“... Tenho sessenta anos. Não te iludas:
não estou ainda bastante fraco para ceder
às imaginações do medo, quase tão absurdas
como as da esperança e seguramente muito mais penosas.
Se fosse preciso enganar-me a mim mesmo,
preferia que fosse no sentido da confiança;
não perderia mais com isso e sofreria menos.
Este fim tão próximo não é necessariamente imediato;
deito-me ainda, todas as noites,
com a esperança de chegar à manhã seguinte.
Adentro dos limites intransponíveis de que te falei há pouco,
posso defender a minha posição passo a passo
e recuperar mesmo algumas polegadas do terreno perdido.
Não deixo por isso de ter chegado à idade
em que a vida se torna, para cada homem, uma derrota aceite.
Dizer que os meus dias estão contados
não significa nada; sempre assim foi; é assim para todos nós.
Mas a incerteza do lugar, do tempo e do modo,
que nos impede de distinguir bem o fim
para o qual avançamos sem cessar,
diminui para mim à medida que a minha doença mortal progride.
Qualquer pessoa pode morrer de um momento para o outro,
mas o doente sabe que passados dez anos
já não será vivo. A minha margem de hesitação
já se não alonga em anos, mas em meses.
As minhas probabilidades de acabar com uma punhalada no coração
ou por uma queda de cavalo tornam-se cada vez menores;
a peste parece improvável, a lepra ou o cancro
afiguram-se definitivamente afastados.
Já não corro o risco de cair nas fronteiras,
atingido por um machado caledónio ou trespassado por uma flecha parta;
as tempestades não souberam aproveitar as ocasiões
que se lhes ofereceram, e o feiticeiro que me predisse que eu me não
afogaria
parece ter acertado.
Morrerei em Tíbure, em Roma ou em Nápoles quando muito,
e uma crise de sufocação encarregar-se-á da tarefa.
Serei levado pela décima ou pela centésima crise?
É essa a única questão.
Assim como o viajante que navega entre as ilhas do Arquipélago
vê despontar, ao entardecer, uma espécie de névoa luminosa
e descobre pouco a pouco a linha da costa,
eu começo a avistar o perfil da minha morte.
Certas fracções da minha vida
assemelham-se já a salas desguarnecidas de um palácio
demasiadamente vasto que um proprietário empobrecido
renuncia a ocupar todo.”
marguerite yourcenar
memórias de adriano
trad. maria lamas
ulisseia
1974