24 setembro 2020

rené char / folhas de hipno

 
 
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Jamais modelado em definitivo, o homem encobre o seu contrário. Os seus ciclos descrevem diferentes órbitas consoante a sua exposição a determinada situação. E as depressões misteriosas, as inspirações absurdas, surgidas do grande externato crematório, como constranger-se a ignorá-las? Ah, circular generosamente sobre as épocas da casca do fruto, enquanto a amêndoa palpita, livre…
 
 
         
rené char
furor e mistério
folhas de hipno (1943-1944)
trad. margarida vale de gato
relógio d’ água
2000



23 setembro 2020

vergílio ferreira / jovens e nus frente ao mar

 

229 – Jovens e nus frente ao mar, estão presentes em cada célula do seu corpo. Mas a vida que têm é demais para eles e não sabem que fazer dela. Emergem da água rutilantes e riem. Depois deitam-se na areia, gastam o dia e a noite a amar-se, a embebedar-se, a estoirar todo o prazer e forças que têm. E ficam ainda com vida por gastar. É desses sobejos já com bolor que terão de viver depois na velhice.

 

 

vergílio ferreira
escrever
edição de helder godinho
bertrand editora
2001

 

 


22 setembro 2020

gil t. sousa / kodachrome



era assim
como curva de rua alta
ar de coisa presa
à água

tinha mãos
de vento pequeno

e o seu braço no muro
era a sombra
do mundo

a luz desvairava
na cal branca
mas na sua pele
não



gil t. sousa






21 setembro 2020

diogo vaz pinto / posso aprendê-lo


Posso aprendê-lo,
se chove e oiço sem me mexer tanto
ou me dá a sede do que é bebido na terra,
vertido por uma longa memória
até que a sílaba se derrama,
se derreta o ouro com o que num pote fervi
acabando sobre a forma que me apeteça
vivida a sua breve estação, resta
deitar-se como a outro, e aconchegá-lo
com algum veneno no ouvido,
estar a sós, ruindo, num gozo indecente
como o degolado que arrastasse pelos cabelos
a própria cabeça, e esta lhe fosse
lambendo da mão, chupando-lhe dos dedos
o sangue ainda quente leitoso doce



diogo vaz pinto
aurora para os cegos da noite
maldoror
2020





20 setembro 2020

eduardo pitta / a tua ausência



A tua ausência
a encher-se de dunas.

Aquele bater de vidraças
na orla da praia.

O silêncio a insistir
a recusar-se ao rumor.

E a vida a fluir
lá fora.



eduardo pitta
a linguagem da desordem
desobediência
poemas escolhidos
dom quixote
2011






19 setembro 2020

rosa oliveira / un coeur en hiver



aos primeiros assomos de primavera
repito a viagem romântica e fatídica
de george sand e Chopin

ao que parece tal aventura
deu origem ao pouco romântico
turismo em massa no mediterrâneo

chopin olha-me sério e já esverdeado
maio reclinado no seu piano cheio de tosse
sem ligar meia ao sol esplendoroso
e aos jardins feéricos da cartuxa
no centro pujante da ilha
verdade que no inverno
estas colinas agrestes devem
ser infernais
por muito contemplativos
que sejam os discípulos de
são bruno

os nativos não gostaram do casal
habituados ao fustigar da tramontana
olhavam aqueles modos libertinos
como prova do desamor
que estava a chegar

a mulher tinha nome de homem
fumava
e escrevia pela noite dentro
enquanto o homem
gemia e dedilhava o piano infinito
os filhos não eram filhos
ele parecia uma mulher
ela parecia um homem
nada daquilo era fácil para os pobres maiorquinos
obrigados à escravidão e a venerar os porcos

mas o que mais incomodava
os maiorquinos
era o fulgurante colete amarelo
de george-georgina


rosa oliveira
lisbon revisited
dias de poesia
casa fernando pessoa
2019







18 setembro 2020

luís miguel nava / mergulho



O céu mal se equilibra, do mar, dele
no corpo os corações sendo embaixadas,
irrompem as falésias e nós, como
se as víssemos
melhor quando sobre elas o mar poisa numa das asas,
entramos por nós dentro até de nós
nem mesmo a mais pequena marca subsistir na água.


luís miguel nava
rebentação
poesia
assírio & alvim
2020









17 setembro 2020

howard altmann / palavras



Temos saudade do que temos saudade.
Na idade adulta, saudade da infância.
Em Janeiro, saudade de Julho.
Na cidade, saudade do campo.
No deserto, pedimos nuvens.

Temos saudade do que temos saudade.
Diante de uma paisagem, saudade de outra.
Diante de uma memória, é outra quem fala.
Diante do desejo, outro suspira.
Diante da noite, outras noites se acendem.

Temos saudade do que temos saudade.
Quando passa, fica.
Quando sacia, cresce a fome.
Quando se enche, vaza.
Quando amadurece, não tem idade.

Temos saudade do que temos saudade.
À saudade que temos, anos.
A como a temos, segundos.
Para onde, sem tempo.
Porquê, a eternidade.

Temos saudade do que temos saudade.
E em toda a saudade, uma vida.
E em toda a vida, um desgosto.
E em todo o desgosto, uma história.
E em toda a história, palavras.


howard altmann
enquanto uma fina neve cai
trad. eugénia de vasconcellos
guerra & paz
2019






16 setembro 2020

rosa alice branco / imunidade de grupo


mariana mizarela




À varanda trocavam sorrisos de dever cumprido.
Tiveram enfim tempo de arrumar a casa,
as estantes começaram a ter lógica
na vizinhança dos livros,
o chão da cozinha ficou mais brilhante
do que quando vinha a empregada
de autocarro e a casa era a paragem
durante várias horas de uma vida alheia
com as mãos indo e vindo da na cozinha,
as mesmas mãos que tinham abandonado o filho
horas antes e hão-de chegar horas depois
do sono. As roupas de varão falavam a meros
centímetros das de inverno, o vestuário ganhou
imunidade de grupo quase a 10 por cento
e as pessoas adoeceram aos poucos
com a casa limpa e arrumada para a morte.



rosa alice branco
nervo/9 setembro/dezembro 2020
nervo colectivo de poesia
2020







15 setembro 2020

john freeman / da generosidade



Ela dava tão facilmente
que não percebíamos que aceitar
era treino
para retribuir.
Quando abrias uma porta
ela passava primeiro, pois
se a maré vai, a maré torna.



john freeman
mapas
trad. miguel cardoso
tinta da china
2019










14 setembro 2020

miquel martí i pol / no ano que vem



No ano que vem já ninguém reparará em nós.
Agora somos recém-chegados e fitam-nos com desprezo
até mesmo os que andam por cá há quarenta anos
e já nada os muda.
Temos um ar aturdido e tenaz
que faz rir as mulheres
e quase nem nos atrevemos a mexer a cabeça
por temor a perder o equilíbrio.

Daqui a um ano, porém, já teremos mudado de pele,
envergaremos a roupa com mais desenvoltura,
perseguiremos as raparigas
e teremos aprendido a dizer palavras duras
sem que sintamos as pernas a tremer.
Chegará então o momento de esperar os outros,
os recém-chegados do turno de entrar no jogo
e faremos parte, já para sempre, do bando que odiávamos,
será o momento de ensaiar formas novas
de ganhar o fôlego de uma gargalhada
de estúpida cumplicidade
ou talvez uma ruidosa blasfémia de surpresa.

E envelheceremos depressa,
pois nada cansa tanto quanto conquistar
em só um ano tudo aquilo que almejávamos.


miquel martí i pol
um morto com o olhar vivo
trad. miguel filipe mochila
língua morta
2020






13 setembro 2020

josé gomes ferreira / do que sou



VIII

Do que sou
ao que penso
paira um voo
suspenso…

Mas tão subtil
que nem ata
o pântano vil
à nuvem de prata.

(Homem: não tenhas vergonha
de ser pântano como eu.
o pântano é que sonha
a nuvem do céu).


josé gomes ferreira
café 1945-1946-1947-1948
poesia III
portugália
1971







12 setembro 2020

raul de carvalho / post-scriptum



(«Que orgulho sinto de escrever que fiz versos hoje!»)

– numa carta de António Ramos Rosa



Tudo vem a seu tempo.
Um passo, um passo mais…
E estamos nos domínios
Das coisas irreais.

Aí é que nós todos
– Os loucos, os profetas –
Temos direito ao orgulho
De ser poetas.

Porque, depois de tudo
Somado e diluído,
Não há nada melhor
Que amar e ser amado.

Por isso vale a pena
Não ter menos nem mais
Que a alegria – plena! –
Das coisas irreais.


raul de carvalho
versos ( poesia II )
1958