21 agosto 2021

ana hatherly / 39 tisanas

 
 
32
 
A amizade é um sentimento de difícil definição. Na prática porém todos concordam que ela se traduz acima de tudo por serviços prestados. Eu tinha um amigo grande melómano que tocava variados instrumentos. Muitas vezes eu ia a casa dele e ficava ouvindo-o tocar piano flauta viola clarinete e até trombone. Um dia eu disse-lhe e de órgão você não gosta e ele disse ah quem me dera. Fiquei calada no dia seguinte dirigi-me a uma loja especializada na venda de instrumentos musicais e comprei um órgão meti-o imediatamente num táxi e fui levá-lo a casa do meu amigo a uma hora em que ele não estava deixei passar uns dias quando telefonei para saber se tinha gostado disseram-me
 
 
 
ana hatherly
poesia
1958-1978
moraes editores
1980
 




20 agosto 2021

pier paolo pasolini / who is me, poeta das cinzas





Sou alguém
que nasceu numa cidade cheia de pórticos em 1922.
Tenho, portanto, quarenta e quatro anos, que carrego <muito>
                                                                                    [bem
(apesar de ainda ontem dois ou três soldados numa matazinha
                                                                              [de putas
me terem dado vinte e quatro – pobres rapazes
que tomaram por menino um seu coetâneo);
o meu pai morreu em ’59,
a minha mãe está viva.
Ainda choro de cada vez que penso
no meu irmão Guido,
camarada morto por outros camaradas, comunistas
(era do Partido da Ação, mas a conselho meu:
ele começara a Resistência como comunista),
nos montes malditos de uma clareira
raiana, com pequenas colinas cinza e desalentadas encostas
                                                                     [pré-alpinas.
Quanto à poesia, comecei aos sete anos:
Mas não fui precoce senão na vontade.
Fui um “poeta de sete anos” –
como Rimbaud – mas só na vida.
Agora, num lugar entre o mar e a montanha,
onde rebentam grandes temporais, de Inverno chove muito,
em fevereiro veem-se as montanhas claras como o vidro,
logo a seguir aos ramos despidos, e depois nascem as prímulas
                                                                             [nas valas
inodoras, e no Verão as hortas, pequenas, de milho,
alternadas com aqueles verdejares da alfafa,
desenham-se contra o céu esfumado
como uma paisagem misteriosamente oriental –
agora, naquele lugar,
há uma arca cheia de manuscritos de um entre tantos meninos
                                                                               [poetas.
 
 
[…]
 
 
pier paolo pasolini
who is me
poeta das cinzas
trad. de ana isabel soares
barco bêbado
2021

 





19 agosto 2021

albert camus / peste

 
 
Peste… «E de cada vez que li uma história de peste, do fundo de um coração envenenado pelas suas próprias revoltas e pelas violências dos outros, um grito claro se ergueu dizendo que no entanto havia nos homens mais coisas para admirar do que para desprezar.»
 
…«E a peste cada um a traz consigo, porque ninguém, sim, ninguém no mundo, está imune. E é necessário vigiarmo-nos constantemente para não sermos levados num minuto de distracção a respirar na cara de alguém e a pegar-lhe a infecção. O que é natural é o micróbio. O resto, a saúde, a integridade, a pureza, se preferirem, é um efeito da vontade, e de uma vontade que nunca deve deixar de exercer-se. O homem honesto, o que não infecta ninguém, é aquele que se distrai o menos possível.
 
«Sim, é fatigante ser-se um patife. Mas é ainda mais fatigante não querer ser um patife. É por isso que toda a gente está fatigada, porque toda a gente o é um pouco. Mas é por isso também que alguns conhecem tão fundo cansaço que só a morte os poderá libertar dele.»
 
 
 
albert camus
primeiros cadernos
caderno n.º 5 setembro 1945/abril 1948
trad. não disponível
livros do brasil
1973




18 agosto 2021

jean-claude barbé / falsa partida

 
 
Morria. Julgava morrer debaixo duma estrela
A minha vida enxotava-me às guarda-chuvadas
Vivia na espera de um dia muito raro
Vi o meu sangue correr e perder-se
Nos degraus duma escadaria sonora
Rumo à porta de comunicação com o mar
As vagas sombrias borbulhavam no limiar
Os cães farejavam a trovoada através da bruma
E estava eu já morto há muito quando o relâmpago
Despertava as paredes adormecidas a pedra usada
As casas sem memória e os poços cuja água chora
Contudo o sol ia alto no firmamento
Parecido a uma flor em breve iluminaria a minha morada
Sobreviveria ao pior e o meu coração consertado
Imporia o seu ritmo à eclosão do mundo.
 
 
 
jean-claude barbé
sonhador definitivo e perpétua insónia
uma antologia de poemas
surrealistas escritos em língua francesa
trad. regina guimarães
contracapa
2021





 
 

17 agosto 2021

alejandra pizarnik / árbol de diana

 
               
1
 
Dei o salto de mim para a alba.
Deixei o meu corpo junto à luz
e cantei a tristeza do que nasce
 
 
 
 


alejandra pizarnick
antologia poética
árbol de diana (1962)
tradução fernando pinto do amaral
tinta da china
2020






16 agosto 2021

gemma gorga / livro dos minutos

 
 
6
 
Está tudo pronto à espera que chegues para começar a existir: os pratos em cima da mesa, o brilho nocturno nas chávenas, o calor nas almofadas, a cera derretendo como açúcar pernas abaixo. A iminência é um penhasco por onde agora passeio em bicos dos pés, contendo a respiração, sabendo que de um momento para o outro se ouvirá a campainha e me precipitarei no puro presente de ti, como uma espada deleitada face ao dardo veloz. Mas ainda não. Apesar de andar de um lado para o outro, apesar de compor o cabelo, apesar da lentidão audível do relógio, apesar desta espera que poderíamos dizer quimicamente pura.
 
 
 
gemma gorga
livro dos minutos (2006)
o anjo da chuva
trad. miguel filipe mochila
do lado esquerdo
2021




 

15 agosto 2021

gil t. sousa / e eu, que sempre vi a luz

 
 
 
e eu, que sempre vi a luz
como um elemento de revelação
atento nestas mãos abertas
e anseio por tudo o que nelas
se esconde
 
espero tempestades e
veredictos sobre a antiquíssima
eternidade
persigo a sombra do rumor
que se semeia a si próprio
 
no campo da noite
e nos espera de faca na mão
sempre que o coração tropeça
ou a voz se perde
num corpo tão antigo
 
como o frio, escavando
poços por entre os pés
cortando as linhas de água
do nosso deserto
mais intimo e extenso
 
tinta queimada, esta pele
tambor surdo e cego
rente à estrada abandonada
do passado, rente ao mar
que nos salgou o desejo
 
 
 
gil t. sousa




 
 

14 agosto 2021

emanuel jorge botelho / testamento vital

 
 
 
                  para o Manuel de Freitas
 
 
 
estou cansado de andar a ir morrendo,
à espera que o tempo saia do meu nome.
 
trepar paredes não é risco a que dê gasto de alma,
e não tenho caligrafia
para cancelar o endereço.
 
ponho uma faca entre os dentes?
masco tília?
ou desenho a primeira sílaba de uma asa?
 
não faço nada.
não sou capaz de trair a minha morte.
 
 
                                       Agosto de 2013
 
 
 
 
emanuel jorge botelho
telhados de vidro n.º 19 . maio . 2014
averno
2014






 
 
 
 

13 agosto 2021

cesare pavese / virá a morte e terá os teus olhos

 



 

Virá a morte e terá os teus olhos –
esta morte que nos acompanha
de manhã até à noite, insone,
surda, como um remorso antigo
ou um vício absurdo. Os teus olhos
serão uma palavra inútil,
um grito reprimido, um silêncio.
Assim os vês todas as manhãs
quando sozinha te inclinas
diante do espelho. Ó cara esperança,
nesse dia saberemos nós também
que és a vida e és o nada.
 
Para todos a morte tem um olhar.
Virá a morte e terá os teus olhos.
Será como abandonar um vício,
como ver no espelho
ressurgir um rosto morto,
como escutar lábios fechados.
Mudos, desceremos ao abismo.
 
 
                                22 de Março de 1950
 
 
 
cesare pavese
virá a morte e terá os teus olhos
trad. rui caeiro
edições do saguão
2021





 


12 agosto 2021

pedro salinas / poema

 
 
Não te vejo. Mas sei
que estás aqui, por detrás
de uma frágil parede de ladrilhos e de cal, ao alcance
da minha voz, se te chamasse.
Mas não, não te vou chamar.
Chamar-te-ei amanhã,
quando, ao deixar de te ver,
me imagine que continuas
aqui ao pé, a meu lado,
e que basta hoje a voz
que ontem não quis pronunciar.
Amanhã… quando lá
estiveres, por detrás de uma
frágil parede de ventos,
de céus e de tempo.
 
 
 
 
pedro salinas
transversões
poemas reescritos em português
por zetho cunha gonçalves
contracapa
2021

 




11 agosto 2021

nuno júdice / um resto de insónia

 
 
A noite chegou até ele sem bater à porta;
devagar, instalou-se no sofá da sala, escureceu
os cantos, roubou a luz às lâmpadas. E
não abriu a boca: enquanto ele, sem nada
compreender, a empurrava para longe de si,
tentava abrir as janelas, acendia velas,
que ela soprava por trás. A noite chega,
assim, afirmando a sua presença. Não dá
descanso, a não ser que a aceitem como ela é:
mas não é fácil tê-la dentro de casa, nem conviver
com os seus gestos de treva. Talvez se possa,
apenas, murmurar esse nome que ela nos
roubou, um dia, e que só agora se nos torna
necessário lembrar; ou invocar uma protecção
ilusória, a deusa diurna, de cabelos iluminados
pelo ouro primaveril. Tudo inútil – e como ela
se ri!, a noite branca que o obriga a manter
os olhos abertos, fixando o último fio de luz,
como se também a sua vida escorresse por aí…
 
 
 
 
nuno júdice
a fonte da vida
quetzal
1997





 

10 agosto 2021

tomás gonzález / passaram dias felizes

 
 
Onde
o optimista costume
de querer ser melhor?
Fiquem para primos afastados
as imperiosas buscas de dias felizes,
os derradeiros sorrisos de um futuro simpático.
 
Aqui já é esta hora.
Diferentes corações sofrem sem ânsias de consolo.
Outros redimem penas que não reconhecerão mais tarde.
 
Fique para o rico,
recaia sobre ele, como ganho imerecido,
a fortuna de viver.
Aqui já fomos muito felizes.
Aqui já é esta hora surda e cinzenta.
 
 
 
tomás gonzález
(espanha, 1940-1966)
o meu livro de cabeceira é um revólver
dezassete suicidas
trad. jorge melícias
língua morta
2020
 






 
 

09 agosto 2021

john ashbery / algumas árvores

 
 
Estas são notáveis: cada uma
Ligando-se à seguinte, como se a fala
Fosse uma representação imóvel.
Combinando por acaso
 
Encontrar-nos tão distantes esta manhã
Do mundo como concordes
Com ele, tu e eu
Somos de repente o que as árvores tentam
 
Dizer-nos que somos:
Que só o aí estar delas
Significa algo: que em breve
Poderemos tocar-nos, amar, explicar.
 
E contentes por não termos inventado
Um tal decoro, estamos cercados:
Um silêncio já cheio de ruídos,
Uma tela em que emerge
 
Um coro de sorrisos, uma manhã de Inverno.
Postos sob uma luz enigmática, e movendo-se,
Os nossos dias adoptam uma tal reticência
Que estas inflexões parecem a sua própria defesa.
 
 
 
 
john ashbery
auto-retrato num espelho convexo e outros poemas
tradução antónio m. feijó
relógio d’ água
1995