01 maio 2022

luís veiga leitão / resistência

 
 
Não. Digo à explosão de ameaça
e à rapada paisagem do desterro.
E não. Digo à minha carcaça
encalhada em bancos de ferro
e ao cordame dos nervos, fustigado,
a ranger no silêncio a sós:
Por cada nervo quebrado
que se inventem mais nós.
 
 
 
luís veiga leitão
ciclo de pedras
portugália
1964





30 abril 2022

mário-henrique leiria / e as ruas

 
 
 
 
e as ruas
nuas como as pedras que as fazem
talvez avenidas construídas
pra serem apenas ruas
leves       distantes       solitárias
planícies abertas
aos pés fortes que as seguem
pequenas ruas
de Lisboa
nuas       nuas       nuas
como os pés duros que as amam
estreitas e tão largas
como o canto lento doce forte
dos pés daqueles que as caminham
pró trabalho
para a sorte       para a morte
 
 
 
mário-henrique leiria
lisboa ao voo do pássaro
obras completas
poesia
e-primatur
2018



 

29 abril 2022

rui costa / breve

 
 
Esta manhã comecei a esquecer-me de ti.
Acordei mais cedo que nos outros dias
e com o mesmo sono.
A tua boca dizia-me «bom-dia» mas não:
não o teu corpo todo como nos outros dias.
As sombras por aqui são lentas e hoje não
comprei o jornal: o mundo que se ocupe da
sua própria melancolia.
ontem. há uma semana. há muitos meses.
um ano ensina ao coração o novo ofício:
a vida toda eu hei-de esquecer-me de ti.
 
 
rui costa
«à solta no ringue»
mike tyson para principiantes
antologia poética
assírio & alvim
2017
 



28 abril 2022

manuel resende / um homem pela rua n.º 2

 
 
Vai um homem pela rua cheia de gente.
O mesmo homem, a mesma rua,
Dum poema já antigo.
Volta-se de repente e que vê?
Umas figuras que já não pode resgatar,
A afastarem-se para o passado
Ou o futuro.



manuel resende
o mundo clamoroso, ainda
poesia reunida
edições cotovia
2018




27 abril 2022

francisco bejarano / o sul é uma orla com história

 
 
Têm os olhos verdes, no sul,
os rapazes; a pele, uma alameda.
Caule ou cintura o seu suporte. Andam
em multidão, parecem bosques. Nunca
nenhum deles passa sem que se note.
Sabe-se não ser seu o coração;
do amor, sim, as asas. Temerosos
frutificam ao sol por lhes tocarem
umas pupilas. Lutam ou abraçam-se.
Ao seu redor, espelhos.
                                    No verão
os rapazes do sul descem ao mar,
e no gume da praia
gritam dourados. Cálices pagãos,
estatuetas escuras quando mostram
em contraluz sua nudez esbelta.
Se nas cadeiras a luxúria pasta,
eles são aragem, riso
transparente, cúpulas os protegem,
invisíveis do fogo.
 
                                   Os rapazes
beijam, no sul, debaixo das árvores
as faces suavíssimas; acariciam
seu cabelo virginal; os ventres níveos,
delgadas cinturas oferecendo.
Amam o dia porque são o dia.
Mas d enoite, sozinhos, ao luar
sua nudez contemplam.
Oh essa tristeza então! Essa treva
inimiga dos adolescentes!
A solidão, em lençóis branquíssimos
até à alba, corrompe.
 
                                                 O sul,
porém, tem noites breves. Marcam cedo
os seus encontros os rapazes, nas praças
as fogueiras ateiam dos seus peitos,
debaixo de inquietas mãos.
Mas não falam disso. Antes de música
Sempre, da vertigem que passa. Nunca
dizem o nome do amor. Talvez
ignorem sua eterna juventude:
séculos de solidões e de desejos.
Os rapazes do sul são imortais.
 
 
 
francisco bejarano
poesia espanhola de agora vol. I
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997




26 abril 2022

sophia de mello breyner andresen / é por ti

 
 
É por ti que se enfeita e se consome,
Desgrenhada e florida, a Primavera
É por ti que a noite chama e espera
 
És tu quem anuncia o poente nas estradas.
E o vento torcendo as árvores desfolhadas
Canta e grita que tu vais chegar.
 
 
 
sophia de mello breyner andresen
obra poética I
caminho
1999




25 abril 2022

carlos de oliveira / coração

 


 

1
 
Tosca e rude poesia,
meus versos plebeus
são corações fechados,
trágico peso de palavras
como um descer da noite
aos descampados.
 
Ó noite ocidental,
que outra voz nos consente
a solidão?
Cingidos de desprezo,
somos os humilhados
cristos desta paixão.
 
E quanto mais nos gelar a frialdade
dos teus inúteis astros,
mortos de marfim,
mais e mais, génio do povo,
tu cantarás em mim.
 
 
2
 
Olhos do povo que cismais chorando,
olhos turvos de outrora,
chegai-vos ao calor que irá secando
o coração – da chuva que em nós chora.
 
 
3
 
Quem soprou na gândara
a última chama?
Se quiseres, ó morte,
abro-te os lençóis
e dou-te a minha cama.
 
Vai meu coração
pelas aldeias moiras
onde pena e erra,
peregrinação
ao tojo da terra.
 
Caminheiro cansado
sem nenhum bordão,
onde houver um sonho
para ser sonhado
está meu coração.
 
 
4
 
Canta na noite, sentimento da terra,
onde morreste, flor estranha?
Há tanto que chove e nós sem lenha,
Sem paz e sem guerra.
 
Há tanto. E eu sei lá bem
se inda persistes,
minha incólume esperança.
Vão-me doendo os olhos já de serem tristes.
 
Vão-me doendo,
que mos turva de sombra o desespero.
E escrevendo à luz débil me pergunto
se é a morte ou a manhã que espero.
 
 
 
carlos de oliveira
mãe pobre
trabalho poético
livraria sá da costa editora
1998





24 abril 2022

luiza neto jorge / introdução ao tempo

 
 
I
 
Façamos greve de tempo
 
De pulmões castos não respiremos
As folhas trágicas veias
podem cair
Fechemos os olhos dentro
 
Silente na rocha amarga
o sulco humilde de nós
 
 
II
 
quando o sonho for granito
quando o mar em cinza desvendar
as plumas inúteis das gaivotas
quando a espuma depuser velas
longínquas sobre a areia
e das pontes cair o derradeiro homem
 
quando as papoilas tiverem searas
as janelas absortas mortalhas de luz
 
quando nós formos outrora
quando o luto marcar ancas verdadeiras
 
 
                III
 
                Porque ficou oceânico
                o escasso momento de nós?
 
                Escorríamos pelas mãos
                insatisfeitas e límpidas
                nascentes
                no ar um tempo frustre
                a sequência dos sons
                perdidos nos degraus
 
                Simples é a dor
                e nós, nascidos
 
 
 
luiza  neto jorge
a noite vertebrada
poesia
assírio & alvim
1993




 

23 abril 2022

manuel alegre / raiz

 
 
Canto a raiz do espaço na raiz
do tempo. E os passos por andar nos passos
caminhados. Começa o canto onde começo
caminho onde caminhas passo a passo.
E braço a braço meço o espaço dos teus braços:
oitenta e nove mil quilómetros quadrados.
E um país por achar neste país.
 
 
 
manuel alegre
o canto e as armas
centelha
1974
 



22 abril 2022

jorge luís borges / ein traum

 
 
Sabiam os três.
Ela era a companheira de Kafka.
Kafka tinha-a sonhado.
Sabiam os três.
Ele ara amigo de Kafka.
Kafka tinha-o sonhado.
Sabiam os três.
A mulher disse ao amigo:
«Quero que esta noite me desejes.»
Sabiam os três.
O homem respondeu-lhe: «Se pecamos,
Kafka deixa de nos sonhar.»
Um deles soube.
Na terra não havia ninguém mais.
Kafka disse:
«Agora que partiram ambos, fiquei só.
Deixarei de me sonhar.»
 
 
 
jorge luís borges
obras completas 1975-1985 vol. III
a moeda de ferro (1976)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998




21 abril 2022

fátima maldonado / os presságios

 
 
Aquela tarde no jardim da Graça
ao desviarmos os olhos da cidade
uma lava já morta apodrece no monte
e o vento magoa a nave da igreja.
Os presságios me seguem
como o guarda descansa
na sombra de uma porta
e espera ordem de partir
sentindo estremecer no envelope
recado impaciente.
 
Os presságios me surgem
o mensageiro na cal se recorta
e vem de encontro à pedra
depositar a carta
sabendo de antemão
que tudo lhe negaram
e só lhe facilitam
este mediano conhecer.
É feroz a recusa
do oculto bilhete.
 
 
 
fátima maldonado
sem rasto
os encontros
averno
2021




 

20 abril 2022

josé gomes ferreira / enchi de pedras e de cardos

 
 
VI
Enchi de pedras e de cardos
os caminhos da vida para mim…
 
E aqui estou eu agora neste trono de solidão,
braços vazios sem mundo,
a mostrar com orgulho a minha dor
– tão pequena afinal
para justificar as estrelas.
 
 
 
josé gomes ferreira
melodia 1932
poesia I
portugália
1972



19 abril 2022

jehan bseiso / depois de alepo

 



 
Aprendi a ler cedo.
Mas a verdade é: por vezes gostava que as letras per-
manecessem desenhos por mais tempo, antes da tirania
das palavras aparecer sem convite, e
antes que outras ínguas encontrassem na minha
                                     grande boca uma casa.
 
Não o digo literalmente.
 
Um dia, vamos voltar a Alepo, disseste tu.
 
Não o dizes literalmente.
 
Habibi, há quatro anos gritávamos por mudança,
                e agora somos cidadãos de fronteiras.
Vamos da Turquia para o Líbano, para o Egipto,
                         mas sem encontrarmos Alepo.
Temos cupões de alimentação, e, critérios de
             assistência, e, empatia intermitente.
 
Já não escrevo mais poesia.
 
O barco está a afundar,
literalmente,
mas eu não quero sair deste quarto.
Cheira a jasmim e tu sabes a liberdade.
 
 

 

jehan bseiso
um árabe é um árabe/é um árabe, um árabe
breve antologia de poesia árabe
versões e traduções joana santos e andré simões
contracapa
2022