28 dezembro 2013

eugénio de andrade / que fizeste das palavras?



Que fizeste das palavras?
Que contas darás tu
dessas vogais
de um azul tão
apaziguado?


E das consoantes, que
lhes dirás,
ardendo entre o fulgor
das laranjas e o sol dos
cavalos?


Que lhes dirás, quando
te perguntarem pelas
minúsculas
sementes que te
confiaram?



eugénio de andrade




27 dezembro 2013

stella zagatto paterniani / em festa



os anjos que me circundam (eu sei)
são anjos desfigurados com cabelos cinzentos e
asas (como devem tê-las os anjos)
são fortes e sorriem e dançam e (também sei)
se alegram quando me ilumino.


digo, por isso às vezes
me brotam lágrimas e falta o ar
─  porque esses anjos querem
(esquecem sua condição celestial)
brindar a vida e no regozijo ─  tão se excedem
e vêm a mim todos alegres pelo tempo que há.




stella zagatto paterniani
natália gregorini
deleites e ladrilhos
editora medita
2013



26 dezembro 2013

luiza neto jorge / poema quase epitáfio



Violentamente só
desfeito em louco
- nem um gato lunar
te arranha um pouco

Morreram-te na família
irmãos mais velhos
Restam retratos de vidro
e espelhos

Entre as fêmeas bendita
não te quis
As outras mataste
(nem há sangue que te baste)

O chão do teu país
deu-te água e uma raiz
muitas pedras mas prisões

- Senhor demónio dos sós
Quando ele morrer
onde o pões?

  
luiza neto jorge
os sítios sitiados
plátano
1973




24 dezembro 2013

alberto caeiro / o pastor amoroso



O pastor amoroso perdeu o cajado,
E as ovelhas tresmalharam-se pela encosta,
E de tanto pensar, nem tocou a flauta que trouxe para tocar.  
Ninguém lhe apareceu ou desapareceu.  
Nunca mais encontrou o cajado.
Outros, praguejando contra ele, recolheram-lhe as ovelhas.  
Ninguém o tinha amado, afinal.
Quando se ergueu da encosta e da verdade falsa, viu tudo:
Os grandes vales cheios dos mesmos verdes de sempre,
As grandes montanhas longe, mais reais que qualquer sentimento, 
A realidade toda, com o céu e o ar e os campos que existem, 
estão presentes.
(E de novo o ar, que lhe faltara tanto tempo, lhe entrou fresco 
nos pulmões)
E sentiu que de novo o ar lhe abria, mas com dor, 
uma liberdade 
no peito.

  

alberto caeiro



23 dezembro 2013

e e cummings / quando o cabelo cai e os olhos se turvam



quando o cabelo cai e os olhos se turvam. E
as coxas esquecem (quando os relógios sussurram
e a noite grita) Quando as mentes
se enrugam e os corações se tornam mais frágeis a cada
Instante (quando numa manhã a Memória se levanta,
com desajeitados e murchos dedos
vertendo a cor da juventude e o que foi
num copo sujo) Poções para as Indisposições
(uma receita contra o Riso a Virgindade a Morte)


então querida o
modo como as árvores se Fazem em folhas
as Nuvens abertas tomam o sol as montanhas
permanecem E os oceanos Não dormem não interessa
nada; então (então as únicas mãos por assim dizer são
aquelas sempre que rastejam devagar sobre qualquer
rosto numerado capaz do maior inexpressivo olhar do
menor sisudo sorriso
ou do que quer que seja que as ervas sintam e os peixes
pensem)



e.e. cummings
livrodepoemas
trad. cecília rego pinheiro
assírio & alvim
1999



22 dezembro 2013

josé régio / ignoto deo



Desisti de saber qual é o Teu nome,
Se tens ou não tens nome que Te demos,
Ou que rosto é que toma, se algum tome,
Teu sopro tão além de quanto vemos.

Desisti de Te amar, por mais que a fome
Do Teu amor nos seja o mais que temos,
E empenhei-me em domar, nem que os não dome,
Meus, por Ti, passionais e vãos extremos.

Chamar-Te amante ou pai... grotesco engano
Que por demais tresanda a gosto humano!
Grotesco engano o dar-te forma! E enfim,

Desisti de Te achar no quer que seja,
De Te dar nome, rosto, culto, ou igreja...
- Tu é que não desistirás de mim!




josé régio




21 dezembro 2013

al berto / a escrita é a minha primeira morada de silêncio



a escrita é a minha primeira morada de silêncio
a segunda irrompe do corpo movendo-se por trás das palavras
extensas praias vazias onde o mar nunca chegou
deserto onde os dedos murmuram o último crime
escrever-te continuamente... areia e mais areia
construindo no sangue altíssimas paredes de nada


esta paixão pelos objectos que guardastes
esta pele-memória exalando não sei que desastre
a língua de limos


espalhávamos sementes de cicuta pelo nevoeiro dos sonhos
as manhãs chegavam como um gemido estelar
e eu persegui teu rasto de esperma à beira-mar


outros corpos de salsugem atravessam o silêncio
desta morada erguida na precária saliva do crepúsculo

  

al berto



20 dezembro 2013

antónio ramos rosa / para um amigo…



Para um amigo tenho sempre um relógio
esquecido em qualquer fundo de algibeira.
Mas esse relógio não marca o tempo inútil.
São restos de tabaco e de ternura rápida.
É um arco-íris de sombra, quente e trémulo,
É um copo de vinho com o meu sangue e o sol.

  
antónio ramos rosa
viagem através de uma nebulosa
ática
1960




19 dezembro 2013

charles baudelaire / o gato


I

Por meu cérebro vai passeando,
Tal como em seu apartamento,
Um gato de todo encantamento,
e de inaudito miado brando,

Tanto o seu timbre é o mais discreto;
Mas, se é a voz calma ou iracunda,
Ela sempre é rica e profunda:
Este é o seu encanto secreto.

E a sua voz em mim infiltro,
No meu fundo mais tenebroso,
Doce qual verso numeroso
Consoladora como um filtro,

Abranda o mal que na alma lavra,
Contendo os êxtases e as pazes;
Para dizer as longas frases
Nunca precisou da palavra.

Certo não há arco que fira
Meu coração, este excelente
Órgão e o faça nobremente
Cantar só como canta a lira,

Como esta voz, ó misterioso,
Gato seráfico e esquisito
Em que tudo é, como num rito,
Tanto subtil quanto harmonioso!


II

Destas lãs louras e morenas
Sai um olor doce de pelos,
Que me perfumei só por tê-los
Afagados uma vez apenas.

É como os manes da morada;
Preside no seu magistério
Todas as coisas deste império:
Seria talvez Deus ou fada?

Quando o olhar para este gato a esmo,
Como por um ímã atraído,
Se dirige, e tão sucumbido,
E que eu olho para mim mesmo,

Eu vejo com olhar demente
A luz destas pupilas ralas,
Claras fanais, vivas opalas,
Que me contemplam fixamente.




charles baudelaire




18 dezembro 2013

fiama hasse pais brandão / as espécies de mortos



Há aqueles que morrem
com muitas espadas
no sangue coalhado

Há aqueles na cama
que morrem no corpo
consigo deitado

Há aqueles que morrem
com cavalo e sela
e fato completo

Há aqueles de amor
que morrem de tiro
com o coração

Há aqueles que morrem
por já ter caixão
e ser a idade

Há aqueles de luto
que morrem também
como o defunto

Há aqueles que morrem
com navalha certa
por causa do gume

Há aqueles de armas
que morrem em fila
organizados

Há aqueles que morrem
por não terem cura
e têm parentes

Há aqueles doentes
que morrem no fim
e depois há missa

Há aqueles que morrem
com a mesma morte
e a vida pior

Há aqueles de fome
que por isso morrem
e nem trazem vida

Há aqueles homens
que não têm vida
e morrem pior

  
fiama hasse pais brandão
barcas novas
1967



17 dezembro 2013

paul éluard / o beijo



Ainda toda quente da roupa tirada
Fechas os olhos e moves-te
Como se move um canto que nasce
vagamente mas em toda a parte

Perfumada e saborosa
Ultrapassas sem te perder
As fronteiras do teu corpo

Passaste por cima do tempo
Eis-te uma nova mulher
Revelada até ao infinito.



paul éluard
poemas de amor e de liberdade
trad. egito gonçalves
campo das letras
2000




16 dezembro 2013

albano martins / compasso para elegia




Não me venham dizer que há remédio:
nada substitui a presença das coisas,
a presença material das coisas.

Os dias da morte
gravitam no escuro,
enquanto acendo fósforos de sombra
à tua procura nas gavetas,
nos armários, nas cabines,
em todos os lugares
onde fatalmente
tu não estás.

Nenhum prodígio pode reconstituir
a tua voz, o sorriso interior da tua boca,
voz humana, acesa no peito,
cujas palavras eram como labaredas.

Só o silêncio comemora o facto
de teres vivido como o álcool,
possuindo possuída,
com as artérias cheias de vinho doce
- corpo de vaso e sangue de licor.


  
albano martins
assim são as algas
campo das letras
2000



15 dezembro 2013

camilo pessanha / soneto



Imagens que passais pela retina
Dos meus olhos, porque não vos fixais?
Que passais como a água cristalina
Por uma fonte para nunca mais!...

Ou para o lago escuro onde termina
Vosso curso, silente de juncais,
E o vago medo angustioso domina,
Porque ides sem mim, não me levais?

Sem vós o que são os meus olhos abertos?
O espelho inútil, meus olhos pagãos!
Aridez de sucessivos desertos...

Fica sequer, sombra das minhas mãos,
Flexão casual de meus dedos incertos,
Estranha sombra em movimentos vãos.



camilo pessanha
clepsidra