13 julho 2014

fernando pessoa / não sei quantas almas tenho.



Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem achei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,

Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem,
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo: "Fui eu?"
Deus sabe, porque o escreveu.



fernando pessoa




12 julho 2014

fernando guimarães / casa




Não é pela minha casa que caminho agora, mas através da imagem que tenho dela. As distâncias são maiores. Sempre que chego ao fim dos seus corredores sinto-me cansado. Por isso, ando mais devagar. Por vezes abro uma porta e o que vejo é apenas aquilo que imagino: um espaço que existe no meu espírito. Tudo nele é exacto, tranquilo. O ar principia a envolvê-lo como se encontrasse uma espécie de segredo ou a minha própria indecisão. Detenho-me nesse lugar como se esperasse por alguém. As paredes são brancas, levemente inclinadas. É assim que sinto como depressa vem o tempo ao meu encontro, mas nada acontece. Olho com mais atenção... Ao lado, distingue-se uma mesa vazia. As janelas conservam-se fechadas. Outrora podia ver a partir daí algumas árvores e escutar o seu rumor. Talvez conseguisse mesmo suster um pouco a respiração, quando esperava por uma atmosfera límpida e submissa. Ouvia também o mar, porque ele estava de novo sujeito às minhas palavras. Dirijo agora os passos para outras salas, aquelas que ficavam mais longe. Mas sei que todas são iguais. Nada podia perturbar a disposição que sempre tiveram, o equilíbrio último desta casa. Admito ter encontrado o seu centro, um lugar que todos julgavam não existir. Está nos meus olhos.



fernando guimarães 




11 julho 2014

jean-arthur rimbaud / meditações



Eu sou o peão da estrada larga através
dos bosques; abafa-me os passos o rumor
das comportas.

Durante muito tempo, permanece no meu
olhar a melancólica limpeza do oiro do
poente.


jean-arthur rimbaud
meditações
alma azul
2007




10 julho 2014

fiama hasse pais brandão / nada tão silencioso como o tempo




Nada tão silencioso como o tempo
no interior do corpo. Porque ele passa
com um rumor nas pedras que nos cobrem,
e pelo sonoro desalinho de algumas árvores
que são os nossos cabelos imaginários.
Até nas íris dos olhos o tempo
faz estalar faíscas de luz breve.

Só no interior sem nome do nosso corpo
ou esfera húmida de algum astro
ignoto, numa órbita apartada,
o tempo caladamente persegue
o sangue que se esvai sem som.
Entre o princípio e o fim vem corroer
as vísceras, que ocultamos como a Terra.

Trilam os lábios nossos, à semelhança
das musicais manhãs dos pássaros.
Mesmo os ouvidos cantam até à noite
ouvindo o amor de cada dia.
A pele escorre pelo corpo, com o seu correr
de água, e as lágrimas da angústia
são estridentes quando buscam o eco.

Mas não sentimos dentro do coração que somos
filhos dilectos do tempo e que, se hoje amamos,
foi depois de termos amado ontem.
O tempo é silencioso e enigmático
imerso no denso calor do ventre.
Guardado no silêncio mais espesso,
o tempo faz e desfaz a vida.


  
fiama hasse pais brandão
cenas vivas
relógio d'água
2000






09 julho 2014

gil t. sousa / água-forte, poesia reunida



estão todos convidados!



josé miguel silva / passagem



Em Segóvia há uma praça,
na praça uma varanda, na varanda
o rasto de ninguém.

Mas tens uma cadeira no café,
abundante chá de tília,
a certeza de que dentro duma hora
vai abrir-se para ti
a livraria da esquina.

É pouco mas sossega,
sob o bolso da camisa,
o motim do coração.




josé miguel silva
ulisses já não mora aqui
língua morta
2014




08 julho 2014

leopoldo maria panero / o que resta depois da flor



O que resta depois da flor
é uma coisa sem dentes,
recordando
o mistério da flor, a medonha agulha
para gravar na pele as sílabas
da dor: e a vida
é como uma irritação, ou uma incomodidade
de ser ainda nada,
                           como uma recordação.



leopoldo maria panero
conversação
tradução pedro serra
livros cotovia
2001



07 julho 2014

ary dos santos / kyrie



Em nome dos que choram,
Dos que sofrem,
Dos que acendem na noite o facho da revolta
E que de noite morrem,
Com a esperança nos olhos e arames em volta.
Em nome dos que sonham com palavras
De amor e paz que nunca foram ditas,
Em nome dos que rezam em silêncio
E falam em silêncio
E estendem em silêncio as duas mãos aflitas.
Em nome dos que pedem em segredo
A esmola que os humilha e destrói
E devoram as lágrimas e o medo
Quando a fome lhes dói.
Em nome dos que dormem ao relento
Numa cama de chuva com lençóis de vento
O sono da miséria, terrível e profundo.
Em nome dos teus filhos que esqueceste,
Filho de Deus que nunca mais nasceste,
Volta outra vez ao mundo!




ary dos santos
a liturgia do sangue
lisboa
1963




06 julho 2014

novalis /os hinos à noite


1

De entre os seres vivos que têm o dom da sensibilidade haverá algum que não ame, mais do que todas aparições  feéricas do extenso espaço que o rodeia, a luz, em que tudo rejubila as suas cores, os seus raios, as suas vagas, e a suave omnipresença do seu dia que desponta? Como se fora a alma mais íntima da vida, respira-o o gigantesco orbe dos astros sem repouso, que flutua dançando no seu fluxo azul - respira-a a pedra faiscante, em sempiterna paz, as plantas sugadoras e meditativas, e os animais selvagens e ardentes, de tão várias figuras - todavia, mais do que todos, respira-o o excelso Estrangeiro, de olhar pensativo, passos incertos, lábios docemente apertados e repletos de harmonias. Como um rei da terrestre Natureza, ela convoca todas as potências para inúmeras transformações, prende e desprende perenes vínculos e envolve todos os seres terrenos na sua celeste imagem. Somente pela sua presença desvela toda a maravilha dos impérios do mundo.

[...]


  
novalis
os hinos à noite
tradução fiama hasse pais brandão
assírio & alvim
1998



05 julho 2014

daniel faria / explicação da gravidade



A lei das coisas é tombar
Interrogando-se:
Só o pássaro vive para o voo.
Quando pousa é igual ao homem que se senta
Para pensar.
O homem pensa que nada é mais profundo
Que depois de Deus os filhos e os sismos.



daniel faria
poesia
últimas explicações
quasi
2003



04 julho 2014

henry deluy / o mar



O mar era quase uma estrada ao longo da costa.
Ao longo da palavra costa. ─ Pois não havia palavra
Mais afastada de nós ─ Eram, sim, os rochedos,
À beira-mar. ─ E o mar era como uma entrada

                               *

Para não chegar à morte.


henry deluy
primeiras sequências
trad. colectiva Mateus, set. out. de 2000
quetzal editores
2002




03 julho 2014

ângela marques / circulares


II

havia um combóio de ti que me levava
de veneza a paris
partia todas as noites de um cais azul
quando me reencontrava com fotografias velhas
e pedaços de jornal esquecidos no banco de jardim
reconheci o teu nome mesmo que a música
não trouxesse rastos de perfume da beira
onde os rostos te ficaram tão na memória
debruço-me sobre os teus olhos até
o vento me devolver às águas
e ao fundo há uma catedral de velas
que se confundem no horizonte
assim te leio postais molhados
enquanto procuras o cheiro de roupa lavada
e um pedaço de sol em cima da cómoda
descubro que são nossas as gotas de mar
penduradas naquela janela verde quando
o riso nos vem aos lábios
o rio atravessa infinitamente este barco
podemos abrir as mãos de ternura
afastar as cortinas da solidão
e acenarmos à i1ha do sul

amanhã chegaremos aí

Porto, 8-11-81



ângela marques
circulares
nova renascença
abril/junho
primavera de 1985






02 julho 2014

sophia de mello breyner andresen / espera



Dei-te a solidão do dia inteiro,
Na praia deserta, brincando com a areia,
No silêncio que apenas quebrava a maré cheia
A gritar o seu eterno insulto,
Longamente esperei que o teu vulto
Rompesse o nevoeiro.



sophia de mello breyner andresen
obra poética I
dia do mar 1947
caminho
1999