19 julho 2019

yorgos seferis / a casa perto do mar



As casas que tive tiraram-mas. Calhou
que fossem anos nefastos guerras desolações expatriamentos;
por vezes o caçador encontra as aves de passagem
por vezes não as encontra; a caça
era boa no meu tempo, os chumbos apanharam muitos;
os outros vagueiam ou enlouquecem nos refúgios.

Não me fales do rouxinol nem da cotovia
nem da pequena arvéola
que escreve algarismos na luz com a sua cauda;
não sei muito de casas
sei que têm a sua tribo, mais nada.
novas ao princípio, como as crianças de colo
que brincam nos jardins como as franjas do sol,
bordam coloridas persianas e brilhantes
portas sobre o dia;
quando o arquitecto acaba mudam,
enrugam ou sorriem ou mesmo teimam
com os que ficaram com os que partiram
com outros que voltariam se pudessem
os que se perderam, agora que o mundo
se tornou num imenso hotel.

Não sei muito de casas,
lembro-me da sua alegria e da sua tristeza
às vezes quando paro;
                                            mesmo
às vezes, perto do mar, em câmaras nuas
com uma cama de ferro sem nada meu
olhando a aranha nocturna cismo
que alguém se prepara para vir, que o enfeitam
com roupa branca e negra com jóias multicores
e em seu redor falam baixo damas veneráveis
cabelos cinzentos e rendado escuro,
que se prepara para vir e despedir-se de mim;
ou, uma mulher com pestanas em hélice talhe profundo
voltando de portos meridionais,
Esmirna Rodes Siracusa Alexandria,
de cidades fechadas com as quentes persianas,
com perfumes de frutos de ouro e com ervas mágicas,
que sobe os degraus sem ver
os que adormeceram debaixo das escadas.

Sabes as casas teimam facilmente, quando as despes.


yorgos seferis
tordo
poemas escolhidos
trad. de joaquim manuel magalhães e nikos pratisinis
relógio d´água
1993





18 julho 2019

umberto saba / despedida




Vós o sabeis, amigos, e eu o sei.
Também os versos são quais bolas de sabão:
umas sobem, outras não.



umberto saba
«commiato», cose leggere e vaganti (1920)
vozes da poesia europeia III
traduções de david mourão ferreira
colóquio letras 165
fundação calouste gulbenkian
2003









17 julho 2019

antónio gancho / amor, entre a vida e a morte



AMOR, ENTRE a vida e a morte
escolhe à nossa sorte
ou o amor ou a loucura
escolhe a morte escolhe a vida
escolhe o beijo com ternura
amor, a vida não dura
a vida não dura, amor
e a ternura não sabe
mas cabe a ti dizer
o que é loucura até morrer
é a morte é a vida
é o beijo até morrer




antónio gancho
poemas digitais
jun. / jul. 89
o ar da manhã
assírio & alvim
1995







16 julho 2019

e e cummings / xix poemas



[xi]

“fundemos uma revista

que se lixe a literatura
queremos uma coisa com sangue na guelra

piolhosa com pura
fedendo com absoluta
e determinadamente obscena

mas deveras limpa
estão a ver
não estraguemos a coisa
façamos a coisa a sério

qualquer coisa de autêntico e delirante
percebem qualquer coisa de genuíno como uma marca
numa retrete

agraciada com gana e esganada
com graça”

apertem os tomates e abram a cara



e. e. cummings
xix poemas
trad. jorge fazenda lourenço
assírio & alvim
1998





15 julho 2019

wallace stevens / teoria



Sou o que me rodeia.

As mulheres compreendem isto.
Não se é duquesa
A cem metros de uma carruagem.
Estes, então, são retratos:
Uma antecâmara preta;
Uma cama alta protegida por cortinas.

Isto são meros exemplos.



wallace stevens
ficção suprema
trad. luísa maria lucas queiroz de campos
assírrio & alvim
1991



14 julho 2019

alberto caeiro / estou doente. meus pensamentos começam a estar confusos,




Estou doente. Meus pensamentos começam a estar confusos,
Mas o meu corpo, tocando nas coisas, entra nelas.
Sinto-me parte das coisas com o tacto
E urna grande libertação começa a fazer-se em mim,
Uma grande alegria solene como a de um acto heróico
Pondo a vis no gesto sóbrio e escondido.

1-10-1917


alberto caeiro
poemas inconjuntos
poemas de alberto caeiro, fernando pessoa
presença
1994



13 julho 2019

bob dylan / pela quarta vez



Quando ela disse
«Não desperdices as palavras, são só mentiras»
Gritei que era surda
E ela trabalhou-me a face até me amansar os olhos
Depois disse, «Que mais te resta?»
Foi então que me levantei para partir
Mas ela disse, «Não esqueças
Toda a gente deve dar algo em troca
Por algo que recebe»

Fiquei ali em pé e cantarolei baixinho
Dei umas batidas no tambor dela e perguntei-lhe porquê
E ela abotoou a bota
E endireitou o saia-casaco
Depois disse, «Não te armes em engraçadinho»
Então enterrei as minhas mãos nos bolsos
E tacteei com os polegares
E estendi-lhe galantemente
O meu último pedaço de chiclete

Ela pôs-me na rua
Fiquei na sujidade onde toda a gente andava
E depois de me dar conta de que me tinha
Esquecido da camisa
Voltei atrás e bati à porta
Esperei na entrada, ela foi busca-la
E tentei decifrar
Aquela fotografia tua na cadeira de rodas
Que estava encostada contra…

O seu rum jamaicano
E quando ela chegou, pedi-lhe um pouco
Ela disse, «Não, querido»
Eu disse, «As tuas palavras não são claras
Era melhor cuspires o chiclete»

Gritou até a cara lhe ficar toda vermelha
Depois caiu no chão
E eu tapei-a e então
Pensei ir dar uma vista de olhos à gaveta dela

E quando terminei
Enchi o meu sapato
E levei-o até ti
E tu, tu levaste-me para dentro
Amaste-me então
Não perdeste tempo
E eu, eu nunca tomei demasiado
Nunca pedi tua muleta
Agora não peças a minha



bob dylan
canções 1962-2001
volume 1 (1962-1973)
blonde on blonde
trad. angelina barbosa e pedro serrano
relógio d´água
2008






12 julho 2019

ruy belo / orla marítima



O tempo das suaves raparigas
é junto ao mar ao longo da avenida
ao sol dos solitários dias de dezembro
Tudo ali pára como nas fotografias
É a tarde de agosto o rio a música o teu rosto
alegre e jovem hoje ainda quando tudo ia mudar
És tu surges de branco pela rua antigamente
noite iluminada noite de nuvens ó melhor mulher
(E nos alpes o cansado humanista canta alegremente)
«Mudança possui tudo»? Nada muda
nem sequer o cultor dos sistemáticos cuidados
levanta a dobra da tragédia nestas brancas horas
Deus anda à beira de água calça arregaçada
como um homem se deita como um homem se levanta
Somos crianças feitas para grandes férias
pássaros pedradas de calor
atiradas ao frio em redor
pássaros compêndios da vida
e morte resumida agasalhada em asas
Ali fica o retrato destes dias
gestos e pensamentos tudo fixo
Manhã dos outros não nossa manhã
pagão solar de uma alegria calma
De terra vem a água e da água a alma
o tempo é a maré que leva e traz
o mar às praias onde eternamente somos
Sabemos agora em que medida merecemos a vida


ruy belo
todos os poemas I
homem de palavra(s)
assírio & alvim
2004







11 julho 2019

luis alberto de cuenca / aniversário




Não lamento o partires quando partiste – se todas
da minha vida partem, mais cedo ou mais tarde – ,
mas que continues a partir sempre que lembro
que não estás comigo, que é por exemplo agora.
Lamento que o filme da tua partida seja
na minha imaginação um tema recorrente
e que não haja neste mundo mistura química
capaz de me transportar ao reino do olvido,
onde tu não partes.




luis alberto de cuenca
a vida em chamas
uma antologia
trad. miguel filipe mochila
língua morta
2018






10 julho 2019

roberto juarroz / a sinceridade dissimulada da noite


A sinceridade dissimulada da noite
guia as gotas de chuva
até à atenção exemplar das coisas
e uma sílaba antiga,
uma gota de homem,
humedece as paredes porosas do pensamento.
Borboleta de pedra viva
que recolhe a cor de uma estrela apagada
para enunciar o tecido ardente
onde o pensamento é pasto das coisas,
torre de alimento
para a fome intersticial e alerta.

Pensar é como amar.


roberto juarroz
a árvore derrubada pelos frutos
trad. rui caeiro, duarte pereira e diogo vaz pinto
língua morta
2018






09 julho 2019

vasco gato / ser então impossível



Ser então impossível
desirmanar a luz
das coisas amadas,

justamente
porque tombadas
em concreta adoração,

e nunca um destroço
foi tão necessário
como existir.

  

vasco gato
um passo sobre a terra
língua morta
2018






08 julho 2019

luís falcão / no dia em que a essência sagrada




No dia em que a essência sagrada
das coisas se quebra
olhas a chuva nas flores das magnólias
e a morte
principia sobre ti o seu trabalho




luís falcão
bruma luminosíssima
artefacto
2016







07 julho 2019

bernardo soares / maneira de bem sonhar



Cuidarás primeiro em nada respeitar, em nada crer, em nada (...)

Guardarás da tua atitude ante o que não respeites, a vontade de respeitar alguma coisa; do teu desgosto ante o que não ames o desejo doloroso de amar alguém; do teu desprezo pela vida guardarás a ideia de que deve ser bom vivê-la e amá-la. E assim terás construído os alicerces do edifício dos teus sonhos.

Repara bem que a obra que te propões fazer é no mais alto de tudo. Sonhar é encontrarmo-nos. Vais ser o Colombo da tua alma. Vais buscar as suas paisagens. Cuida bem pois em que o teu rumo seja certo e não possam errar os teus instrumentos.

A arte de sonhar é difícil porque é uma arte de passividade, onde o que é de esforço é na concentração da ausência de esforço. A arte de dormir se a houvesse, deveria ser de qualquer forma parecida com esta.

Repara bem: a arte de sonhar não é a arte de orientar os sonhos. Orientar é agir. O sonhador verdadeiro entrega-se a si próprio, deixa-se possuir por si próprio.

Foge a todas as provocações materiais. Há no início a tentação de te masturbares. Há a do álcool, a do ópio, a do (...). Tudo isso é esforço e procura. Para seres um bom sonhador, tens de não ser senão sonhador. Ópio e morfina compram-se nas farmácias — como, pensando nisto queres poder sonhar através deles? Masturbação é uma coisa física — como queres tu que (...)

Que te sonhes masturbando-te, vá; que em sonhar talvez fumando ópio, recebendo morfina te embriagues da ideia do ópio (...) da morfina dos sonhos — não há senão que elogiar-te por isso: estás no teu papel áureo de sonhador perfeito.

Julga-te sempre mais triste e mais infeliz do que és. Isso não faz mal. E mesmo, por ilusão, um pouco escadas para o sonho.

s.d.


fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.I
presença
1990