09 dezembro 2020

edgar lee masters / richard bone

 
 
Quando vim para Spoon River
não sabia se aquilo que me diziam
era falso ou verdadeiro.
Traziam-me o epitáfio
e enquanto eu trabalhava eles cirandavam pela oficina
e diziam «Era tão boa pessoa», «Era encantador»
«Não havia mulher mais afável», «Era um verdadeiro cristão».
E eu cinzelava na pedra o que eles me pediam,
ignorando por completo a verdade.
Mais tarde, à medida que convivia com a gente da terra,
já sabia se os epitáfios que me encomendavam
correspondiam ou não à vida do defunto.
Mas continuava a cinzelar aquilo para que me pagavam,
tornando-me cúmplice das falsas crónicas
na pedra das lápides,
tal como faz o historiador que escreve
sem conhecer a verdade,
ou porque alguém o persuade a esconde-la.
 

 
edgar lee masters
spoon river
tradução josé miguel silva
relógio d´água
2003




08 dezembro 2020

adonis / seis notas do lado do vento

 
 
6
 
                Geograficamente, pertenço a um país situado na metade oriental do mundo. Mas se sou nativo desse Oriente, é antes de mais porque crio o meu próprio Oriente. Não lhe pertenço senão na medida em que ele próprio me pertence. Esse Oriente é ao mesmo tempo memória e esquecimento, presença e ausência. Afirma o caos de que não se sabe se é a argila ou a mão, a luz ou a noite, o nada ou o tudo. O Oriente para mim é o indefinível, a extensão vaga, o homem na sua errância original. Quando penso nele, interrogo-me: a poesia, nos seus múltiplos modos, pode não significar esse Oriente?
 
 
adonis
arco-íris do instante
antologia poética
tradução de nuno júdice
dom quixote
2016




 

07 dezembro 2020

nuno júdice / carta aos que ficam

 
 
As sensações destruídas restauram as fronteiras
do Corpo. Num largo interstício de tempo
a consciência cria o ócio e o seu reverso. Talvez
um faro animal sugerisse um trabalho diferente
sobre as estrofes e as palavras. No entanto,
os que ficam (e sobrevivem) ocupar-se-ão de tudo.
Eles não sofrem o estrangulamento húmido
da manhã.
 
Penso nas faculdades d a analogia, nos defeitos
Que separam a compreensão da vontade. (Seja
– demasiado abstracto. É assim o poema. Nada
De precipitações materiais, nem de tacto,
nem dos outros quatro sentidos. O acaso burguês
do silêncio não passa aqui de uma terrível
coincidência, de uma vertigem no interior
dos códigos.)
 
A transformação do Ser é um instante de repouso.
 
 
nuno júdice
o mecanismo romântico da fragmentação
editorial inova
1975

 




06 dezembro 2020

maria-mercè marçal / todo o sangue, todo o sal em ti

 
 
Todo o sangue, todo o sal em ti.
Sombras além, os seus olhos me assendam
por caminhos claros – trigo, pão, sulco.
Sombras aquém, os meus lábios machucam
as bordas do amor, tantos velhos roxos
abrasam minha língua e gengiva.
Seguir-te, amor, seguir a sua mão
pequena – doce e dura! Mas a asa
de qual noite… as garras… qual falcão?
E assim eu te arrasto até ao meu deserto.
 
 
 
 
maria-mercè marçal
desglaç / degelo
tradução meritxell hernando marsal
e beatriz regina guimarães barboza
editora urutau
2019




05 dezembro 2020

jorge melícias / todo o horror é uma interpelação à beleza

 
 
Todo o horror é uma interpelação à beleza.
E só à beleza vai buscar o seu referente.
 
Tudo o mais deverá ser imputado a quem vê:
a rapina
de um campo de batalha
 
ou os mastins
cruzando a ternura da devastação.
 
 
jorge melícias
felonia (2013)
a oratória dos mansos
porto editora
2020

 



04 dezembro 2020

jennifer clement / a casa nocturna

 
 
Aqui, para falar verdade,
não há cabides para os meus braços,
 
armários para as minhas pernas,
ganchos para as minhas mãos.
 
À noite na Casa Nocturna
não há prateleira para a minha sombra.
 
Aqui, vou dormir
vestida com o meu corpo.
 
 
 
jennifer clement
afagando a face de lorca
uma antologia
trad. francisco josé craveiro de carvalho
companhia das ilhas
2020




 

03 dezembro 2020

vladimir maiakóvski / insignificâncias

 
 
Exibirei a série de cores da minha imaginação como a cauda de um
       pavão,
entregarei a minha alma a um enxame de rimas desconhecidas.
Quero ainda ouvir nas colunas dos jornais rezingar
aqueles
que com o focinho zurzem as raízes
do carvalho que os alimenta.
 
 
vladimir maiakovski
33 poesias
trad. adolfo luxúria canibal
edições snob
2019

 




02 dezembro 2020

claudio rodríguez / céu

 
 
Agora sim preciso mais que nunca
de olhar o céu. Já sem fé, sem ninguém,
findo este seco meio-dia, levanto
os olhos. E é a mesma verdade de antes,
embora a testemunha seja outra.
Riscos de uma aventura já sem lendas
nem anjos, e nem sequer esse azul
da minha pátria. Pagaria para
sorver o ar, erguer os olhos, ver
sem recompensa, aceitar uma graça
que não cabendo nos sentidos dá
saúde nova, alívio, ocupação.
Troco pelo amor o dom, esta beleza
que não mereço nem ninguém merece.
Preciso hoje do céu mais que nunca.
Não para me salvar, para não estar só.
 
 
 
claudio rodríguez
sem epitáfio
trad.miguel filipe mochila
língua morta
2019





 

01 dezembro 2020

marin sorescu / historioterapia

 
 
 
Se ando com insónias,
À noite, antes de me deitar
Tomo um atlas histórico
Com um pouco de água.
 
Enquanto espero o efeito,
Sigo com o dedo
O império dos hititas,
Mas após um momento
Tenho de recomeçar.
 
Porque, de facto, o império dos hititas
É o império dos egípcios,
Ah, não, o dos assírios…
Dos medo-caldeus…
Dos persas…
 
Se as coisas são assim, penso,
Também eu posso dormir
Tranquilo.
 
 


marin sorescu
simetria
tradução colectiva revista, completada e apresentada
por egito gonçalves
poetas em mateus
quetzal
1997

 



30 novembro 2020

maria victoria atencia / história

 
 
     Oh transe dos que amo, vivido em minha pele:
sê benigno comigo.
Se está em todo o fim
a pegada do início,
deixa-me acordada folgar com esta minha história
o resto da minha morte.
 
 
 
 
maria victoria atencia
antologia poética
el coleccionista
tradução josé bento
assírio & alvim
2000




29 novembro 2020

antónio josé forte / um homem

 
 
De repente
como uma flor violenta
um homem com uma bomba à altura do peito
e que chora convulsivamente
um homem belo minúsculo
como uma estrela cadente
e que sangra
como uma estátua jacente
esmagada sob as asas do crepúsculo
um homem com uma bomba
como uma rosa na boca
negra surpreendente
e à espera da festa louca
onde o coração lhe rebente
um homem de face aguda
e uma bomba
cega
surda
muda
 
 
 
antónio josé forte
uma faca nos dentes
parceria a. m. pereira
2003





28 novembro 2020

maria velho da costa / (dom se bastião)

 
 
Todas as coisas revêm a seu termos
se mantido o começo
o seu (de cada uma) pedúnculo,
sinal; fiel a si só quem outrem ladeia
no recreio de achá-lo só contíguo
ao desejado, o longes,
desfeitos assim lios, tramas
(ter, ter, só do engano e não da jorna).
 
Que, sob a mesma traça,
mão que desenhe o sacro de seu nome
praça de si condigna queira
e laude como, à ida,
e perseguindo a encoberta desavinda vinda,
a pele lhe não foi raias de mortal.
 
Onde achar paradouro do ir indo
que as mesmas vascas agasalhe e cumpra?
 
O olhar permutado, a líquida juntura
não congelada porque bem fugida,
o integral dum sim já denegado,
o tão de si senhor que em desistir-se tento tenha
e embrumado (nunca por nunca certo)
vagueie um solidíssimo ficar?
 
Conjugar montaria sem quebreiras
no quadrado de cama jugulada,
(a terra em trevas);
amar redondo (em giração) e a eito;
casal que por fendido
a casa casta aberta e hoste rotornante
pátria dos pés crescentes caminheiros faça.
 
 
 
 
maria velho da costa
desescrita
afrontamento
1972
 



27 novembro 2020

carlos saraiva pinto / atiras um livro

 
 
atiras um livro
à profundidade da água
a incerteza desagua
 
gostava de arrumar tudo
os passos que dava
um pensamento heróico de absolutos
sentado naquele alpendre
coberto de orvalho
de onde via o mar
 
reúnem-me os livros
para quebrar os pecíolos
de um quotidiano
 
mas a solidão de um irmão
não é igual à ambição de outros
 
lembra a adolescência
quando colhíamos
açucenas dos naufrágios
 
e descobríamos quando o mar
retirava às dunas um navio ferrugento.
 
enquanto guiava pelas montanhas
ao lado dava-lhe substantivos.
 
trazer até tão tarde
a luz cansa.
em breve chega o outono,
a dobra dos lençóis,
as crianças da escola,
a oração dos rostos.
 
sabes, agora,
que a vida
é um sonho desnecessário.
 
também se vive no campo.
 
os sentimentos de culpa
não nos devoram
as entranhas
 
nem vão aos funerais
os príncipes da igreja.
 
 


carlos saraiva pinto
escrever foi um engano
o correio dos navios
2001