17 abril 2021

richard minne / eles

 
 
Eles, as pessoas com dignidade
nesta vida, com chama interior,
andam aí dispersos sobre a terra
e trazem um chapéu inferior.
 
Caminham asseados, silenciosos,
rente às casas preferem deslizar
e escutam, se possível no Outono,
os choupos todos a rumorejar.
 
Espaço não costumam ocupar
como o dourado nas folhas dum livro,
e se acaso o eléctrico vem cheio
o seu lugar é sempre no estribo.
 
Ontem levei uma pessoa dessas
à estação. Era uma noite assaz
brumosa e fria. O meu cansado amigo
tinha bilhete da terceira classe.
 
 
richard minne
uma migalha na saia do universo
antologia da poesia neerlandesa do século vinte
selecção de gerrit komrij
tradução de fernando venâncio
assírio & Alvim
1996



 

16 abril 2021

cesare pavese / trabalhar cansa

 
Atravessar uma rua para fugir de casa
só um rapaz o faz, mas este homem que vagueia
todo o dia pelas ruas já não é um rapaz
e não foge de casa.
 
                                                                     Há no Verão
tardes em que até as praças ficam vazias, estendidas
ao sol que vai pôr-se, e este homem que chega
por uma avenida de árvores inúteis para.
Vale a pena ser-se só, para se estar cada vez mais sozinho?
Percorrê-las apenas – as praças e as ruas
estão vazias. Havia que parar uma mulher
e falar-lhe e convencê-la a viverem junto.
Doutro modo fala-se sozinho. É por isso que às vezes
vem abordar-nos o bêbado nocturno
e conta os projectos de toda a vida.
 
Não é certamente ficando à espera na praça deserta
que se encontra alguém, mas quem anda pelas ruas
de vez em quando para. Se fossem dois,
mesmo a andar pelas ruas, a casa seria
onde está essa mulher e valeria a pena.
De noite a praça volta a ficar deserta
e este homem que passa não vê as casas
nem as luzes inúteis, já não levanta olhos:
sente apenas o empedrado, que outros homens fizeram
com mãos calejadas, como são as suas.
 
Não é justo ficar na praça deserta.
Anda certamente na rua aquela mulher
que, rogada, havia de querer dar uma mão à casa.
 
  
 
 
cesare pavese
cidade no campo
trabalhar cansa
trad.carlos leite
cotovia
1997






 

15 abril 2021

camille goemans / três homens seguem a sua própria sombra



 
Três homens seguem a sua própria sombra
O primeiro, impaciente,
corre atrás dela.
Ainda está a correr.
O segundo para e diz:
«Vou esperar.»
Ainda está à espera.
O terceiro vira-se
e desata a caminhar.
A sombra, como um carneiro, vai no seu encalço.
 
 
camille goemans
sonhador definitivo e perpétua insónia
uma antologia de poemas
surrealistas escritos em língua francesa
trad. regina guimarães
contracapa
2021
 




14 abril 2021

denise levertov / mês veloz

 
 
O espírito de cada dia passa, cabisbaixo
sob o vento, braços cruzados.
ambíguos irmão daquelas idealizadas
“filhas do Tempo”, nem dons nem escárnio
proferindo, as mãos prendendo
os cotovelos, escondidas em mangas largas
de túnicas cor de sombra. Dia após dia
e nenhuma em demoras, a cadência do seu passo
sem pressa, e ainda assim veloz, demasiado veloz.
 
 
denise levertov
este grande não-saber
trad. andreia c. faria e bruno m. silva
flâneur
2021






13 abril 2021

isabel meyreles / todos os dias vivemos

 
 
Todos os dias vivemos
os nossos apocalipses
como se nada fosse,
carregamos
a indiferença como um lenço de seda
à volta do pescoço,
a morte faz-nos sinal
em cada olha primaveril
da árvore-noite,
aquela que nos chama
com uivos de lobo
quando a olhamos,
barricadas atrás das nossas janelas
de presos à residência
sobre este planeta que corre
na negra água cósmica.
 
1995
 
 
 
isabel meyreles
poesia
o mensageiro dos sonhos
tradução de vitor castro
quasi
2004




12 abril 2021

yvette k. centeno / venho

 
Venho
com as mãos carregadas
de passado
venho agora
porque não sei o dia
nem a hora
e dentro de mim o tempo
está parado
 
 
 
yvette k. centeno
o barco na cidade
entre silêncios
poesia 1961-2018
glaciar
2019






 

11 abril 2021

carlos de oliveira / descida aos infernos

 
 
10
«Lá em cima, terra,
parecias em torpor
adormecida
no sonho espesso do teu sono.
 
E quantas noites
com luar a murmurar à nossa porta
pensámos nós que te fingias morta
só para não acordares com a tua vida
os filhos que criaste
e de novo chamaste
ao teu silêncio.
 
 
 
carlos de oliveira
descida aos infernos
a leve têmpera do vento
antologia poética
quasi
2001




10 abril 2021

joão almeida / atalho com lama e escuridão

 
 
pela mão me levou à procura de água
quando seguia sem desejar saber
por outro beco regular e limpo
 
não cumpri a minha jura
era o vinho a falar
 
uma merda esta culpa às costas
em todo o caso
gostava de ver o centro cultural arder
 
 
joão almeida
canto skin
língua morta
2019




 

09 abril 2021

luís filipe parrado / orquídeas

 
Foi um erro substituir
por orquídeas
as flores artificiais
no centro da mesa.
Exigem luz, cuidados,
uma humidade temperada.
Bem as conheço:
flores venenosas
donas de uma beleza gratuita.
Às outras bastava passar
o pano do pó às vezes,
nem olhava para elas,
para as suas folhas baças,
para os seus ramos secos de arame;
estas ensinam-me, com esplendor, a tua morte,
a ferida com que o mundo vai acabar.
 
 
luís filipe parrado
entre a carne e o osso
língua morta
2019





 

08 abril 2021

inês lourenço / sessão literária

 
 
Falam de perfeição. De perseguir
ao menos em verso, esse vórtice de luzes
e excelsa beleza ou
beatitude que logrará
 
a canónica obra. Velho
enredo já sem graça divina
nem humana.
 
Melhor falassem
das batatas novas, que
costumam aparecer
antes da Páscoa.
 
 
 
inês lourenço
o segundo olhar
companhia das ilhas
2015






 

07 abril 2021

josé gomes ferreira / cabaré

  
III
 
Perto das árvores
sob as estrelas
olho com orgulho para o céu
e sinto que pertenço ao universo.
 
A minha carne é de terra,
os olhos são de terra
e a minh’ alma, um pássaro sem corpo…
 
mas junto de ti,
no meio destas flores de papel
perfumadas de música,
sinto-me tímido e infeliz,
a tropeçar no corpo inútil.
 
E apetece-me não viver,
mas apenas existir.
Ser uma coisa qualquer
esquecida de criar.
 
 
 
 
josé gomes ferreira
cabaré 1932
poesia I
portugália
1972





06 abril 2021

rené char / artine

 
 
Na cama que me tinham preparado havia: um animal ferido e sanguinolento, do tamanho de um brioche, um cano de chumbo, uma rajada de vento, uma concha gelada, um cartucho de bala disparada, dois dedos de uma luva, uma mancha de óleo; não havia porta de prisão, havia o sabor da amargura, um diamante de vidraceiro, um cabelo, um dia, uma cadeira partida, um bicho da seda, o objecto roubado, uma corrente de gabardine, uma mosca verde domesticada, um ramo de coral, um prego de sapateiro, uma roda de autocarro.
(…)
 
 
rené char
este fanático das nuvens
furor e mistério
martelo sem dono (1930)
tradução y. k. centeno
cotovia
1995



05 abril 2021

juan luis panero / um velho em veneza

 
 
Em Veneza, velho e envelhecido, quase mudo,
rodeado de livros, de solidão, de gatos
o poeta Ezra Pound,
falou, num breve, muito breve encontro, com Grazia Levi.
Comentou-lhe, sem autocompaixão e sem desprezo,
secamente, com voz entrecortada:
«No fim penso que não sei nada.
Não tenho nada para dizer, nada.»
Se depois de tão alto exemplo, de tão clara sentença,
ainda continuo a escrever e risco palavras no fumo,
não é, que a morte me livre,
por bastardo interesse ou absurda vaidade,
mas apenas por uma simples razão,
porque não conheço outro meio, a não ser o suicídio
- desnecessário é um poema como um cadáver –,
para dar testemunho de nada a ninguém,
do mundo que contemplo, desta vida,
do seu horror gasto e quotidiano.
Que o velho Pound, na sua cova,
me perdoe por ligar o seu nome
a estas sórdidas palavras desesperadas.
 
 
 
juan luis panero
poemas
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2003