[…]
… Outra época maravilhosa em que os amigos são
pedaços da nossa própria alma. Formámos um ser. Descobrimos com eles não já o
mundo exterior, mas o mundo mais vasto do espírito. Comungámos juntos. Com alguns
quebrei, mais tarde, por impaciência, e ainda hoje o sinto. Uma parte do meu
ser ficou tão magoada que não gosto de lhe tocar: dói-me sempre. Há-de doer-me
até à morte. Mas então a amizade é um sentimento delicioso e com o viço da
primeira folha, quando irrompe e estremece.
O mundo, nesse tempo, restringia-se, para mim, à
Foz e a Leça, que não separo do pequeno pescador de camisola azul, que me
seguia com os olhos deslumbrados – o Nel –
e das figuras de António Nobre e de Justino de Montalvão.
Não os separo também do mar, do rio, dos barcos, da
atmosfera cheia de cor e de deslumbramento, onde, misturada à poalha do mar, à
luz doirada e a todos os reflexos do sol, anda a exaltação da nossa própria
alma… Foi num barco que conheci o Justino Montalvão, foi num barco, ao lado dum
velho pescador, que conheci o António Nobre, que logo me perguntou se não tinha
uma Bíblia que lhe desse.
– Para que
quer você a Bíblia?
– Para deitar
a cabeça, quando for no caixão.
[…]
raul brandão
memórias
relógio d´água
2018