18 setembro 2015

alberto pimenta / elogio do kitch



nada é diferente do que é:
nem as coisas
nem as palavras.

tudo é como é: tanto
as coisas como
as palavras.

mesmo
quando se trata de
coisas
que encobrem as palavras
ou de
palavras
que encobrem as coisas.

porque
as coisas
são como são
e exactamente o mesmo
sucede com as palavras.

isto
não esquecendo
que as palavras
por assim dizer
são o esmegma das coisas
e as coisas
por assim dizer
o eclegma das palavras.

e é tudo,
não é verdade?



alberto pimenta
obra quase incompleta
fenda
1990



17 setembro 2015

albano martins / simulacro



Um gesto pode ser
um simulacro apenas.
Como quando arrefece
e acendes a lareira
para dar sangue às brasas.
No halo
da chama há sempre
uma voz que cintila
e te agradece.
É isso que se chama
dar voz ao silêncio.



albano martins
escrito a vermelho
campo das letras
1999



16 setembro 2015

umberto saba / ulisses



Na minha juventude naveguei
ao longo das costas da Dalmácia. À flor das ondas
cobertas de algas, viscosas, belas
como esmeraldas ao sol, emergiam ilhotas,
onde raramente um pássaro pousava
à espreita da presa. Quando a maré
alta e a noite as submergiam, velas
a sotavento guinavam mais ao largo,
para escapar à cilada. Hoje o meu reino
é essa terra de ninguém. O porto
acende as suas luzes para outros; a mim
impele-me ainda para o largo o espírito indomável
e o doloroso amor da vida.




umberto saba
dez poetas italianos contemporâneos em selecção
trad. albano martins
dom quixote
1992




15 setembro 2015

raffaele carrieri / piedade corações duros



Piedade, piedade corações duros
Piedade para o pássaro migrador
Que perdeu uma asa em pleno voo.
Piedade para o cigano órfão
Que jogou às cartas
Sela e cavalo
E se suicidou na prisão.
Piedade para o jovem Ninguém
Morto na China
Ou em outro qualquer lugar
Clima raça condição.
Piedade para o que morre de pé
No seu quarto de aluguer.
Piedade para o que cai
Piedade para o que se deixa cair.
Piedade, piedade corações duros
Vós que estais sempre sentados
E sabeis pelos jornais
A morte dos outros.


raffaele carrieri
dez poetas italianos contemporâneos em selecção
trad. albano martins
dom quixote
1992



14 setembro 2015

eva christina zeller / sonho



Ardem os campos
o lago bebe brasas
chove cinza na aldeia
sem estrelas a noite dilui-se
nenhuma pedra fala
em silêncio levanta-se o vento

escapei
recordo que esqueci


eva christina zeller
sigo a água
trad. Maria teresa dias furtado
relógio d´água
1996




12 setembro 2015

antónio franco alexandre / dos jogos de inverno



11

é altura de perguntar se estamos no inferno, se nada é possível,
se uma pequena letra confunde as estações e os abismos,
se acordo de um sonho em trânsito directo para o pesadelo.
Veja: basta dizê-lo. É muito fácil
acreditar em mim, como se fora um marco telegráfico
que o vento oscila, e corre por dentro
atravessado de vozes, obscuro como um rio transparente,
misturando, no fundo, nuvens, pássaros, limos.

Tudo o leva a crer: o silvo automóvel de ninguém na névoa,
as promessas quebradas, mãos de gesso segurando os patins e o lanche frio
                                                                                                                       [ véspera,
o desarnor tão rápido, e as máquinas onde os dedos repetidos batem
na produção de parafusos. Ou palavras com ar de parafusos,
metálicas, brilhantes, úteis perfeitamente
indispensáveis às comunidades e seus cinco mil intérpretes.
E ao fim da tarde todos se deitam nos tapetes húmidos de pó eterno
e oram ao deus da morte enquanto passam as notícias.

E eu impassível descendente de obscuros francos valencins
que faço inverno dentro no banquete, relógio
incerto a dar as horas quando chega ao fim? O meu inferno
é de onze meses, basta. Quero acordar de mim,
ser de repente o bosque posto em orla
da lisa pista fria. E que surpresa, a mão hábil do vento,
a máscara de nuvens presa rente! nem sei em que ficamos:



antónio franco alexandre
dos jogos de inverno
poemas
assírio & alvim
1996



11 setembro 2015

al berto / o domador de luas



estamos encostados a uma roulotte bebemos sangria
conversamos enquanto queimamos a noite
junto ao mar
o vento fresco surpreende-nos com as mãos nervosas
em redor dos copos embaciados a ternura dum olhar
não chega para iludir a embriaguez dos amores imperfeitos

sei que possuis ainda alguma juventude nesse sorriso
eu já só embebedo os lábios viciados pelas palavras
pouco tenho a dizer-te
toco-te no ombro faço promessas e tu ris
enquanto descobrimos no silêncio cúmplice do vinho
treme uma teia de luminoso sal onde a noite cai
sobreviveremos ao desgaste do amor

bebemos mais
para que haja só desejos e não amor entre nós e
o rapaz que tem a mania de espetar uma faca loura
no ombro do mar
La vie est une gare, je vais bientôt partir,
je ne dirai pas où.
calei-me
sabendo que me conduzirias até casa pelo caminho da praia
cambaleantes
e enquanto eu não conseguir abrir de novo os olhos
não partirás tenho a certeza
com a tua jaula cheia de luas mansas
apaziguadas



al berto
o medo
assírio & alvim
1997




10 setembro 2015

adolfo casais monteiro / profecia



Ai de quem sonha o futuro
de olhos fitos no passado!
Ai de quem vive abraçado
à sua estátua de bronze!
Ai daquele que já sabe
por onde abrir o caminho!

O seu destino tem certo:
que tudo lhe há-de saber
a comida já comida
que nada pode viver
sem lhe parecer já vivido


adolfo casais monteiro
sempre e sem fim
1937



09 setembro 2015

adília lopes / meteorológica


                    para o José Bernardino

  
Deus não me deu
um namorado
deu-me
o martírio branco
de não o ter

Vi namorados
possíveis
foram bois
foram porcos
e eu palácios
e pérolas

Não me queres
nunca me quiseste
(porquê, meu Deus?)

A vida
é livro
e o livro
não é livre

Choro
chove
mas isto é
Verlaine

Ou: um dia
tão bonito
e eu
não fornico




adília lopes
caras baratas
antologia
relógio d´água
2004




08 setembro 2015

ibn sâra / os viajantes da noite murmuram o teu nome



os viajantes da noite murmuram o teu nome
e as areias do deserto derramam sobre quem te pisa
o perfume do almíscar.
e da formusura da invocação sabemos da beleza do invocado
como pelo verdor das margens se pressente o rio.



ibn sâra
o meu coração é árabe
adalberto alves
assírio & alvim
1999



07 setembro 2015

henry deluy / a memória de ti




A memória de ti - não a tua imagem.

                 *

Depois chorar.




henry deluy
primeiras sequências
trad. colectiva Mateus, set. out. de 2000
quetzal editores
2002





04 setembro 2015

manuel gusmão / uma pedra na infância



Põe uma pedra
uma pedra sobre a infância

Para que de vez se cale essa respiração
contida suspensa no escuro

Põe, digo-te, uma pedra de silêncio sobre
essa infância essa fala ininterrupta essa

falagem que falha e promete e inventa
os sonhos e as promessas o riso sem porquê

Para que de vez se interrompa a esperança esse
mal que não desiste. Escreve, faz o que o ditado dita:

Enterra no silêncio da pedra essa intolerável coisa
que é a infância, as vozes da noite do poço.

Apaga a infância isso que falta sempre à chamada
e para sempre trocou já os desejos e os medos.

Já não vais a tempo, ela enredou sem remédio
as vidas os nomes a tua condenação. Mas vai.

Para que se cale de vez essa respiração que se ri
na cara da morte, nos olhos do enviado de deus

recita o que o ditado ditou: Põe uma pedra sobre
a infância e ouve a era a folhagem que cobrem

o céu em ruínas.

Também então havia uma pedra no canto do quarto
Alio onde a noite começava, era uma pedra e depois
crescia, petrificava-se no seu coração de pedra
dividia-se e eram várias crescendo; ocupando
todo o espaço do sono, do sonho do mundo.
Pesavam no teu peito procuravam-te os olhos
que de pedra ficavam e o grito era uma pedra
que na garganta subia contra a outra pedra.
O próprio ar golpeado era e dividia a voz
pedra contra pedra, o deserto a perder de vista.

Põe uma pedra sobre outra pedra. Inventa uma
outra infância de que possas recordar-te.
Obedeces ao poema e é sem espanto que vês:
nada acontece. Não há

nenhuma voz na voz dos condenados.



manuel gusmão
leyapoemas, jl
2009




03 setembro 2015

fernando pinto do amaral / zeitgeist



Os meus contemporâneos falam muito
e dizem: «Então é assim»,
com o ar desenvolto de quem se alimenta
do som da própria voz, quando começam
a explicar longamente as actuais tendências
das artes ou das letras ou das sociedades
a pouco e pouco iguais umas às outras
neste primeiro mundo em que nascemos,
agora que o segundo deixou de existir
e que o terceiro, mais guerra, menos fome,
continua abstracto, em folclore distante.

Parece que está morta a metafísica
e que a verdade adormeceu, sonâmbula,
nos corredores vazios onde, às escuras,
se vão cruzando alguns milhões de frases
dos meus contemporâneos. Todavia,
falam de tudo com o entusiasmo
de quem lança «propostas» decisivas
e percorre as «vertentes» de novos caminhos
para a humanidade, enquanto saboreiam
a cerveja sem álcool, o café
sem cafeína e sobretudo
o amor sem amor, para conservarem
o equilíbrio físico e mental.

Os meus contemporâneos dizem quase sempre
que não são moralistas, e é por isso
que forçam toda a gente, mesmo quem não quer,
a ser livre, saudável e feliz:
proíbem o tabaco e o açúcar
e se por vezes sofrem, tomam comprimidos
porque a alegria é uma questão de química
e convém tê-la a horas certas, como
o prazer vigiado por preservativos
e outros sempre obrigatórios cintos
de segurança, pra que um dia possam
sentir que morrem cheios de saúde.

Quando contemplo os meus contemporâneos
entre as conversas trendy e os lugares da moda,
«tropeço de ternura», queria ser
plo menos tão ingénuo como eles,
partilhar cada frémito dos lábios,
a labareda vã das gargalhadas
pla madrugada fora. No entanto,
assedia-me a acedia de ficar
assim, mais preguiçoso do que um Oblomov
à escala portuguesa — ó doce anestesia
a invadir-me o corpo, a libertar-me
desse feitiço a que se chama o «espírito
do tempo» em que vivemos, sob escombros
de um céu desmoronado em mil pequenos cacos
ainda luminosos, virtuais
estrelas que se apagam e acendem
à flor de todos os écrans
que os meus contemporâneos ligam e desligam
cada dia que passa, nunca se esquecendo
de carregar nas teclas necessárias
para a operação save
e assim alcançarem a eternidade.


fernando pinto do amaral
leyapoemas, jl
2009