29 agosto 2015

gil t. sousa / seguíamos a água



seguíamos a água
porque a secura nos cercava
como um animal
quase louco

do alto de pedras antigas
avistávamos cidades
para onde partíamos
a todas as horas

metrópoles
de ventos eufóricos
que nos sopravam
a humanidade inteira

na forma
do grito e do olhar
e no incêndio infinito
do sangue

e eram tão poderosas
as palavras que sabíamos
tão nobres os silêncios
por onde elas espelhavam

e tão grande
era tão grande o coração
que as ouvia,
que as guardava

num secreto
para sempre!



gil t. sousa
água forte
poesia reunida
editora medita
2014




28 agosto 2015

sophia de mello breyner andresen / as fotografias



Era quase no inverno aquele dia
Tempo de grandes passeios
Confusamente recordados ─
A estrada atravessava a serra pelo meio
Em rugosos muros de pedra e musgo a mão deslizava ─
Tempo de retratos tirados
De olhos franzidos sob um sol de frente
Retratos que guardam para sempre
O perfume de pinhal das tardes
E o perfume de lenha e mosto das aldeias.



sophia de mello breyner andresen
dual
caminho
2004



27 agosto 2015

amadeu baptista / carta de atenas



16

Há uma cidade sem mar em que procuro uma praia.
Os homens chegam. Não despertaram as casas
e já tomo nos braços o meu vazio. Eles dizem:
–  “ Procurámos a sombra de uma mulher.”

Durante toda a manhã as portas franqueadas
deixaram entrar toda a espécie de gente.
Na multidão um vagabundo chama o meu nome.
Não sei que responda. Passou demasiado tempo.

Os exércitos arrebataram o triunfo.
Amontoaram os cadáveres no silêncio.
Pela minha vigília o pesadelo alastra.
Há demasiado sangue nestes epitáfios.

Pouco tenho a dizer.
O eco subverte o clarão no horizonte
quando a pira está pronta para o sacrifício.
A inquietação é agora a minha alma.

Em nome da beleza a praia não existe.
A sombra procurada é só uma miragem.
O auriga avança no firmamento.
Pelo meu nome a cinza é um ser vivente.



amadeu baptista
arte do regresso
campo das letras
1999




26 agosto 2015

josé agostinho baptista / o centro do universo



É o fim a teus pés,
as caravanas partem através da bruma,
os filhos partem através de ti.
No interior dos salmos escutas o seu coração.

Assim te busca o tigre com seus dentes de sabre.
Cortante é o fio que te assalta, irrompendo pela carne.
Outro ritmo explicaria as investidas do sangue,
o desejo no florido alpendre dos amores.

Alumia-o se puderes, lua tão branca.

Porque ele não sabe em que reduto se oculta a garra
donde o terror emerge.



josé agostinho baptista
biografia
o centro do universo
assírio & alvim
2000



25 agosto 2015

glória gervitz / migrações (fragmentos)



                         Recomeço
Não é na obscuridade da fé
É na dúvida
 
Porque não chove?
Jamais regressarei
E o aqui vivido perder-se-á para sempre
 
Lá fora o ar enfraquece
                             O Verão começa a apodrecer
 
Não se pode falar do que realmente importa
Arranjava-se como quando era rapariga
                    As sobrancelhas desenhadas a lápis
                    A boca muito vermelha entre as rugas
 
Serei eu essa mulher?
Era ainda quase jovem com medo de não ser ninguém
E o desejo era monótono e negro com uma caixa
          de laca chinesa




glória gervitz
poemas
tradução de rosa alice branco
encontros de Talábriga




24 agosto 2015

mário cesariny / o riso útil


o riso útil da amorosa
retine de tal maneira
no pobre quarto côr-de-rosa

que as tuas mãos de senhor
já não sabem por que milagre
ainda é puro o amor



mário cesariny
manual de prestidigitação
vizualizações
assírio & alvim
1981



23 agosto 2015

alberto caeiro / ao entardecer



Ao entardecer, debruçado pela janela,
E sabendo de soslaio que há campos em frente,
Leio até me arderem os olhos
O livro de Cesário Verde.
Que pena que tenho dele!  Ele era um camponês
Que andava preso em liberdade pela cidade.
Mas o modo como olhava para as casas,
E o modo como reparava nas ruas,
E a maneira como dava pelas cousas,
É o de quem olha para árvores,
E de quem desce os olhos pela estrada por onde vai andando
E anda a reparar nas flores que há pelos campos ...

Por isso ele tinha aquela grande tristeza
Que ele nunca disse bem que tinha,
Mas andava na cidade como quem anda no campo
E triste como esmagar flores em livros
E pôr plantas em jarros...



alberto caeiro
o guardador de rebanhos



22 agosto 2015

fernando pinto do amaral / confessionário



Vagueara contigo de mãos dadas
pela Piazza del Duomo, àquela hora
ainda polvilhada de turistas
japoneses, chineses, coreanos,
todos armados de câmaras de vídeo,
e entrámos quase a medo: a catedral
respirava connosco a indiferença
dos séculos passados e futuros
nas imagens que ardiam com o furor
de agonias infelizes - santos, santas
e outras personagens lancinantes
olhavam para nós do seu abismo
feito de espelhos náufragos, que às vezes
reflectiam a cor das nossas faces.

Depois de alguns minutos por ali,
tacteando, assombrados, todo o peso
do silêncio compacto e vibrante,
reparámos de súbito na fila
dos típicos cubículos católicos
onde alguém escutaria a voz de alguém:
dois ou três ostentavam inscrições
em línguas estrangeiras - que Milão
sempre foi um lugar cosmopolita -
e à beira de um deles, irreal,
ajoelhava-se uma rapariga
de quem só conseguíamos fixar
a translúcida mancha do cabelo
sob um halo de luz avermelhada.

Na sua pose quase clandestina
alheia a tudo o resto, segredava
frases incandescentes, num murmúrio
por onde se escoavam os espectros
da sua vida ainda breve e obscura:
homens com quem dormiu só por capricho,
logo traídos sem saber porquê;
mulheres mais belas, mais inteligentes,
a quem guardou um ódio sufocado
nos sociais limites da amizade;
ou sobretudo essa ambição de ser
invejada por toda a perfeição
de uma existência limpa de ameaças,
desinfectada contra as tentações.

Cá fora o sol desaparecera. Os pombos
recolhiam aos ninhos sobre os rios
de gente absorvida pelas montras
acesas, procurando resgatar
da sombra as suas almas, os cinzentos
corações tão imunes ao remorso
a caminho da noite, plas feéricas
Galerias Vittorio Emanuelle.
Íamos de mãos dadas e sabíamos
que ninguém é capaz de absolver
ninguém, que toda a culpa ressuscita
a cada instante o nosso próprio rosto
e desenha pra sempre o seu perfil
sob o manto de gelo e de palavras.



fernando pinto do amaral
às cegas
relógio de água
1997




21 agosto 2015

maria do rosário pedreira / nesse verão, o vento despenteou os campos e os barcos



Nesse verão, o vento despenteou os campos e os barcos
andaram aos gritos sobre as ondas. A beleza excessiva
das crianças arrombou os espelhos; e as raparigas,
surpreendendo a intimidade dos pais, enlouqueceram
nos corredores e foram perder-se, também elas,
na volúpia dos dias. Nas árvores centenárias

rebentaram frutos que inflamavam a concha das mãos
e escorregavam para a boca com a pressa dos nomes
proibidos. O sol queimou as páginas do livro
interrompido na violência de um poema e revirou
os cantos do único retrato que resistira à moldura
do tempo. De noite, os rapazes deitaram-se às baías

atrás das estrelas; e os amantes, incomodados
com a exiguidade dos quartos, foram fazer amor
nos balneários frios da praia e acordaram nas vozes
um do outro. Já não sei o que disse e o que disseste:

o verão desarruma os sentimentos.

  

maria do rosário pedreira
o canto do vento nos ciprestes
gótica
2001





20 agosto 2015

pedro tamen / e agora: a tua pele.


E agora: a tua pele.
Revejo: é manso o mar.
E sei que o vento corre e que por ele
se colam no teu corpo lembranças de luar.

Descanso: os teus cabelos.
Entrego: já é dia.
Os caules são serenos, e ao vê-los
No côncavo da mão o sol nascia.


pedro tamen
princípio de sol
circulo de leitores
s/d





17 agosto 2015

henri michaux / palhaço



Um dia.
Um dia, em breve, talvez.
Um dia hei-de arrancar a âncora que separa o meu navio
dos mares.

Com a espécie de coragem necessária para ser nada e nada de nada,
hei-de abandonar o que me parecia ser indissoluvelmente próximo.
Hei-de trinchá-lo,
virá-lo do avesso,
rompê-lo,
correr com ele de escantilhão.

Vomitando de uma só vez o meu pudor miserável,
as minhas miseráveis combinações e encadeamentos
«de fio a pavio».

Esvaziado do abcesso de ser alguém,
hei-de beber de novo o espaço nutritivo.

A toque de ridículos,
de destituições (o que é a destituição?),
por explosão,
por vazio,
por uma total dissipação-dirrisão-purgação,
hei-de expulsar de mim
a forma que se julgava tão bem encaixada,
composta,
coordenada,
adequada ao meu ambiente e aos meus semelhantes,
tão dignos,
tão dignos,
os meus semelhantes.

Reduzido a uma humildade de catástrofe,
a um nivelamento perfeito,
como depois de um enorme cagaço.

Reconduzido abaixo de toda a medida
ao meu verdadeiro escalão,
ao ínfimo escalão
que não sei qual ideia--ambição me fizera abandonar.

Aniquilado em altura,
em estima.

Perdido num sítio longínquo (ou nem tanto),
sem nome,
sem identidade.

PALHAÇO,
arrasando à gargalhada,
pelo grotesco,
por uma barrigada de riso,
o sentido que,
contra todas as evidências,
atribuíra à minha importância.

Hei-de afundar-me.
Sem rede no infinito-espírito sub-jacente aberto a todos,
eu próprio aberto
a um novo orvalho inacreditável
à força de ser nulo
e raso...
e risível...


  

henri michaux
antologia
tradução de margarida vale de gato
relógio d´água
1999




16 agosto 2015

al-houtay’a / tudo que é novo é belo



De tudo o que é novo nasce um novo prazer,
mas eu  sei  que não é nova a jovem morte.

Ela fere pelas costas, e não é doce como o açúcar,
nem é como o vinho, nem como o sumo das uvas.


al-houtay’a
quatro poemas árabes
o bebebor nocturno
poemas mudados para português
por herberto helder
porto editora
2015



14 agosto 2015

carlos drummond de andrade / balanço



A pobreza do eu
a opulência do mundo

A opulência do eu
a pobreza do mundo

A pobreza de tudo
a opulência de tudo

A incerteza de tudo
na certeza de nada



carlos drummond de andrade
65 anos de poesia
antologia apresentada e
organizada por arnaldo saraiva
o jornal
1989