20 junho 2015

fernando luís / num café de bolonha


1
Saíu de um nome sem eco
e está sentado à minha mesa.
Com o sorriso pronto
a contornar o tédio a
quietude da minha existência.
O olhar tão nublado
como pisada erva e carvão
desenhava a fútil harmonia
entre alma e desejo,
vontade e o remoinho dela
cá fora.
Ali estava sem ocasião
para o destino. Por outras
palavras,
nunca quis olhar a agitada
superfície do lago
nem perder o seu rosto.

2
Desceu a ponte
e caminhou pela fria margem.
As infiguráveis alegrias
da sua vida, os amigos,
a amargura.
A cruel sedução dos corpos
roubara-lhe repouso
e juventude.

Ao sorriso seguiu-se
o esgar, à esperança
o trajecto

entre o café, a cama
e a afeiçoada ponte do jardim.

3
Em dia não a imagem
de ti se desfoca, desagrega-se
a veloz intenção da partilha
em dia aziago te esmorece
a tez, o pulso e a perícia
das mãos outrora plenas.

O suor das noites fortalece
a memória, suas lacunas,
rompe-se o tendão do ombro
em sangue, estás livre és
o vazio, um escombro,

o pronome esfacelado na parede,
cão, cão da morte foge e vai,
que te açoite em fogo
a mão do Senhor,
te afogue, te conduza
para ofegante tédio.

Que em dia não
te desfaçam a vida
e o recusado coração.

4
De quando em quando há
um precipício, um desatino nas coisas,
encadeamentos nebulosos a que
nos levam palavras, olhares.

Nada altera a substância do mundo,
nem o acreditado sentimento nem,
em irradiado poder,
a inesperada metáfora.

Tudo está no vazio,
nesse estremecimento. Tu, mesmo
tu, levas o teu nome ao impasse,
à perda das coisas nele contidas.

É então, de quando em quando,
que voa a trave do pensamento,
a pedra da alma, o sangue,
o sangue encordoado e brilhante
e acordas impaciente,
parado, e te afundas
na ideia de morte.

5
Um momento, deixa-me.
Não és quem quero, ver-te
turva o sentido desta realidade,
da ponte sobre o tejo,
cacilhas, o inverno
de temporais lá para dezembro.

Procuro-te no descampado
irreal das madrugadas, escadinhas
da praia acima, escolas gerais,
costa do castelo numa pequena
melodia sem parecença sem ninguém.

Por isso, esqueçamos
coisas por dizer, hábeis
silêncios, loas,
porque o sentimento em
ti posto se entrelaça em meias-águas.

Uma pausa,
um abanar de cornos
e a paisagem voltará,
estou certo,
com seu insolente ímpeto,
sua altiva harmonia.


6
Desta névoa em cerco
crescem rosas para ti,
o nublado anil das quimeras,
riscos de um destino dilacerado.

A paz das águas sobre
o mundo reacende o torpor
de Deus encarcerado, a memória
do estrangeiro deposto sob
a tua vida, sobressalto do sangue,
do inquieto, imortal e solitário
sopro a que se chama alma.

E com uma pedra engastada
em cada gesto vais
matar o chacal dos teus sonhos,
dessa névoa em cerco imaginada.


7
Este forte zumbido nas palavras,
no sentimento, nas veias
fechadas pela combustão
dos sedativos, o peso do
meu nome.

Depois a insónia, águas negras
donde sobem embustes,
o álcool que sustém o mundo
e arde desarvorado.
Ninguém se detém nas frases
que profiro, encadeio trevas,
cegas ideias, de coração ocasional
enfiado na cama e as mãos
enchem-se de água.

E tu, tornado d´alma,
iluminas o rasto do seu adeus,
as cinzas do que cantou,
do que calou na desrazão
dessa história sob a breve trovoada de leiria.


8
O nome que tomba dentro
da cabeça um estremeção
na boca a solidão a incerteza
do corpo noutro, as tuas mãos
não há tempo para perguntas.

Há-de passar este verão,
e outro, e em vagar de poço
apodrecer a vida, a ilusória
luz do corpo, o destino
de todas as palavras são
só imagens, flexões da tua
terceira pessoa, desmoronamentos
do que dizes, comoção sombria.
E a isso, à mudança das coisas,
dos lugares
e usos do amor,
chama-se, sem o saberes,
morte.


  

fernando luís
num café de bolonha
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990



19 junho 2015

saint-john perse / anabase


II

     É nos países frequentados que existem os maiores silêncios, nos países frequentados de gafanhotos ao meio-dia.
     Eu caminho, vós caminhais num país d´altas encostas de cidreiras, onde se põe a corar a roupa dos Grandes.
     Passamos por cima do vestido da Rainha, todo em renda com duas bandas de cor trigueira (ah! como o corpo ácido da mulher sabe manchar um vestido no sítio da axila!).
     Passamos por cima do vestido de Sua filha, todo em renda com duas bandas de cor viva (ah! como a língua do lagarto sabe colher as formigas no sítio da axila!).
     E talvez o dia não se escoe sem que um mesmo homem tenha ardido por uma mulher e por sua filha.
     Sábio riso dos mortos, pelem-se estes frutos!... E quê! já não existe graça no mundo sob a rosa selvagem?
     Vem sobre as águas, desse lado do mundo, um grande mal violeta. Ergue-se o vento. Vento de mar. E a roupa
     vai-se! como um padre feito em pedaços…



saint-john perse
anabase
trad. josé daniel ribeiro
relógio d´água
1992



18 junho 2015

walt whitman / ouvi de que falavam aqueles que falavam


III
Ouvi de que falavam aqueles que falavam, ouvi o que diziam acerca do princípio
          e do fim,
Mas eu não falo do princípio nem do fim.

Nunca houve mais princípio do que agora,
Nem mais juventude ou velhice do que agora,
E nunca haverá mais perfeição do que agora,
Nem mais Céu ou Inferno do que agora.

Ímpeto, ímpeto, ímpeto,
Sempre o ímpeto criador do mundo.

Das trevas avançam os opostos iguais, sempre a matéria e o incremento, o sexo
          sempre,
Sempre a malha da identidade, sempre a diferença, sempre a progenitura da vida.

É inútil pormenorizar, os cultos e os incultos sabem que assim é.

Mais do que certo, de pé firme, muito firme, entalhado nas vigas,
Possante como um cavalo, afectuoso, altivo, eléctrico,
Aqui estamos, eu e este mistério.

Clara e suave é a minha alma, claro e suave tudo o que não é a minha alma.

Faltando um, faltam ambos, e o visível é prova do invisível,
Até que se torne invisível e por sua vez provado.

Mostrando o melhor e separando-o, a idade afronta a idade,
Conhecendo a perfeita adequação e a justiça das coisas, enquanto discutem fico
          em silêncio, vou tomar banho e comtemplar-me.

Bem-vindos são todos os meus órgãos e atributos, e os de cada homem puro
          e são,
neles não há nada de vil, e nenhum deve ser menos familiar que o outro.

Estou satisfeito ─ vejo, danço, rio, canto;
Enquanto o meu amado companheiro de leito dorme abraçado a mim pela
noite fora, e furtivamente parte ao romper do dia,
Deixando-me cestos cobertos com toalhas brancas que enchem toda a casa,
Deverei adiar a minha aceitação, a minha realização, deverei gritar aos meus
          olhos,
Que deixem de olhar o caminho,
E de imediato decifrem e me revelem até ao pormenor,
O valor exacto de um e o valor exacto de dois, e qual vale mais?




walt whitman
canto de mim mesmo
trad. josé agostinho baptista
assírio & alvim
1999







17 junho 2015

rui knopfli / hidrografia



São belos os nomes dos rios
na velha Europa.
Sena, Danúbio, Reno são
palavras cheias de suaves inflexões,
lembrando em tardes de oiro fino,
frutos e folhas caindo, a tristeza
outoniça dos chorões.
O Guadalquivir carrega em si espadas
de rendilhada prata,
como o Genil ao sol poente,
o sangue de Federico.
E quantas histórias de terror
contam as escuras águas do Reno?
Quantas sagas de epopeia
não arrasta consigo a corrente
do Dniepre?
Quantos sonhos destroçados
navegam com detritos
à superfície do Sena?
Belos como os rios são
os nomes dos rios na velha Europa.
Desvendada, sua beleza flui
sem mistérios.
Todo o mistério reside nos rios
da minha terra.
Toda a beleza secreta e virgem que resta
está nos rios da minha terra.
Toda a poesia oculta é a dos rios
da minha terra.
Os que cansados sabem todas
as histórias do Sena
e do Guadalquivir, do Reno
e do Volga
ignoram a poesia corográfica
dos rios da minha terra.
Vinde acordar
as grossas veias da água grande!
Vinde aprender
os nomes de Uanétze, Mazimechopes,
Massintonto e Sábié.
Vinde escutar a música latejante
das ignoradas veias que mergulham
no vasto, coleante corpo do Incomáti,
O nome melodioso dos rios
da minha terra,
a estranha beleza das suas histórias
e das suas gentes altivas sofrendo
e lutando nas margens do pão e da fome.
Vinde ouvir,
entender o ritmo gigante do Zamveze,
colosso sonolento da planura,
traiçoeiro no bote como o jacaré,
acordando da profundeza epidérmica do sono
para galgar os matos
como cem mil búfalos estrondeantes
de verde espuma demoníaca
espalhando o imenso rosto líquido da morte.
Vede as margens barrentas, carnudas
do Púngoé, a tristeza doce do Umbelúzi,
à hora do anoitecer. Ouvi então o Lúrio,
cujo nome evoca o lírio europeu
e que é lírico em seu manso murmúrio.
Ou o Rovuma acordando exóticas
lembranças de velhos, coloniais
navios de roda revolvendo águas pardacentas,
rolando memórias islâmicas de tráfico e escravatura.


rui knopfli
memória consentida : 20 anos de poesia 1959-1979
imp. nac. casa da moeda
1982




16 junho 2015

cesare pavese / a imaginação humana é imensamente mais pobre do que a realidade



25 de Outubro de 1938

A imaginação humana é imensamente mais pobre do que a realidade. Se pensamos no futuro, vemo-lo sempre desenvolver-se segundo um sistema monótono. Não pensamos que o passado é um multicolor caos de gerações. Isto pode também servir para nos consolar dos terrores causados pela «barbárie técnica e totalitária» do futuro. Nos cem anos mais próximos poderá produzir-se uma sequência de, pelo menos, três momentos, e o espírito humano poderá, sucessivamente, viver na rua, na prisão e nos jornais.

O mesmo se pode dizer do futuro pessoal.



cesare pavese
o ofício de viver - diário (1935-1950)
trad. alfredo amorim
relógio d´água
2004




15 junho 2015

al berto / o esconderijo do homem triste



Não sei o que me aconteceu para ficar tão triste.
Lembro-me de ter percorrido meio mundo à procura de imagens.
Tinham- me dito: é no movimento incessante de quem viaja que encontrarás
a imobilidade que desejas.

Mas eu não sabia para onde ir. Deambulei anos a fio, e nunca encontrei as imagens
que queria. Gastei as parcas forças que tinha neste trabalho,
até que um dia me perdi junto ao mar.

Resolvi construir, ali mesmo, uma casa.

Tencionava não sair mais daquele lugar onde me perdera. Imobilizar- me,
viver e envelhecer dentro de quatro paredes nuas erguidas pelas minhas mãos.
Morrer frente ao mar, sozinho, como num romance que lera havia anos.
Esperar que a casa se esboroasse e me servisse, por fim, de túmulo.

Assim não aconteceu. Algum tempo depois, a casa transformou-se subitamente
em prisão. E talvez tenha sido isso que me pôs, assim, triste para sempre.
Custava-me a crer que aquilo que eu próprio construíra acabasse de me atraiçoar.

Assustei-me e fugi nessa mesma noite. Ignoro o que se passou com a casa.
Não sei se ainda existe... o que sei é que a meio daquela fuga desesperada
ocorreu-me o que me levaria, enfim, a encontrar o esconderijo para a minha
imobilidade.

É desse lugar iluminado que, hoje, vos falo.


Fui ter com um fotógrafo meu amigo e pedi-lhe para me retratar.
Ele acendeu um foco de luz. Sentei-me no centro dele.
A máquina disparou sem cessar.

Gesticulei, abri os braços, mexi-me muito - como se soubesse
que nunca mais o voltaria a fazer.

Quando o meu amigo mergulhou o papel fotográfico no revelador,
eu também mergulhei. Mas devo ter desmaiado uns segundos, talvez minutos,
porque ao retomar consciência senti as pernas e os braços dormentes
 - e todo o meu corpo estava mole.

Um véu de luz toldou-me a visão. Ceguei por instantes, mas não foi
uma sensação desagradável. Depois, o corpo começou a ondear,
a impregnar-se no papel e a coincidir com o retrato que o meu amigo fizera de mim.

Segundos mais tarde uma pinça metálica tirava-me do revelador. Senti, então,
a frescura da água - e toda a superfície da folha de papel, o meu novo corpo,
brilhou. Em seguida deixei-me entorpecer na temperatura tépida,
voluptuosa, do fixador.

Tinha encontrado o esconderijo.


E aqui estou, diante de quem me visita e olha. Apesar de não ter deixado de ser
um homem triste, adquiri a vantagem de estar sentado, e de já não precisar
de fugir ou desejar seja o que for.

Mas o pior momento do dia é aquele em que nos separamos. Não consigo dormir.
Fico noite fora com a minha solidão - e quem esteve a ver-me parte
com o susto de continuar a existir.

Nenhum de nós é capaz de murmurar: fica comigo e toca-me. E a noite cai,
de certeza, mais escura para quem parte.

Eu sou apenas a imagem do que fui. Não sinto nada.


Certa vez, um homem e uma mulher pararam diante de mim. Olharam-me muito tempo.

Aproximaram-se, afastaram-se, voltaram a aproximar-se do vidro que me protege. O nariz da mulher quase me tocou nos joelhos.

De repente, a mulher inclinou a cabeça, sobressaltou-se e disse:

- Zé, perdi o vidro do relógio.

O homem baixou-se e procurou-o. Quando o encontrou, deu-lho. Mas ela argumentou:

- A culpa foi tua. Eu não queria vir aqui.

O homem, muito sério, respondeu-lhe.

- Francamente, Fátima, não te toquei no pulso. Não mexi no tempo. Nunca mexo no tempo...

Outras vezes, quando não está ninguém olhar para mim, ponho-me a cismar:

A luz é o meu túmulo.

Em tempos, os meus gestos tiveram o rigor da abelha que rouba o pólen à flor.
Com esses gestos quis construir um espaço para o silêncio. Uma morada
onde fosse possível ignorar o mundo, ou esquecê- lo.

De vez em quando, aceito ainda o mistério das palavras que me cercam
e não coincidem, em nada, com a realidade. Eu só quis celebrar a vida.
Encontrar o esconderijo onde fosse possível um derradeiro acto de paixão.
O esconderijo onde pudesse, de novo, tocar teu rosto
e recusar a aridez da calúnia.

Mas a luz é o meu túmulo.

A pouco e pouco incendiaram-se os negros profundos, o círculo luminoso
aprisionou-me, e as mãos gesticularam sem sentido. O interior das paisagens
guardou a tua ausência. E numa última visão a madrugada
irrompeu do mar adormecido.

As mãos abriram-se novamente,
quando o dia começou a devorar a nudez do corpo.

Comovido, perdi a voz.

Não podia chamar-te, lembro-me, por isso desatei a escrever o teu nome
nas paredes da cidade. Tempo perdido. Já não podias ouvir-me nem ler-me.
Foi quando desejei, com ardor, este esconderijo.

Aqui, pelo menos, respiro ar condicionado, e um foco de luz
simula a eternidade dos dias.

Não há emoções, nem palavras ditas em voz alta. Não acontece nada,
nem se ouve respiração alguma.


Quem me visita diz coisas fantásticas a meu respeito. Nunca confirmo
nem desminto. Limito-me a ouvir e calo-me. Porque há coisas que devem correr com o tempo e, mais tarde ou mais cedo, nele se apagam.

É claro que também há coisas guardadas na minha memória de papel.
Mas essas, já não tenho a certeza de que alguém as tenha dito
ou eu as tenha, de facto, ouvido.

Por vezes ponho-me a sorrir, mas ninguém consegue ver que sorrio,
porque o retrato que me esconde - como eu - está morto e desfocado.

E a luz é o nosso túmulo.



al berto
o esconderijo do homem triste
"ver", círculo de leitores
lisboa, verão 1992, n.º 19






14 junho 2015

antonio gamoneda / alguém entrou na memória branca



Alguém entrou na memória branca, na imobilidade
do coração.

Vejo uma luz debaixo da névoa e a doçura do erro
faz-me fechar os olhos.

É a ebriedade da melancolia; como aproximar o
rosto de uma rosa doente, indecisa entre o perfume e
a morte.



antonio gamoneda
ainda
livro do frio
trad. de josé bento
assírio & alvim
1999



13 junho 2015

eugénio de andrade / lisboa



Esta névoa sobre a cidade, o rio,
as gaivotas doutros dias, barcos, gente
apressada ou com o tempo todo para perder,
esta névoa onde começa a luz de Lisboa,
Rosa e limão sobre o Tejo, esta luz de água,
nada mais quero de degrau em degrau.



eugénio de andrade
escrita da terra
1974 





12 junho 2015

antónio franco alexandre / fico aguardando telegramas...



fico aguardando telegramas, os azuis
recados.
os poderes da manhã já pouco duram.
à superfície o som move na boca

um pouco sopro.
não julgues que me importam as roldanas
do tempo no teu
corpo

são certos os abismos de cartão
e falsa a neve que nos cobre os passos.
de graça a terra nos dispõe na foto
e a idade inventa nomes que a dissipem

descobre-me impacientes os recados o
envelope da urgência o intervalo



antónio franco alexandre
a pequena face
assírio & alvim
1983



11 junho 2015

john ashbery / na quinta do norte



Algures alguém viaja furiosamente ao teu encontro,
A uma velocidade incrível, viajando dia e noite
Por entre nevões e calores do deserto, transpondo torrentes, atravessando desfiladeiros.
Mas saberá ele onde te encontrar?
Reconhecer-te-à quando te vir?
Dar-te-à coisa que tem para ti?

Aqui quase nada cresce,
E contudo os celeiros estão a abarrotar,
As sacas de grão empilhadas até às trevas do tecto.
Os ribeiros correm docemente, engordando o peixe;
Pássaros escurecem o céu. Será que basta
Deixar a malga do leite lá fora à noite,
Pensar nele às vezes,
Às vezes e sempre, com sentimentos confusos?


john ashbery
uma onda e outros poemas
tradução colectiva / joão barrento
poetas em mateus
quetzal editores
1992




10 junho 2015

herberto helder / em boa verdade houve tempo em que tive uma




em boa verdade houve tempo em que tive uma
                                         ou duas artes poéticas,
agora não tenho nada:
sento-me, abro um caderno, pego numa esferográfica
                                           e traço meia dúzia de linhas:
às vezes apenas duas ou três linhas;
outras, vinte ou trinta:
houve momentos em que fui apanhado neste jogo e cheguei
                            a encher umas quantas páginas do caderno
aconteceu também por vezes que o papel pareceu
                                                                 estremecer,
mas o mundo, não: nunca senti que o mundo estremecesse
                                              sob as minhas palavras escritas,
o que já senti, e é de facto um pouco estranho, foi isto:
enquanto escrevia, o mundo parecia deslocar-se,
e quando eu chegava ao fim das linhas escritas,
sabia que estava tudo feito,
sentia que devia morrer
mas, como se vê, nunca o mais simples atingiu em mim a
                                                       sua própria profundidade



herberto helder
poemas canhotos
porto editora
2015




09 junho 2015

mário-henrique leiria / último encontro



o amor não somos nós que o temos
é-nos dado
muito antes de termos nascido
talvez verdadeiro     autêntico
como o encontro do mar e da luz

depois    muito depois
quando os teus braços     os teus seios
chegaram até mim
já estavam perdidos
já não existiam
o meu rosto deformado     atroz
já não te podia olhar
mas os meus olhos    esses sim
ainda te viam como antes
como tu eras quando não existias
só os meus olhos
só os meus olhos
as mãos    essas     sem dedos
esfoladas    esfaceladas
de tanto esperar
nunca te encontraram
w    na grande planície do medo
ficavas tu    que não existias
o meu corpo   belo   perdido
sem rosto   muito pálido
partiu então
entre a nuvem e a sombra
maravilha de verdade
mas perdido na praia do sonho
embalado em algas
com muitos animais marinhos no sexo
com um rasto de luas
que sempre     sempre
o acompanharão

apenas duas gotas de sangue
pequenas    rutilantes

os meus olhos     os meus olhos
sempre os meus olhos



mário-henrique leiria
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998




08 junho 2015

marin sorescu / leda



Leda passa sorrindo
Por entre as coisas
E vai para a cama
Com todas elas.

O muro fez-lhe um filho
Da hera,
O sol fez-lhe nascer
Um girassol.

Ela fez amor às claras
Com todos os bois,
À cabeça o boi Apis,
Mas, diabos a levem,
Nem sequer se nota.

Grande puta,
Esta Leda,
Por isso é que o mundo continua
tão bonito.




marin sorescu
simetria
tradução colectiva revista, completada e apresentada
por egito gonçalves
poetas em mateus
quetzal
1997