16 agosto 2020

franz kafka / diários



1912, 9 de Julho


Ainda não escrevi nada. Vou começar amanhã. Senão caio outra vez num período de insatisfação irresistível e prolongado; já estou até a entrar nele. As crises nervosas estão a aparecer. Mas se conseguir fazer qualquer coisa, não preciso de tomar precauções supersticiosas.

A invenção do demónio. Se estamos possuídos pelo demónio, não pode ser só por um, porque então viveríamos, pelo menos na terra, em paz, como se fosse um Deus, em união, sem contradições, sem reflexão, sempre seguros do homem atrás de nós. O seu rosto não nos amedrontaria, porque, como seres diabólicos, teríamos, mesmo que um pouco sensíveis à vista, a esperteza suficiente de preferir sacrificar uma mão para lhe tapar a cara com ela. Se estivéssemos possuídos apenas por um demónio, um que tivesse uma visão tranquila, calma, de toda a nossa natureza, e liberdade para dispor de nós em qualquer momento, esse demónio teria também poder suficiente para nos manter durante o âmbito de uma vida humana muito acima do espirito de Deus em nós, e mesmo para nos balançar de um lado para o outro para que assim não víssemos nenhum sinal dele e consequentemente não fôssemos perturbados por esse lado. Só uma multidão de demónios pode ser responsável pelas nossas desgraças terrenas. Porque não se matam eles uns aos outros até só ficar um, ou porque não ficam subordinados a um grande demónio? Qualquer das duas hipóteses estaria de acordo com o princípio diabólico de nos enganar tanto quanto possível. Faltando unidade, para que serve a atenção escrupulosa que todos os demónios nos prestam? Deve importar muito mais a um demónio que nos caia um cabelo do que a Deus, uma vez que o demónio perde na realidade esse cabelo e Deus não. Mas não conseguimos atingir um estado de bem-estar enquanto houver dentro de nós tantos demónios.




franz kafka
diários (1910-1923)
trad. maria adélia silva melo
difel
1986







15 agosto 2020

adília lopes / para um vil criminoso



Fizeste-me mil maldades
e uma maldade muito grande
que não se faz
acho que devo ter sido a pessoa
a quem fizeste mais maldades
nem deves ter feito a ninguém
uma maldade tão grande
como a que me fizeste a mim
não sei se tens remorsos
tu dizes que não tens remorsos nenhuns
porque dizes que és um vil criminoso
para mim
eu também sou uma vil criminosa
mas não para ti
desconfio que tens o remorso
de ter alguns remorsos
por me teres feito mil maldades
e uma maldade muito grande
a maldade muito grande está feita
e não se faz
acho que essa maldade muito grande
nos aproximou um do outro
em vez de nos afastar
mas para mim é um drôle de chemin
e para ti também deve ser
mas com um vil criminoso nunca se sabe


adília lopes
sião
organização e notas de
al berto, paulo da costa domingos e rui baião
lisboa
1987






14 agosto 2020

josé luis garcía martin / a chuva



A chuva é um soldado triste,
uma sentinela sem sono. Espias
sua firme juventude. Ardem os lábios
em negra chama de melancolia.

Ruas lascivas sobem pelas suas pernas,
distante e firme não sorri.
Ávidas mãos pelo rosto imberbe,
mãos de névoa putrefactas insistem.

Silencioso acerca-se um cavalo
da água escura e fresca do desejo.
Ilumina-se a cara do soldado
num instante de lua, leve, longe.

Envolto em negra chama chamas
ao plural sentinela minucioso.
Imóvel, mudo, segue seu destino
noutro mundo, noutro tempo, noutro.


josé luís garcia martin
trípticos espanhóis 1º.
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1998






13 agosto 2020

judite canha fernandes / sem título



dois dentes de leão
fundidos em seus pequenos fios brancos
passaram a voar
e sumiram
mais altos do que as fábricas



judite canha fernandes
podemos amar ou podemos
editora urutau
2019









12 agosto 2020

marta navarro; paola d´agostino / também dizem que o caminho de casa




Também dizem que o caminho de casa
se encontra por doçura
quando cai uma noite qualquer.
Estou aqui
com as chaves na mão
à espera de um sinal.



marta navarro; paola d´agostino
dançam; dançam
edit. a tua mãe
2014











11 agosto 2020

paulo da costa domingos / rapa



Na fábrica da angústia,
onde jazem raciocínios
ditos científicos e os arranjos
convenientes ao lucro,
molda-se o sossego dos tribunais
na divisão das famílias.


¡O horror, a infâmia, a ordem
e as suas manobras, que sujam
a luminosa manhã da loba,
seu grito encurralado por injúrias,
leve-os o Diabo e escolha!

Na fábrica de cega ceifa
fecha-se os olhos ao veneno
moral dos broncos que olham,
roídos, por cima do ombro.

Expulsa do lugar onde reina
a ganância, o ruído e o ciúme
vai formosa e não segura: a Beleza.

Na luminosa manhã há que ouvir
O sussurro suave de passos, ou…

Nada.


paulo da costa domingos
a céu aberto
averno
2017






10 agosto 2020

joaquim manuel magalhães / a águia sublevou ganimedes

ilda david



A águia sublevou Ganimedes. Um corpo
pode ser um tiro uma casa incendiada
na submissa ferocidade do amor.
Nunca soube donde vinha. Vinha. Tocava
á porta, tomávamos um café. Saía.
O que tentamos para amarem o que somos.
Na selva de interditos o longe de dentro
tem a medo sossegos sem nenhum lugar.


joaquim manuel magalhães
ilda david
alguns antecedentes mitológicos
assírio & alvim
1984






09 agosto 2020

joão miguel fernandes jorge / este repouso



Este repouso
quando a luz separa
as mais secretas folhas

e os olhos,
por instante, são o rosto
e a noite

o vento que me prende e
não conheço.



joão miguel fernandes jorge
à beira do mar de junho
relógio d´água
2019








08 agosto 2020

jorge velhote / fria é a água na escuridão



.1.

Há uma luz branca que chega
como antes chegou uma luz
negra ou o frio vertiginoso
do esquecimento.
Olhavas as tuas mãos
enquanto nas veias escorriam
líquidos furiosos abrasando.
Por vezes a melancolia inclinava-te
a cabeça para lugares enxutos
e velozes. Ou escuros.
Vias os melros entre ramagens ocultos
como sombras e tangias o vento
para selar o inverno.



jorge velhote
âmago
edições sem nome
2018






07 agosto 2020

eduardo pitta / os meus amigos andam perdidos



Os meus amigos andam perdidos
um pouco por toda a parte.
De Lausanne ao Rio é o vasto mundo
dos desencontros, os mesmos que
de Naxos a Londres e de Manhattan ao Cabo
animam exílios vários.

Andam em diáspora os meus amigos.
Une-os, porventura, a mesma nostalgia.

Feridas antigas hipotecadas
ao futuro.


eduardo pitta
a linguagem da desordem
desobediência
poemas escolhidos
dom quixote
2011







06 agosto 2020

diogo vaz pinto / alguma coisa deve arder em nome desses



Alguma coisa deve arder em nome desses
a quem faltam os céus,
se despenham e na rede nada lhes deixam,
nem um astro duro, ou sequer uma bota
mas um brilho louco talvez te fixe os olhos no tecto
no tanto que ouvirias
se em cima se despisse outra mulher,
no ritmo de uma história andando de boca em boca
a roupa caindo
e o próprio golpe se abre e floresce
seco e doce de tão vasta madurez
a música se descesse às regiões inferiores
cada peça abalando a vida no quarto
enreda-me então e cerco-lhe a sombra
como se pingasse, chovendo no balde
nesse pobre piano da espera

queima-me a boca um gomo só
e da fome de o ter escrito o sumo escorre
entre o sono,
a sede mistura as memórias
demora-se a gota na pétala mais escura
cresce e bebo o gosto cansado deste mundo
rasgo a garganta dessa toada antiga
uma vida grega que ouvi cantada
como a trazia um pássaro
a quem estendia grainhas num prato
e um resto de água e tinta
e este reflexo como receita de veneno
pedi-lhe ajuda, um rumo entre os papéis,
e a noite e o seu soluço nalgum jardim quebrado
o fio que o ligasse ou a poeira de algo mais,
um contorno mesmo se escapasse
num tão veloz e desatado juízo
deixando marcas de batom ou sangue

nem acho que me faça hoje tanta falta
podia acabar-me devagar espaçando duas notas
com a navalha de abrir ostras nos dentes
devorando o grito dos demais
comendo com eles no chão
o que o céu deixa quando avança
mas se nem chega para todos
e logo esfria o cadáver da época
se o tumulto se acaba mais cedo agora,
em vez da morte, eu nascia
se então me tocasse enfim um lugar
mais lavado na graça sem sentido das coisas
e assim por muito tempo a música subisse
para não se lhe ouvirem os gritos



diogo vaz pinto
aurora para os cegos da noite
maldoror
2020







05 agosto 2020

rui caeiro / também os gritos são feitos



Também os gritos são feitos
de palavras, isto é

de uma grande ausência
de palavras, isto é

de silêncio carregado
de veneno



rui caeiro
baba de caracol
o sangue a ranger nas curvas apertadas do coração
maldoror
2019

04 agosto 2020

tomas tranströmer / o barco – a aldeia



Uma traineira portuguesa, azul, enrola um bocado do Atlântico.
Bem ao longe, um ponto azul, mas eu estou lá – onde seis homens
     a bordo não veem que nós somos sete.

Assisti à construção de um barco destes, parecia um alaúde enor-
     me sem cordas
na ravina de pobreza: a aldeia onde lavam e lavam sem parar, com
     fúria, paciência, melancolia.

A praia apinhada de gente. Era um comício que fora dispersado, os
     altifalantes confiscados.
Soldados levaram o Mercedes do orador por entre a multidão, apu-
     pos rufavam contra as chapas do veículo.




tomas tranströmer 
50 poemas
tradução de alexandre pastor
relógio d´água
2012