23 junho 2020

josé miguel silva / não sei se são os trinta anos



Não sei o que se passa comigo:
cada vez me assusta mais a solidão.
Aos vinte anos, aos vinte cinco,
figurava o paraíso como um quarto vazio,
onde o silêncio de um livro ressoava
pela noite dentro. Protegia dos amigos
minhas horas, dos irmãos, dos apelos
do telefone. Como um cego de nascença,
estudava a escuridão. Sonhava-me
recluso numa ilha de fragais, rodeado
de trincheiras, distante de pracetas,
acenos, convites pra jantar.
O lamento era o meu hobby preferido.

Não sei se são os trinta anos, a chuva,
o sabor de mais um dia derrubado
nos transportes colectivos,
a queda maligna das primeiras folhas;
não sei o que é, talvez o teu amor
comece, pouco a pouco, a civilizar-me.
Agora, se chego a casa e tu não estás,
corro a pôr música, abro janelas,
agarro-me ao telefone, como um náufrago,
incapaz de suportar por um segundo
o terror emboscado debaixo da cama,
atrás das estantes, dentro de mim.



josé miguel silva
ulisses já não mora aqui
língua morta
2014





22 junho 2020

jorge luís borges / argumentum ornithologicum



     Fecho os olhos e vejo um bando de pássaros. A visão dura um segundo ou talvez menos; não sei quantos pássaros vi. Era definido ou indefinido o seu número? O problema envolve o da existência de Deus. Se Deus existe, o número é definido, porque Deus sabe quantos pássaros eu vi. Se Deus não existe, o número é indefinido, porque ninguém pode fazer a conta. Nesse caso vi menos de dez pássaros (digamos) e mais de um, mas não vi nove, oito, sete, seis, cinco, quatro, três ou dois pássaros. Vi um número entre dez e um, que não é nove, oito, sete, seis, cinco, etc. esse número inteiro é inconcebível; ergo, Deus existe.




jorge luís borges
obras completas 1952-1972 vol. II
o fazedor (1960)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998









21 junho 2020

herberto helder / lugar



IV
Há cidades cor de pérola onde as mulheres
existem velozmente. Onde
às vezes param e são morosas
por dentro. Há cidades absolutas
trabalhadas interiormente pelo pensamento
das mulheres.
Lugares límpidos e depois nocturnos,
vistos ao alto como um fogo antigo,
ou como um fogo juvenil.
Vistos fixamente abaixados nas águas
celestes.
Há lugares de um esplendor virgem,
com mulheres puras cujas mãos
estremecem. Mulheres que imaginam
num supremo silêncio, elevando-se
sobre as pancadas da minha arte interior.

Há cidades esquecidas pelas semanas fora.
Emoções onde vivo sem orelhas
nem dedos. Onde consumo
uma amizade bárbara, um amor
levitante. Zona
que se refere aos meus dons desconhecidos.
Há fervorosas e leves cidades sob os arcos
pensadores. Para que algumas mulheres
sejam cândidas. Para que alguém
bata em mim no alto da noite e me diga
o terror de semanas desaparecidas.
Eu durmo no ar dessas cidades femininas
cujos espinhos e sangues me inspiram
o fundo da vida.
Nelas queimo o mês que me pertence.
Olho minha loucura, escada
sobre escada.

Mulheres que eu amo com um des-
Espero fulminante, a quem beijo os pés
supostos entre pensamento e movimento.
Cujo nome belo e sufocante digo com terror,
com alegria. Em quem toco levemente
levemente a boca brutal.
Há mulheres que colocam cidades doces
e formidáveis no espaço, dentro
de ténues pérolas.
Que racham a luz de alto a baixo
e criam uma insondável ilusão.

Dentro da minha idade, desde
a treva, de crime em crime — espero
a felicidade de loucas delicadas
mulheres.
Uma cidade voltada para dentro
do génio, aberta como uma boca
em cima do som.
Com estrelas secas.
Parada.

Subo as mulheres aos degraus.
Seus pedregulhos perante Deus.
É a vida futura tocando o sangue
de um amargo delírio.
Olho de cima a beleza genial
das suas cabeças
ardentes: — E as altas cidades desenvolvem-se
no meu pensamento quente.




herberto helder
poesia toda
lugar
assírio & alvim
1996




20 junho 2020

rafael mendes / o estrangeiro



como ser gente
nesta terra gelada
que se comunica num idioma
que eu apenas gaguejo;
de uma culinária sonsa
que só conhecia de hospital

cruzar suas pontes
sob a tempestade
distribuindo folhas a4
no afã – quase infantil –
pela resposta positiva

sou eu um alien?
não condição:
 nem gente
nem alien
que somos então?

somos o adeus ao lar
o amor ao ecstasy
as moedas contadas
cigarros de cor âmbar
ah, sim, somos gente!
gente que descobre o céu azul

e coleciona fronteiras;
gente que ginga na fala
e empacota a vida em 32Kg
sim, somos gente!
(você vai ouvir falar de nós)



rafael mendes
ensaio sobre o belo e o caos
editora urutau
2019





19 junho 2020

konstantinos kaváfis / sabem os sábios o que se avizinha




                               «Pois sabem os deuses o que há-de ser; os homens,
                               o que está a ser, e os sábios, o que está para ser.»

                               Filóstrato, Vida de Apolónio de Tiana, 8.7.



Os homens sabem o que está a ser.
O que há-de ser conhecem-no os deuses,
únicos e absolutos senhores das luzes.
Mas, do que há-de ser, os sábios apercebem
o que se avizinha. O ouvido deles

em horas de grave estudo,
se sobressalta. O secreto rumor
lhes chega de feitos que se acercam.
E a ele atendem reverentes. Entanto, na rua,
lá fora, as gentes nada ouvem.

1915



konstantinos kaváfis
kosntantinos kaváfis, 145 poemas
tradução de manuel resende
flop livros
2017





18 junho 2020

pedro loureiro / eu juro que não escolhi isto



Eu juro que não escolhi isto
esforcei-me por escapar
pelo friso do cordão umbilical
mas logo me colocaste o ébrio guizo
e este tinido incessante
calcifica tudo
até à transmutação da gola em redondel
portas chapeadas que cercam
o lusitano em corrida
a sacudir hipóteses e argumentos da crina
sempre em revolteio
é tão difícil ter-me de quatro
a mão que na superfície de uma janela toca o mundo
já recebeu a Grã Ordem de Marcha
e as mais altas condecorações
pela bravura do estupro
por isso, não
não me prometas nada
antes que o galo cante
negar-me-às n vezes



pedro loureiro
that´s all folks
editora urutau
2018





17 junho 2020

antónio sá / lugares na terra



Não há corredores nesta parte
da terra e nenhuma outra coisa
parece necessária.

Nem parede completa
ou quaisquer outras casas.
Um som contínuo
enche-a de bem-estar

e isso depende
de haver atmosfera
e nada ser próprio.

A mão toca os dedos, encerra-se no seu círculo.
Existe quase
um sentido de paixão no centro.


antónio sá
hífen 2 abr/ set 88
cadernos semestrais de poesia
1988







16 junho 2020

valter hugo mãe / os pobres vinham aos portões



os pobres vinham aos portões
deus mandava que lhes entregássemos
restos e laranjas mesmo que amargas

bocas de pobre
sabores de cão



valter hugo mãe
publicação da mortalidade
poesia reunida
segundo livro, primeira parte
mais bíblicos do que nunca
assírio & alvim
2018









15 junho 2020

mia couto / tristeza



A minha tristeza
não é a do lavrador sem terra.

A minha tristeza
é a do astrónomo cego.



mia couto
tradutor de chuvas
caminho
2013













14 junho 2020

camilo pessanha / soneto de gelo



Ingénuo sonhador – as crenças d´oiro
Não as vás derruir, deixa o destino
Levar-te no teu berço de bambino,
Porque podes perder esse tesoiro.

Tens na crença um farol. Nem o procuras,
Mas bem o vês luzir sobre o infinito!...
E o homem que pensou, - foi um precito,
Buscando a luz em vão – sempre às escuras.

Eu mesmo quero a fé, e não a tenho…
– Um resto de batel – quisera um lenho,
Para não afundir na treva imensa,

O Deus, o mesmo Deus que te fez crente…
Nem saibas que esse Deus omnipotente
Foi quem arrebatou a minha crença.


camilo pessanha
clepsidra
1920







13 junho 2020

natália correia / marcelo é bom bailarino



É entrar, venham ver a maravilha
das variedades na feira marcelina!
e entre atracções à escolha a que mais brilha
é de Marcelo a fúria bailarina.

Do tango ao rock do chá-chá-chá ao samba,
dançando a valsa como quem flores pisa,
baila Marcelo até na corda bamba
e os alunos de Apolo inferioriza.

Topa, enfim, de cavaco o mafarrico
no dernier cri da dança uma golpada:
rebolar-se no novo sassarico
para no partido acabar tudo à lambada.



natália correia
cancioneiro joco-marcelino
antologia poética
dom quixote
2018






12 junho 2020

ana hatherly / 463 tisanas


391

Tenho épocas em que sonho muito. Uma vez sonhei que estando de visita a uma casa desconhecida sou assaltada por um enxame de pequeninas moscas pretas que me cobrem o rosto. Para me livrar delas pego num frasco de álcool e chego-o aos olhos. Todas as mosquinhas caem lá dentro. Então o álcool torna-se um líquido leitoso cheio de pintas pretas. Aos poucos nessa massa turva surgem formas geométricas: cubos, esferas, pirâmides, cilindros, tudo símbolos de uma ignorada escrita. São lindas. Encantada quero mostrá-las a toda a gente. Acordando, escrevo isso no meu caderno de apontamentos.



ana hatherly
463 tisanas
quimera
2006












11 junho 2020

jorge de sena / ode para o futuro


Falareis de nós como de um sonho.
Crepúsculo dourado. Frases calmas.
Gestos vagarosos. Música suave.
Pensamento arguto. Subtis sorrisos.
Paisagens deslizando na distância.
Éramos livres. Falávamos, sabíamos,
e amávamos serena e docemente.

Uma angústia delida, melancólica,
sobre ela sonhareis.

E as tempestades, as desordens, gritos,
violência, escárnio, confusão odienta,
primaveras morrendo ignoradas
nas encostas vizinhas, as prisões,
as mortes, o amor vendido,
as lágrimas e as lutas,
o desespero da vida que nos roubam
- apenas uma angústia melancólica,
sobre a qual sonhareis a idade de oiro.

E, em segredo, saudosos, enlevados,
falareis de nós - de nós! - como de um sonho.



jorge de sena
pedra filosofal (1950)
trinta anos de poesia
editorial inova
1972