27 outubro 2015

edgar lee masters / theodore, o poeta



Em rapaz, Theodore, passava horas sentado
na margem do turvo Rio Spoon
olhando fixamente para a furna que escondia o caranguejo,
à espera que ele saísse, mostrando primeiro
as antenas ondulantes como palhas de feno
e depois o seu corpo, cor de pedra-pomes,
adornado com dois olhos de azeviche.
E perguntavas a ti próprio, enleado em pensamentos,
o que saberia ele, que coisas desejava, por que viveria.
Mais tarde o teu olhar voltou-se para os homens e as mulheres
escondidos em furnas de acaso no meio de cidades.
Esperavas que mostrassem suas almas
para que pudesses ver
como viviam ou para quê,
e por que rastejavam com tal afã
ao longo do caminho arenoso onde a água escasseia
à medida que declina o Verão.



edgar lee masters
spoon river
tradução josé miguel silva
relógio d´água
2003




26 outubro 2015

miguel torga / incitamento



Remenda a tua rede, pescador!
Remenda as ilusões!
No maninho areal é que é sonhar!...
Ata e refaz a teia
Onde, queira ou não queira o mar,
Hás-de prender o corpo da sereia!

  
miguel torga
diário IX
1964



25 outubro 2015

daniel faria / homens que são como lugares mal situados


II

Sei que o homem lavava os cabelos como se fossem longos
Porque tinha uma mulher no pensamento
Sei que os lavava como se os contasse

Sei que os enxugava com a luz da mulher
Com os seus olhos muito claros voltados para o centro
Do amor na operação poderosa
Do amor

Sei que cortava os cabelos para procurá-la
Sei que a mulher ia perdendo os vestidos cortados

Era um homem imaginado no coração da mulher que lavava
O cabelo no seu sangue

Na água corrente

Era um homem inclinado como o pescador nas margens para ouvir
E a mulher cantava para o homem respirar



daniel faria
homens que são como lugares mal situados
fundação manuel  leão
2002




24 outubro 2015

charles baudelaire / embriaga-te



            Devemos andar sempre bêbados. Tudo se resume nisto: é a única solução. Para não sentires o tremendo fardo do Tempo que te despedaça os ombros e te verga para a terra, deves embriagar-te sem cessar.
            Mas com quê? Com vinho, com poesia ou com a virtude, a teu gosto. Mas embriaga-te.
            E se alguma vez, nos degraus dum palácio, sobre as verdes ervas duma vala, na solidão morna do teu quarto, tu acordares com a embriaguez já atenuada ou desaparecida, pergunta ao vento, à onda, à estrela, à ave, ao relógio, a tudo o que se passou, a tudo o que gemeu, a tudo o que gira, a tudo o que canta, a tudo o que fala, pergunta-lhes que horas são: «São horas de te embriagares! Para não seres como os escravos martirizados do Tempo, embriaga-te, embriaga-te sem cessar! Com vinho, com poesia, ou com a virtude, a teu gosto».


charles baudelaire
o spleen de paris
trad. antónio pinheiro guimarães
divulgação
1963





23 outubro 2015

josé miguel silva / homem do lixo



O último a chegar à festa tem
como castigo varrer o lixo,
o subproduto da embriaguez
organizada. Não é justo nem
injusto, é a lei dos retardatários.

A essa hora já os gastos foliões
mergulham no sono que se segue
a toda a felicidade, cientes
de que irão acordar ressacados
mas contentes por terem feito tudo
o que era humanamente possível
para se divertirem uma última vez.

Sozinho no recinto, o retardatário
dança com a sua vassoura,
recolhe sobriamente os detritos
da exaltação – preservativos,
cartazes, garrafas vazias –  
e consola-se com a mentira
de ter sido poupado à desilusão.

Findo o trabalho, tem ainda tempo
para se apiedar dos vindouros,
que da festa não terão sequer notícia,
que nunca poderão participar
sequer remotamente em algo
tão aparentado com a esperança.



josé miguel silva
ladrador
averno
2012




22 outubro 2015

almeida garrett / a nau catrineta


Lá vem a Nau Catrineta,
que tem muito que contar!
Ouvide, agora, senhores,
Uma história de pasmar."

Passava mais de ano e dia,
que iam na volta do mar.
Já não tinham que comer,
nem tão pouco que manjar.

Já mataram o seu galo,
que tinham para cantar.
Já mataram o seu cão,
que tinham para ladrar."

"Já não tinham que comer,
nem tão pouco que manjar.
Deitaram sola de molho,
para o outro dia jantar.
Mas a sola era tão rija,
que a não puderam tragar."

"Deitaram sortes ao fundo,
qual se havia de matar.
Logo a sorte foi cair
no capitão general"

- "Sobe, sobe, marujinho,
àquele mastro real,
vê se vês terras de Espanha,
ou praias de Portugal."

- "Não vejo terras de Espanha,
nem praias de Portugal.
Vejo sete espadas nuas,
que estão para te matar."

- "Acima, acima, gajeiro,
acima ao tope real!
Olha se vês minhas terras,
ou reinos de Portugal."

- "Alvíssaras, senhor alvissaras,
meu capitão general!
Que eu já vejo tuas terras,
e reinos de Portugal.
Se não nos faltar o vento,
a terra iremos jantar.

Lá vejo muitas ribeiras,
lavadeiras a lavar;
vejo muito forno aceso,
padeiras a padejar,
e vejo muitos açougues,
carniceiros a matar.

Também vejo três meninas,
debaixo de um laranjal.
Uma sentada a coser,
outra na roca a fiar,
A mais formosa de todas,
está no meio a chorar."

- "Todas três são minhas filhas,
Oh! quem mas dera abraçar!
A mais formosa de todas
Contigo a hei-de casar"

- "A vossa filha não quero,
Que vos custou a criar.
Que eu tenho mulher em França,
filhinhos de sustentar.
Quero a Nau Catrineta,
para nela navegar."

- "A Nau Catrineta, amigo,
eu não te posso dar;
assim que chegar a terra,
logo ela vai a queimar.
- "Dou-te o meu cavalo branco,
Que nunca houve outro igual."

- "Guardai o vosso cavalo,
Que vos custou a ensinar."
- "Dar-te-ei tanto dinheiro
Que o não possas contar"

- "Não quero o vosso dinheiro
Pois vos custou a ganhar.
Quero a Nau Catrineta,
para nela navegar.
Que assim como escapou desta,
doutra ainda há-de escapar"

Lá vai a Nau Catrineta,
leva muito que contar.
Estava a noite a cair,
e ela em terra a varar.



almeida garrett
romanceiro
ulisseia
1997




21 outubro 2015

jeannette lozano / flor



A flor receia a morte?
Toca-a? Cheira-a?
Devolve o seu perfume
à ondulação profunda?

Vira-se para a luz.

A morte é a flor
quando se abre.



jeannette lozano
telhados de vidro nº. 19
maio de 2014
tradução de inês dias
averno
2014





20 outubro 2015

mia couto / poema didático



Já tive um país pequeno,
tão pequeno
que andava descalço dentro de mim.
Um país tão magro
que no seu firmamento
não cabia senão uma estrela menina,
tão tímida e delicada
que só por dentro brilhava.

Eu tive um país
escrito sem maiúscula.
Não tinha fundos
para pagar a um herói.
Não tinha panos
para costurar bandeira.
Nem solenidade
para entoar um hino.
Mas tinha pão e esperança
para os viventes
e sonhos para os nascentes.

Eu tive um país pequeno,
tão pequeno
que não cabia no mundo.



mia couto
tradutor de chuvas
caminho
2013




19 outubro 2015

josé carlos ary dos santos / da condição humana



Todos sofremos.
O mesmo ferro oculto
Nos rasga e nos estilhaça a carne exposta.
O mesmo sal nos queima os olhos vivos.
Em todos dorme
A humanidade que nos foi imposta.
Onde nos encontramos, divergimos.
É por sermos iguais que nos esquecemos
Que foi  do mesmo sangue,
Que foi do mesmo ventre que surgimos.



ary dos santos
vinte anos de poesia
a liturgia do sangue 1963
círculo de leitores
1983



18 outubro 2015

al berto / retrato de fugitivo por paulo nozolino


caminha pela solidão nocturna dos quartos de hotel
e de fotografia em fotografia chega exausto
ao minucioso poema a preto e branco
mas já não o surpreende a violenta visão do mundo
este lento destroço que um líquido sussurro de prata
revela a partir de iluminada fracção de segundo

e bebe
e ama
e foge de si mesmo
com a leica pronta a ferir como uma bala ecoando
no fundo da memória um néon uma pedra
uma arquitectura de luz e sombra ou um deserto
onde se debruça para retocar os dias com um lápis
na certeza que sobreviverá a estes perfeitos acidentes
e estes restos de corpos a pouco e pouco turvos
pelo tempo pelo sono ou pela melancolia

mas regressa sempre à transumância das cidades
quando a alba do flash prende o furtivo gesto
sobre o papel fotográfico morre o misterioso fugitivo
depois
vem o medo
que se desprende do olhar imobilizado e do rosto
nasce uma vida de infinito caos



al berto
transumâncias
o medo
assírio & alvim
1997



17 outubro 2015

bernardo soares / há momentos…



Há momentos em que cada pormenor do vulgar me interessa na sua existência própria, e eu tenho por tudo a afeição de saber ler tudo claramente. Então vejo — como Vieira disse que Sousa descrevia — o comum com singularidade, e sou poeta com aquela alma com que a crítica dos gregos formou a idade intelectual da poesia. Mas também há momentos, e um é este que me oprime agora, em que me sinto mais a mim que às coisas externas, e tudo se me converte numa noite de chuva e lama, perdida na solidão de um apeadeiro de desvio, entre dois comboios de terceira classe.


fernando pessoa
livro do desassossego
por bernardo soares



16 outubro 2015

marcelino vespeira / ainda-agora-já conhecido-camarada-amigo


O ainda-conheido
profissionalmente
arruma a sua mão direita
no meu ombro esquerdo
profissionalmente
desarticula-se jubiloso
em frases mensageiras

 – Deixa-te disso meu rapaz…
a vida são dois dias!
O que é preciso é esfolar…
esfolar seja o que for,
esfolar – percebes?...

E eu não percebi.

O agora-camarada
profissionalmente
em calores clandestinos
de olhadelas-antes
profissionalmente
revoluciona-se em arco
numa máxima bem quente

 – Isto qualquer dia vira-se…
ai vira-se?
O que é preciso é ter olho,
olho – percebes?

E eu não percebi.

O já-amigo
profissionalmente
em palmadinhas cultas
nos meus ombros
profissionalmente
modela símbolos
de sabidas vitórias

 – Eu também já fui assim…
mas isso passa-te!
É questão de tempo,
de tempo – percebes?

E eu não percebi.

Os olhos do
ainda-agora-já
conhecido-camarada-amigo
profissionalmente
procuram as casas dos meus botões

E eu que nas casas
tinha os botões meus
por causa das correntes de ar
saldo a viagem
do ainda-agora-já
conhecido-camarada-amigo.

E ainda-agora-já
conhecido-camarada-amigo
sem olhos de viagem
sem casas de botões
com botões nas casas
dispara o adeuzinho final
glacé e de bom gosto

 –É pá tens a mania…
deves ser bestial!
Mas eu não te percebo,
não te percebo – percebes?...

E eu não percebi.



marcelino vespeira
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998





15 outubro 2015

cesare pavese / paisagem I


(para o Frango)


Aqui no alto, deixa de haver culturas. São só fetos
e penedos nus e esterilidade.
Aqui já não serve para nada o trabalho. O cume está queimado
e a única frescura é a respiração. É uma grande fadiga
chegar cá acima: o eremita subiu até aqui uma vez
e desde então ficou-se por aí a recuperar forças.
O eremita veste-se com peles de cabra
e exala um cheiro almiscarado de animal e tabaco
que impregnou a terra, as silvas e a gruta.
Quando se põe a fumar cachimbo, longe das pessoas, ao sol,
se o perco de vista nunca mais o encontro, pois é da cor
dos fetos crestados. Vêm cá visitá-lo pessoas
que caem prostradas em cima duma pedra, a suar e a arfar,
e encontram-no estendido, com os olhos no céu,
a respirar profundamente. Um trabalho ele fez:
deixou crescer a barba, emaranhada, sobre o rosto encardido,
meia dúzia de pelos arruivados. E deposita os excrementos
num descampado, a secar ao sol.

As encostas e os vales desta colina são verdes e profundas.
Entre vinhas, os carreiros trazem bandos estouvados
de raparigas, vestidas de cores violentas,
que fazem festas à cabra e lançam gritos para a planície.
Às vezes entrevêem-se filas de cestos de fruta,
mas não sobem até cá cima: os camponeses levam-nos para casa
às costas, curvados, e voltam a mergulhar na folhagem densa.
Têm mais que fazer do que ir ver o eremita
os camponeses, sobem, descem, e dão-lhe forte na enxada.
Quando lhes dá a sede, bebem uma golada: com o gargalo da garrafa
de vinho na boca, erguem os olhos para o cume crestado.
A meio da manhã, pela fresca, estão já de regresso, arrasados
de trabalho desde o romper do dia, e se passa um pedinte,
toda a água que os poços deitem no meio das colheitas
é para ele, que a beba. Dizem piadas aos grupos de mulheres
e perguntam-lhes porque é que, ali com tanta colina,
não se põem a torrar ao sol, vestidas de pele de cabra.



cesare pavese
diversos nº.1
trad. carlos leite