29 julho 2022

marta navarro; paola d´agostino / medo, eu?

 
 
 
Medo, eu?
Sim, tive uma vez
 
 
Acabara de bater a meia-noite
eu voltava para casa
pela Rua do Jardim do Tabaco
e num dos armazéns uma sombra
a sombra alta e fléxil de um homem
tira a luva direita
e oferece-me a palma da mão
há pautas no lugar de linhas
 
 
que não seja um conto de fadas
que não seja um conto de fadas
que não seja um conto de fadas
 
 
reconheço a música
já a dancei antes
mas não quero enganar-me outra vez
 
 
 
marta navarro; paola d´agostino
dançam; dançam
edit. a tua mãe
2014



 

28 julho 2022

antónio manuel couto viana / café de subúrbio

  
2.
Choram para o chão os guarda-chuvas.
Chove e faz frio. O café está cheio.
Lento, descalço as luvas,
Pego num livro e leio.
 
É um livro de antiquada poesia:
Uns versos démodés, de um dandismo epocal,
Certa melancolia
E um satanismo gris de Flores do Mal.
 
(Café parisiense. Século XIX.
O absinto e a lavalliére.
Lá fora, como agora, chove, chove…
Ai, com que sugestões a inspiração me fere!)
 
Jovem, alguém, na mesa ao lado,
Espia-me a leitura, num sorriso de dó.
E fecho o livro, desencantado,
Com os olhos e os dedos já manchados de pó.
 
 
 
antónio manuel couto viana
as escadas não têm degraus 4
livros cotovia
janeiro 1991





 
 

27 julho 2022

mário dionísio / memória dum pintor desconhecido

 
 
46
Neste café quase deserto
não espero hoje ninguém
senão a cor difusa duma ausência
que não magoa e sabe bem
 
Uma palavra ou outra incompleta se recorta
na memória um minuto preguiçosa
só mal desperta quando a porta
se abre e fecha e entra alguém
que vai sentar-se longe ou aqui perto
 
O sol de inverno sinto-o nos dedos
como discreta ajuda carinhosa
a esta construída sonolência
tão espontânea sei lá em tanta gente
 
Que longe tudo o que procuro!
 
Ser como os outros todos um instante que seja é tão tranquilo e diferente!
sem planos sem segredos
sem história sem passado sem futuro
 
 
 
mário dionísio
poesia completa
memória dum pintor desconhecido (1965)
imprensa nacional-casa da moeda
2016




26 julho 2022

saint-john perse / canção do presumido

 
 
 
Honro os vivos, tenho rosto entre vós.
E um fala à minha direita debaixo do ruído da sua alma
e o outro sobe para os navios,
o Cavaleiro ampara-se na sua lança para beber.
(Trazei para a sombra, debaixo do umbral, a cadeira pintada do
        ancião.)
 
                                                  *
 
Honro os vivos, tenho graça entre vós.
Dizei às mulheres que alimentem,
que alimentem na terra esse estreito fio de fumo…
E o homem caminha dentro dos sonhos e dirige-se para o mar
e o fumo sobe à ponta dos promontórios.
 
                                                  *
 
Honro os vivos, tenho pressa entre vós.
Cães, oh! meus cães, a vós assobiamos…
E a casa pejada de honrarias e o ano amarelo entre a folhagem
nada são para o coração do homem quando pensa:
todos os caminhos do mundo vêm comer-nos à mão!
 
 
 
saint-john perse
habitarei o meu nome
antologia
tradução de joão moita
assírio & alvim
2016




 

25 julho 2022

josé luis piquero / no parque de campismo

 
 
A sua beleza – um escândalo
de riso e juventude –
não direi que era o único motivo.
Pois é certo talvez que nos podemos
enamorar de pormenores tolos
e queridos – dizia sempre «oh!»
antes de responder; mas além disso dançava
maravilhosamente; e depois aquela
maneira tão graciosa
de usar a madeixa sobre os olhos.
 
No parque de campismo tinha má fama,
um fox-terrier e uma irmã mais nova.
Descíamos à povoação muitas vezes
e eu pagava o cinema, os refrescos,
como um namorado feliz e complacente
que faz festas nas cabeças dos cães e das crianças.
Na noite antes de partir trocámos,
com as direcções, promessas de escrever.
 
E embora seja certo que tenho
o seu postal de Roma e várias cartas,
desse verão guardo sobretudo
a penosa impressão do fracasso cobarde,
certo desassossego que nos dias de sol
me parece vergonha.
                                      Teria sido
muito melhor ter-lhe dado um beijo naquela noite
e perder-me com honra, e não lhe escrever.
 
 
 
josé luis piquero
poesia espanhola de agora vol. II
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997




24 julho 2022

ruy belo / homem perto do chão

 
Na primavera quando as tardes se arredondam
e já nas praias nascem as primeiras ondas
e volta sobre o mar a ave solitária
o homem enche de ar o peito vespertino
arranca o corpo à chuva e às nuvens do inverno
e chega a ter desejos de ficar
Mas em que rosto isento de contradição
há-de ele peregrino erguer a tenda?
Não abrem na cidade à sua frente as ruas
caminha ante deus como se visse
esse deus invisível
Florescem quando passa contraditórios clarins
cantando cada um sua ideia diversa
nenhuma o levará à pátria que procura
Tenham outros tambores ele tem
a pesada cabeça entre as mãos caída
Ele que desça ao fundo de todos os olhos
que nos trazem a alma à flor da pele
também não serão lá o coração ou a infância
Quando a tarde morrer ou o outono vier
do seu olhar é que as aves todas partirão
Aí temos um homem perto como nunca nem ninguém do chão


ruy belo
todos os poemas I
aquele grande rio eufrates

assírio & alvim
2004





23 julho 2022

henry deluy / o mar tratava da paisagem

 
 
O mar tratava da paisagem. – Era
A mim que calhava estar sentado, - ali
Perto de um sopro incolor. – Uma luz
Púrpura tombava em ondulações densas
E azuladas. – Retalhos de conversas
Da véspera vinham-nos à memória.
O mar estava nu.
 
             *
 
Estava verdadeiramente nu.
 
 
 
henry deluy
primeiras sequências
trad. colectiva mateus, set. out. de 2000
quetzal editores
2002




22 julho 2022

eugénio de andrade / as mãos e os frutos

  
 
III
Quando em silêncio passas entre as folhas,
uma ave renasce da sua morte
e agita as asas de repente;
tremem maduras todas as espigas
como se o próprio dia as inclinasse,
e gravemente, comedidas,
param as fontes a beber-te a face.
 
 
 
eugénio de andrade
as mãos e os frutos
poesia
fundação eugénio de andrade
2000




 

21 julho 2022

hans-ulrich treichel / ao atravessar a paisagem

 
Ao atravessar
a paisagem, penso: aqui, atrás
desta janela, a sombra
do homem, a minha sombra, aqui
nesta porta, a mulher, a minha mulher.
 
E ali a árvore,
o muro, a cova, plantada, levantado,
cavada por mim.
 
O bode ao pé da estaca,
preso, abatido por mim, o menino
de bicicleta, diante da cancela
fechada, o meu menino, a cancela
fechada por mim.
 
Ao atravessar
a paisagem, penso: aqui os
carris cintilantes, o
leito da via, o horizonte de fumo, deslocados,
ensaibrado, atravessado por mim.
 
 
 
hans-ulrich treichel
como se fosse a minha vida
trad. colectiva
poetas em mateus
quetzal editores
1994




20 julho 2022

antónio manuel azevedo / pedido de empréstimo

 
 
 
Arranja-me uns versos para o verão.
Coisas de areia, de memória
e sem futuro. Passos das tuas coisas
em volta, a luz perdendo
que guia o pescador, o turista
e o amante em aventuras com o regresso
aos quartos onde repousa para o fim
a escassa vida.
 
Escreve como quem descreve quase
o fim do amor, da casa, do caminho
o teu ao meio-dia de agosto
quase inteiro de sol
e outras poentes alegrias.
 
 
 
antónio manuel azevedo
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990
 



19 julho 2022

sandro penna / tinham-me deixado só

 
 
 
Tinham-me deixado só
no campo, sob
a chuva fina, só.
Olhavam-se espantados
mudos
os choupos nus: sofriam
com o meu castigo: castigo
de não saber claramente…
 
E a terra molhada
e os negros altíssimos montes
calavam-se vencidos. Era como
se um deus ruim
tivesse com um só gesto
petrificado tudo.
 
E a chuva lavava aquelas pedras.
 
 
sandro penna
trad. albano martins
hífen 5 março
cadernos semestrais de poesia
tradução
1990





 

18 julho 2022

josé carlos llop / modus vivendi

 
 
Cruzar de caleche estas terras
esquecidas pelo homem.
Viver um regime antigo
Caçar de madrugada. Cuidar das cartas
para os amigos, do quintal
junto dos muros da casa
– a doçura da tâmara
a sombra da figueira –.
Pôr ordem num pequeno jardim
onde ler ao sol no inverno,
e no verão atrás da gelosia,
toda enlaçada pelas heras
e pelos jasmins. Estar só;
contemplar como se cumprem
os ciclos da natureza,
como crescem os teus filhos.
Escrever ao cair da tarde.
Passear debaixo das estrelas
e o ladrar dos cães
ao longe. Dormir pouco.
Atiçar o fogo na noite,
enquanto os pavões reais
pousam na copa de azinheiras
e tu te submerges nos tomos
daqueles velhos mestres
que já não existem.
 
 
 
josé carlos llop
poesia espanhola de agora volume I
trad. de joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997



 

17 julho 2022

gonçalo m. tavares / envelhecer

 
 
O Perigo não tem lugares fixos, como se sabe.
          Nem todos podem morrer de frente
ou com um tiro na nuca,
                    por vezes o assunto último
          é manuseado com tiques mesquinhos,
dedos como bicadas de galinhas imbecis
          a bicar o inútil, o impossível e a pedra.
Morres mas não morres de vez como os animais.
Apodreces, sim, como as plantas (quando envelheces)
          como uma rosa disputada à força por dez mulheres,
ou como um deus imortal atingido cem vezes.
          Talvez eu preferisse ver a erva
como os ratos vêem,
olhando em frente com os olhos minúsculos.
          Mas não.
 
 
 
gonçalo m. tavares
1 poesia
relógio d´água
2004