1912, 9 de Julho
Ainda não escrevi nada. Vou começar amanhã. Senão caio
outra vez num período de insatisfação irresistível e prolongado; já estou até a
entrar nele. As crises nervosas estão a aparecer. Mas se conseguir fazer
qualquer coisa, não preciso de tomar precauções supersticiosas.
A invenção do demónio. Se estamos possuídos pelo
demónio, não pode ser só por um, porque então viveríamos, pelo menos na terra,
em paz, como se fosse um Deus, em união, sem contradições, sem reflexão, sempre
seguros do homem atrás de nós. O seu rosto não nos amedrontaria, porque, como
seres diabólicos, teríamos, mesmo que um pouco sensíveis à vista, a esperteza
suficiente de preferir sacrificar uma mão para lhe tapar a cara com ela. Se estivéssemos
possuídos apenas por um demónio, um que tivesse uma visão tranquila, calma, de
toda a nossa natureza, e liberdade para dispor de nós em qualquer momento, esse
demónio teria também poder suficiente para nos manter durante o âmbito de uma
vida humana muito acima do espirito de Deus em nós, e mesmo para nos balançar
de um lado para o outro para que assim não víssemos nenhum sinal dele e
consequentemente não fôssemos perturbados por esse lado. Só uma multidão de
demónios pode ser responsável pelas nossas desgraças terrenas. Porque não se
matam eles uns aos outros até só ficar um, ou porque não ficam subordinados a
um grande demónio? Qualquer das duas hipóteses estaria de acordo com o
princípio diabólico de nos enganar tanto quanto possível. Faltando unidade,
para que serve a atenção escrupulosa que todos os demónios nos prestam? Deve importar
muito mais a um demónio que nos caia um cabelo do que a Deus, uma vez que o
demónio perde na realidade esse cabelo e Deus não. Mas não conseguimos atingir
um estado de bem-estar enquanto houver dentro de nós tantos demónios.
franz kafka
diários
(1910-1923)
trad. maria adélia silva melo
difel
1986