22 junho 2021

josé saramago / aniversário

 
 
Pai, que não conheci (pois conhecer não é
Este engano de dias paralelos,
Este tocar de corpos distraídos,
Estas palavras vagas que disfarçam
O intransponível muro):
Já nada me dirás, e eu não pergunto.
Olho, calado, a sombra que chamei
E aceito o futuro.
 
 
 
josé saramago
os poemas possíveis
porto editora
2018





21 junho 2021

eugénio de andrade / matéria solar

 
 
49
 
Sei onde o trigo ilumina a boca.
Invoco esta razão para me cobrir
com o mais frágil manto do ar.
 
O sono é assim, permite ao corpo
este abandono, ser no seio da terra
essa alegria só prometida à água.
 
Digo que estive aqui, e vou agora
a caminho doutro sol mais branco.
 
  
 
eugénio de andrade
matéria solar
poesia
fundação eugénio de andrade
2000





 

20 junho 2021

bob dylan / deitei tudo a perder

 
 
Outrora tive-a nos meus braços
Ela disse que ficaria para sempre
Mas eu fui cruel
Tratei-a como um idiota
Deitei tudo a perder
 
Outrora tive montanhas na palma da mão
E rios que aí corriam todos os dias
Devo ter estado louco
Nunca soube o que tinha
Até que deitei tudo a perder
 
O amor é tudo o que existe, faz o mundo girar
O amor e somente o amor, não se pode nega-lo
Não importa o que penses sobre ele
Simplesmente não serás capaz de passar sem ele
Aceita o conselho de alguém que tentou
 
Assim se encontrares alguém que te dê todo o seu amor
Leva-o para o teu coração, não o deixes perder-se
Porque uma coisa é certa
De certeza que ficarás a sofrer
Se o deitares a perder
 
 

bob dylan
canções 1962-2001
volume 1 (1962-1973)
nashville skyline
trad. angelina barbosa e pedro serrano
relógio d´água
2008





 

19 junho 2021

arthur rimbaud / sensação

 
 
 
Pelas tardes azuis de Estio, irei pelos trilhos,
Picado pelas espigas, calcar a erva miúda:
Sonhador, sentirei o frescor que os pés pisam.
Virá banhar o vento a minha fronte nua.
 
Irei sem dizer nada, sem pensar em nada:
Mas o amor infinito subirá no meu ser,
– Boémio, pela Natureza, de bem longa jornada,
Feliz, como se fosse comigo uma mulher.
 
Março de 1870
 
 
 
jean-arthur rimbaud
poesia
obra completa
trad. miguel serras pereira e joão moita
relógio d´água
2018






 

18 junho 2021

fiama hasse pais brandão / das lágrimas

 
 
A pequeníssima aranha assusta
a criança que eu estava a olhar,
e chora. “Meu duplo filho,
não temas a intensa labuta
da caçadora de insectos.
Ela estende uma rede, tão frágil
que a podes romper com o menor dedo.
A menos que, antes do gesto, encontres
a beleza do tecido luminoso,
quando a aranha ofende o Sol
roubando-lhe alguns raios,
ou a beleza da água que ela retém,
como diamantes sem preço,
rosácea de lágrimas.”
 
 
fiama hasse pais brandão
as fábulas
quasi
2002





17 junho 2021

maria gabriela llansol / o começo de um livro é precioso

 
 
195
 
Paixão. Atirou-lhe rosas vermelhas que a magoaram
Na cara. Levantou as saias (num gesto espontâneo de
Protecção) e cobriu-a com o algodão leve da combinação.
Havia lágrimas. Como havia alguma podridão de espírito
A embaciar as vidraças. Um raio de sol casto atravessou-as
E, por um ponto único, deu-lhe a mão, pedindo-lhe que as
Baixasse.
 
 
 
maria gabriela llansol
o começo de um livro é precioso
assírio & alvim
2003





16 junho 2021

maria alberta menéres / quando o sol não vier

 
 
XLIII
 
Quando o sol não vier
nesse dia diferente do que sei,
quando tudo o que traz a madrugada
for tão sincero e extenso
como esta areia fria,
farei então, da bruma e do silêncio,
todas as mãos que me faltam,
 
 
e nelas repousarei!
 
 
 
maria alberta menéres
meditação
poesia completa
porto editora
2020

 



15 junho 2021

ruy belo / acontecimento

 
 
Aí estás tu à esquina das palavras de sempre
amor inventado numa indústria de lábios
que mordem o tempo sempre cá
E o coração acontece-nos
como uma dádiva de folhas nupciais
nos nossos ombros de outono
Caiam agora pálpebras que cerrem
o sacrifício que em nossos gestos há
de sermos diários por fora
Caiam agora que o amor chegou


 
ruy belo
todos os poemas I
dedicatóra
assírio & alvim
2004





14 junho 2021

antónio franco alexandre / syrinx, ficção pastoral

 
 
III
 
Quem diria, vou viver
além do século gasto,
só é pena o calendário
me trocar a identidade
(Venho contigo ao jardim
com dedos vazios de rimas
quem diria, eu que vou ser
presidente dos cantores)
Tenho na boca o aço
do pesadelo real
fiquei preso à voz do eco
é banal! Ao telefone
só, de plástico, etc.,
procura, sigilosa, desejável foto
(enfim, por fax, a cores).
Quem diria, preso à voz
não sei de quem, que me ouvia.
 
 
antónio franco alexandre
quatro caprichos
assírio & alvim
1999

 




13 junho 2021

fernando pinto do amaral / escotomas

 
 
3.
Apagaram-se as luzes. Na memória
vibra a última sombra, a solidão
de um anjo cego abrindo pouco a pouco
os olhos. Desta noite
nascem todas as noites de quem fala
em silêncio e afoga
as suas dores no sangue incandescente
de uma estrela já morta, a cintilar
sob escuros escombros, entre sonhos
ainda por viver. Em cada alma
escorre um fio de mercúrio, essa lágrima
anunciando o paraíso, algures
no interior da treva.
 
 
 
fernando pinto do amaral
às cegas
relógio de água
1997




12 junho 2021

joão miguel fernandes jorge / das nossas mãos que restará fazer?

 
 
Das nossas mãos que restará fazer?
 
Quem há-de lembrar
a cadeira a porta a árvore?
 
O tempo sobre o nosso sangue
o sangue sob o nosso corpo
das nossas mãos que restará fazer?
 
 
 
joão miguel fernandes jorge
à beira do mar de junho
relógio d´água
2019






11 junho 2021

luís miguel nava / no fogo da memória

 
 
Começa-se o silêncio a desenhar
nos interstícios da carne, a que se prendem
imagens que no fogo
lento da memória se apuraram
de dia para dia e que o passado
nos serve agora como uma iguaria.
 
 
luís miguel nava
o céu sob as entranhas
poesia
assírio & alvim
2020




 

10 junho 2021

agustina bessa-luís / portugal


De repente, cada um de nós vê um território banhado de mar agitado e frio, com manhãs verdes de nevoeiro e com os campos onde os nomes das mais pequenas ervas nos fazem humedecer os olhos
 
*
 
Evidentemente que Portugal é Europa. Mas uma Europa de refugiados, um lugar mantido em independência para servir de exílio a vencidos e enganados. Uma Suíça doutro padrão, onde nada se agita e tudo se murmura. Portugal foi mundo de mercadores, pátria para imigrados, delícia dos tímidos e calamidade para santos e perversos. Para o meio termo é boa casa, e não o digo em tom pejorativo, muito pelo contrário. E Alijó, no tempo das cerejas, tem a medida de Wall Street.
 
*
 
Os Portugueses não são pontuais nem respeitadores das praxes. Não têm espírito de corpo, em suma, e aproveitam todas as ocasiões para o demonstrar. Eu creio que Benjamin Constant nunca poderia vislumbrar nos Portugueses algo que se parecesse com a alquimia da perseguição. Pois a unanimidade não lhes parece necessária nas opiniões; a oposição é vista como uma mania curável. Tudo a inteligência remedeia, e por isso a submissão é absolutamente fora de causa.
 
*
 
Quando nomeamos Espanha e Portugal, vemos o palco da História e nós como protagonistas. Isto diminui a nossa iniciativa, ao mesmo tempo que enriquece o nosso sentido de nação.
 
Eu creio que foi Dostoievski quem disse que para fazer um país é preciso a convicção de que ele, país, é o melhor do mundo; doutro modo, não se passa de constituir apenas um material etnográfico. Nós, Portugueses, sempre desenvolvemos uma vaidade expansiva frente ao orgulho caudaloso e sério do povo da Espanha. Às vezes até somos modestos por fora para melhor gozar o nosso vinculado prazer de superioridade. E quando nos louvam a humildade, não pressentem que ela é mais desdém do que caturra virtude de confessionário.
 
 
 
agustina bessa-luís
dicionário imperfeito
guimarães editores
2008