1
Do século em seus espaços e
tempos eu via
Para lá do eixo funcional dos
limites
Animal de quinta dimensão
mantido
Ao choro unido sem quebra,
cabra
Indomável palavra em figura
perpassando
Sua digna continuada emoção.
Subia a hortícola saia para me
garantir
Fazedora do esquecido vento em
cada pulo
2
Passeava a cegueira pelo meu
sorriso de fé
Eu hostiava as sombras para as
contentar de luz
E tinha tanta verdade em meus
olhos esplendida
Que já nada temia do ameaçador
espelho
Afinal meu consolo, meu feito
ser.
Assim o levo nos meus bolsos e
peitilhos
Como documento de firmeza
sempre preparado
A saltar às conversas
desditosas e às dúvidas
A mim própria saltando. Mais do
que a prece
O espelho, o construído
espelho, inquebrável
Salvação, a minha alegria do
divino.
3
Procurava os perdidos de nome e
uma traviata
Reconhecidos de mim nas águas
dos extremos
Arca de Noé, eu seria aparição
no desespero
Até no esquecido desespero de
uma apática entrega
Ao tridentino dono, industrial
da lavoura dos nervos.
Mais e melhor entrega eu lhes
era dizer na boca
O amor que nenhum lupanário
conhece à vontade
De Deus corpo no corpo do corpo
sou e aos homens
De membro em riste apenas os
cerco de imagens
As coxas, os seios, o sexo,
deitados em mãos de nuvem
E chuva do futuro em cada
abandonante do presente
O ósculo sagrado, o beijo da
comunhão.
4
Não há verbo nacarado que
consiga
O aroma dos meus braços voantes
e abertos
À recolha da solidão e do
desastre, os meninos
Todos para mim, explosão de
afecto em minha ara.
Não há verbo, precisamos do
silêncio para dizer
Precisamos de sentir para falar
em cada dedo
Sulcando o meu ventre pelo
escuro da origem
Viajando até ao luar dos olhos
compreendidos
Sinais de todos os músculos e
de outras forças
De que me faço e me fazem
embarcação
Dos nautas que não desistiram
do infinito.
5
Não faço todas estas coisas por
Ele ou para Ele
Em soma vos quero dizer: Ele
não é meu
Chulo! É por mim que tudo faço
até na renúncia
De omitir à cidade e a mim
mesma omitir
A minha sensualidade que julgo
ser muita mas não quero
Saber, tenho medo, tenho medo,
tenho muito medo
Da sua Revelação, não
aguentaria a dupla fatalidade:
Ser agnóstica sensual ou vulgar
ninfeta
Incapaz de ser única, tal a
Vida seria.
Tenho medo, tenho medo, tenho
muito medo
De a mim própria me nomear
pássaro e não voar.
Ó mãe, ó meu resíduo: é a parte
do pai que fala.
6
Por inteiro, sem parábolas me
prontifico
A lavar-me de manchas para nos
outros as lavar.
Um primeiro quente me acaricia
o rosto
Na missão de ligar as almas ao
Supremo
Ao inacreditável, ao
impossível, a todos os signos
Prefixados de negação: sou-vos
afirmativa,
De mim corre e escorre tudo o
que é meu
Fonte vossa, nosso resultado,
espiral
Penteando os cabelos dos
acessos difíceis
Meu máximo gosto, minha máxima
razão é
Minha máxima culpa, meu máximo
ser
Clareando em perigo uma
pequenina célula
Locatária do escuro e meu
máximo triunfo.
7
Algures, em retiro, sentava-me
no areal
E soprava na flauta de bisel
edulcorantes sons
Como virtuosa hameline
seduzindo
Pequenas multidões prontas de
brancura atrás
De mim, oásis em regaço sem
miragem
Hamsters abandonando o jogo da
caça
Alegres do Sol, primevas claridades
Agora recuperadas na água
baptismal
Todo o passado apagando por
esta tigela de alumínio
Com que os faço nascer, lhes
confiro um nome
E pelo livre arbítrio os torno
diferentes
Em seus corpos inscrevendo
Uma oração comum no discurso da
semelhança.
8
Talvez seja assustador o meu
extra-vento
O tranquilo golpe da minha
mirada
O desafio de desafiar sem
combate expresso
Porque todos têm medo, muito
medo
De abandonar o refúgio do seu
caos
E saberem nas narinas o que
lhes era sabido:
O lado mordente da natureza de
cada um,
O lugar de árvore e fruto que
era o seu
O céu que queriam e a que nunca
chegaram
Por muito exercício e conquista
em jejum
Seus metaquímicos transes
pudessem ser
A palavra iniciática do
profeta.
9
Eu de vento-rindo meu
desmusculado segredo
Pura e transparente mão do
milagre ou
Outro membro vos unte esses
alimentos
Onde cozinhais em transmitida
receita
Vosso mito por salgar
Que hoje aprendi no organon das
profecias
Ser do profeta irredutível
dever
Falar ao ouvido das setas
Em olhos reviravoltados.
alberto augusto miranda
semântica do olhar
ed. fenda
1997