do presente.
 
 
 
gemma gorga
a desordem das mãos (2003)
o anjo da chuva
trad. miguel filipe mochila
do lado esquerdo
2021