29 abril 2015

herberto helder / descobrimento


(...)

Dizem que Ghoete escreveu e rescreveu os seus poemas.
Leonardo era mortalmente paciente diante das cores.
E que sabemos dos outros, os mais antigos?
Tudo é eternamente recomeçado. Não se sabe
o que acharam. Acharam alguma coisa - os antigos, os modernos?

O que esse homem procurava e achou não é exemplo.
E embora toda a poesia seja uma proposta ou solução moral,
nós, os desta nação, mal podemos imaginar as alegrias
e dores do homem estrangeiro, ao frio e à névoa,
na grande solidão dessa rua circular que talvez não exista em Antuérpia
nem noutra qualquer cidade de um tão grande, tão grande mundo.

Mas quem pode confiar em nós, que somos desta terra,
e por isso tão pouco a conhecemos?

(...)


herberto helder
os passos em volta


28 abril 2015

madou lamine sall / amantes de auroras



Procurei-te por todo o lado e em nenhum
entre a flor e o caule
entre o dia e a noite
por entre os risos do sono
por entre as carícias da ausência
Onde estás filha da noite
já o poema perde o fôlego
e as palavras se esquivam
a caneta dança em arabescos ébria do seu vinho negro
as vogais estão distraídas
e as consoantes teimosas erram em procissão
sobre o vazio da página que boceja
Serás a única a compreender esta noite porque
escrevo este poema de sexo e de azeitona de sangue e de amor
Gostaria de te falar no ventre da noite
à hora em que migalhas de estrelas dançam na tua boca
de mel e de febre
Onde estás rapariga da noite
sei que voltarás
porque sou a fera da tua toca
o réptil que te serpenteia e te traz para a luz
do dia.



madou lamine sall 
poemas
tradução de rosa alice branco 




27 abril 2015

paul mills / procris



Agora ela usa um roupão azul
Que lhe cobre os tornozelos
E sandálias vermelhas
E um colar
Enfeitado com conchas. Agora ela sorri,
Um sorriso largo, um oceano de luz,

Agora ela olha fixamente para lá da porta.
Agora ela põe em soslaio os olhos vagos.
Agora ela usa um secreto sorriso
Que por vezes muda
Em secreto torpor.

Agora ela dorme, como Procris
Sob as mãos de Pã.
Que achou um leopardo
Numa forma de jovem, adormecida
No travesseiro de suas mãos.

Mas agora ela tenta cobrir-se
De sono. Agora tenta
Lutar para sair dos sonhos.
Agora ela está cerrada como um punho.

A porta abre-se e ela entra na sala.
Não aqui. Ela senta-se, sorri.
Não aqui. Agora ela usa um rosto novo.



paul mills
leituras, poemas do inglês
tradução de joão ferreira duarte
relógio de água
1993





26 abril 2015

wilfred owen / insensibilidade



I
Felizes são aqueles que mesmo antes de mortos
Podem deixar arrefecer as veias.
De quem nenhuma paixão escarnece
Nem faz magoar os pés
Nas ruas calcetadas com os irmãos.
A linha da frente fraqueja,
Mas são tropas que murcham e não flores
Para o pranto tonto dos poetas:
Os homens, brechas para preencher,
Baixas que podiam ter durado
Mais no combate, mas ninguém se importa.

II
E alguns deixam de sentir
Mesmo a si próprios ou por si próprios,
Embotados, resolvem melhor
A irritante incerteza das granadas,
E a estranha aritmética do Acaso
Surge mais simples que o cálculo do seu soldo.
Não conferem o dizimar dos exércitos.

III
Felizes são aqueles que perdem a imaginação:
Já têm fardos a mais com a munição,
E o espírito não puxa cargas.
Só o frio faz doer as velhas feridas.
Tendo visto vermelho em toda a parte,
Livram-se-lhe os olhos
Da dor da cor do sangue para sempre.
E passado o primeiro aperto do terror,
Os corações ficam contraídos.
Cauterizados há muito os sentidos
No ferro em brasa da batalha,
Podem rir com indiferença entre os que morrem.

IV
Feliz o soldado em sua casa, sem saber
Que algures, de madrugada, homens atacam,
E são muitos os suspiros que se esvaem.
Feliz o moço de mente não treinada:
Os seus dias são vendo bem, para esquecer.
Canta ao compasso da marcha
Que marchamos, taciturnos, pelo escuro,
O longo, desesperado, inexorável curso
Do maior dia à noite mais imensa.

V
Nós, sábios, que com um só pensamento
Manchamos de sangue a alma toda,
Como havemos de ver a nossa missão
Senão pelos seus olhos cegos e sem cílios?
Vivo, ele não chega bem a ser vital;
A morrer, não chega bem a ser mortal;
Nem triste, nem altivo,
Nem sequer curioso.
Não distingue
Da sua a placidez dos velhos.

VI
Mas malditos sejam os broncos que nenhum canhão aturde,
Que se tornassem em pedras.
Desgraçados são, e vis,
Com uma pobreza que nunca foi simplicidade.
Por própria escolha tornaram-se imunes
À piedade e a tudo o que no homem se condói
Antes do mar final e das estrelas desditadas;
Tudo o que se condói quando tantos deixam estas praias;
Tudo o que partilha
A eterna reciprocidade das lágrimas.


wilfred owen
leituras, poemas do inglês
tradução de joão ferreira duarte
relógio de água
1993




25 abril 2015

Abril, sempre!



antónio gedeão / pedra filosofal


Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso,
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos,
que em oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.

Eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho alacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que foça através de tudo
num perpétuo movimento.

Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara graga, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa dos ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, paço de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
pára-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão de átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.
Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida.
Que sempre que o homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.
  


antónio gedeão




manuel alegre / biclicleta de recados



Na minha bicicleta de recados
eu atravesso a madrugada dos poemas
pedalo nas palavras atravesso as cidades
bato às portas das casas e vêm homens espantados
ouvir o meu recado ouvir minha canção.

Na minha bicicleta de recados
eu vou pelos caminhos.
Vem gente para a rua a ver a novidade
como se fosse a chegada
do João que foi à Índia
e era o moço mais galante
que havia nas redondezas.
Eu não sou o João que foi à Índia
mas trago todos os soldados que partiram
e as cartas que não escreveram
e as saudades que tiveram
na minha bicicleta de recados
atravessando a madrugada dos poemas.

Desde o Minho ao Algarve
eu vou pelos caminhos.
E vêm homens perguntar se houve milagre
perguntam pela chuva que já tarda
perguntam pelos filhos que foram à guerra
perguntam pelo sol perguntam pela vida
e vêm homens espantados às janelas
ouvir o meu recado ouvir minha canção.

Porque eu trago notícias de todos os filhos
eu trago a chuva e o sol e a promessa dos trigos
e um cesto carregado de vindima
eu trago a vida
na minha bicicleta de recados
atravessando a madrugada dos poemas.


manuel alegre
praça da canção
centelha
1975




24 abril 2015

cruzeiro seixas / no silêncio sem pudor da luz e das engrenagens



No silêncio sem pudor da luz e das engrenagens
apavorado e demente
separo a noite do dia
misturo as recordações amarelecidas
com o cinzento do amanhã.

As mãos ficaram esquecidas nas tuas mãos
e como que adormecidas
fazem e desfazem a longuíssima trança dos sonhos
até que as nuvens vêm enfim
reconhecer a pederastia do Mar.

Ao crepúsculo
avançam as cavernas mais profundas
exibindo estalactites de lágrimas
descendo na profundidade de tinteiros de prata e ametista.

Galopam vertiginosamente as cadeiras pela imensa planície
e trémulos escutamos a espuma imaculada
o espaço das axilas ainda analfabeto
a coluna e as pálpebras ao fundo
tudo o que naufraga
arde       tomba
anónimo ilumina
e no interior mais recôndito das casas
sob o peso esverdeado das máquinas
se retira e liquefaz.

  

artur do cruzeiro seixas
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998




23 abril 2015

josé gomes ferreira / deslumbramento



LVII

Deslumbramento
desta manhã mil vezes repetida
com o ouro das mãos do sol
a apalparem o vento,
o vento-fêmea que se despe num lençol
e nos seios da roupa estendida.

Peles de cadáveres que uma volúpia branca desespera
─ enforcados pela cólera da primavera.


josé gomes ferreira
café 1945-1946-1947-1948
poesia III
portugália
1971



22 abril 2015

nunes da rocha / é preciso rasgar a língua



É preciso rasgar a língua
No espelho,
Atirar-lhe sal;
É preciso não ceder também
À possibilidade,
Deste ou outro destino;
E nu,
Sem morada ou blasfémia
Caminhar sobre o esquecimento.



nunes da rocha
resumo
a poesia em 2013
documenta
2014




21 abril 2015

miguel-manso / campéstico, paisagens e interiores


7

à noite quando a lua repousa no ombro
mais chegado à melancolia

a chávena mal se distingue no parapeito
e a peste dos meus versos alastra lá ao fundo
numa abandonada escrivaninha

sou o escravo doido que repousa do idioma
entregando-se ao inaparente ruído dos insectos
e de mãos tombadas sobre o vazio

vela o descomedido trauma terreal



miguel-manso
persianas
tinta da china
2015


















20 abril 2015

philippe soupault / perdida e reencontrada



Se me dizeis o que penso
e que o tempo foi perdido
creio que vos esqueceis
ou do acaso ou da verdade

Perdida na floresta
de esplendorosas verdades
a lua cala-se
e vós dormis

Os meus sonhos não estão à venda
e deles só dou o reflexo
do que queima e que devora
angústia amor à mistura



philippe soupault
poesia do século xx
(de thomas hardy a c. v. cattaneo)
organiz. e tradução de jorge de sena
editorial inova
1976




19 abril 2015

ezra pound / «a nuvem imóvel» de to-em-mei



«Primavera molhada, » diz To-em-mei,
«Primavera molhada no jardim.»


I
As nuvens acumularam-se e acumularam-se
                   e a chuva a cair e a cair
As oito pregas dos céus
                   dobraram-se num único negrume,
E a estrada longa e plana a prolongar-se.
Detenho-me no meu quarto que dá para leste, calmo, calmo,
Afago o meu novo casco de vinho.
Os meus amigos estão arredados, ou estão lone,
Curvo a cabeça e permaneço quieto.

II
Chuva, chuva, e as nuvens acumularam-se,
As oiti pregas dos céus são um negrume,
A terra plana transformou-se em rio.
                   «Vinho, vinho, aqui há vinho!»
Bebo junto à janela que dá para leste.
Penso em conversar e em alguém,
E nenhum barco, ou carruagem, se aproxima.

III
As árvores no meu jardim voltado a leste
                   rebentam numa explosão de ramos novos,
Tentam atiçar afeição nova,
E os homens dizem que o sol e a lua giram sempre
                   porque não conseguem achar um aconchego.
As aves esvoaçam ao pousar na minha árvore
                   e a mim parece-me que as ouvi dizer,
«Não é que não existam outros homens,
Mas nós gostamos mais é deste sócio,
Mas apesar do nosso anseio em lhe falar
Nada ele pode saber da nossa mágoa.»

T”ao Yuan Ming
365-427 d. C.



ezra pound
catahay
tradução gualter cunha
relógio d´água
1995




18 abril 2015

charles ribeiro / terracota



                    Morri algumas vezes
          Junto à retina     diante do beijo
esparso

─                              ─

Eu morri algumas vezes
          distante


                    gofando

                           ─

sobre Mantegna  o mármore
           Pasolini o nu  ─



querino
terracota
dezembro de 2014
vitória da conquista