I
Felizes são aqueles que mesmo antes de mortos
Podem deixar arrefecer as veias.
De quem nenhuma paixão escarnece
Nem faz magoar os pés
Nas ruas calcetadas com os irmãos.
A linha da frente fraqueja,
Mas são tropas que murcham e não flores
Para o pranto tonto dos poetas:
Os homens, brechas para preencher,
Baixas que podiam ter durado
Mais no combate, mas ninguém se importa.
II
E alguns deixam de sentir
Mesmo a si próprios ou por si próprios,
Embotados, resolvem melhor
A irritante incerteza das granadas,
E a estranha aritmética do Acaso
Surge mais simples que o cálculo do seu soldo.
Não conferem o dizimar dos exércitos.
III
Felizes são aqueles que perdem a imaginação:
Já têm fardos a mais com a munição,
E o espírito não puxa cargas.
Só o frio faz doer as velhas feridas.
Tendo visto vermelho em toda a parte,
Livram-se-lhe os olhos
Da dor da cor do sangue para sempre.
E passado o primeiro aperto do terror,
Os corações ficam contraídos.
Cauterizados há muito os sentidos
No ferro em brasa da batalha,
Podem rir com indiferença entre os que morrem.
IV
Feliz o soldado em sua casa, sem saber
Que algures, de madrugada, homens atacam,
E são muitos os suspiros que se esvaem.
Feliz o moço de mente não treinada:
Os seus dias são vendo bem, para esquecer.
Canta ao compasso da marcha
Que marchamos, taciturnos, pelo escuro,
O longo, desesperado, inexorável curso
Do maior dia à noite mais imensa.
V
Nós, sábios, que com um só pensamento
Manchamos de sangue a alma toda,
Como havemos de ver a nossa missão
Senão pelos seus olhos cegos e sem cílios?
Vivo, ele não chega bem a ser vital;
A morrer, não chega bem a ser mortal;
Nem triste, nem altivo,
Nem sequer curioso.
Não distingue
Da sua a placidez dos velhos.
VI
Mas malditos sejam os broncos que nenhum canhão aturde,
Que se tornassem em pedras.
Desgraçados são, e vis,
Com uma pobreza que nunca foi simplicidade.
Por própria escolha tornaram-se imunes
À piedade e a tudo o que no homem se condói
Antes do mar final e das estrelas desditadas;
Tudo o que se condói quando tantos deixam estas praias;
Tudo o que partilha
A eterna reciprocidade das lágrimas.
wilfred owen
leituras, poemas do inglês
tradução de joão ferreira duarte
relógio de água
1993