01 março 2013

Jorge Palma / Grândola, Vila Morena

harold pinter / tudo isso




Tudo isso fiz
E, ao fazer, menti.
E tudo isso que escondi
Fingi estar morto.

Mas tudo isso que escondi
Foi sempre dito,
Mas, escondido, espiava
O bem de outrem.

E tudo isso levei
À certa para a cama
E, na cama, disse
Aquilo que fiz

A tudo isso que chorava
Por trás da minha cabeça
E, ao chorar, morria
E não morreu.

1970



harold pinter
várias vozes
tradução miguel castro caldas
quasi
2006



28 fevereiro 2013

josé gomes ferreira / diário dos dias cruéis




4 de setembro

Prefere a incerteza
à maior riqueza
que a luz nos descobre.

(Pois ter consciência
é rasgar na neve
mais outra aparência.)



josé gomes ferreira
poesia II
diário dos dias cruéis 1939
portugália
1962



27 fevereiro 2013

josé tolentino mendonça / anjo da guarda



Ele é o meu anjo
ele vem do escuro
a embarcação em chamas
desce o canal!

Se a mulher adormecida nas margens
alongasse os braços
os remos da embarcação bateriam
nos astros

Há uma janela donde tudo se vê
o ordenado campo da casa
os atalhos cheios de giestas
e o meu anjo avança veloz

Um bêbado acena e grita
mas já é tarde para salvar-me
à conspiração do lume



josé tolentino mendonça
longe não sabia
presença
1997



26 fevereiro 2013

mário cesariny / cadame




a vida é bela     .     comecemos
primeiro: o maior descanso
segundo: a maior liberdade
terceiro: o tratar-se dos pés
quarto: queimar


vejamos: a lua no quarto crescente cinge o macaco.
Separará sem dúvida o quente do frio, como uma
aterrissagem do génio expelindo o melhor, le plus
beau que auferimos de tanta felecidade

partiremos de noite como dois operários. Assim eu
venho para a grande fractura frente ao palácio.
A princesa repousa da sua casa, trago-lhe o direito
ao abandono nela. É encarregado da obra e da pala-
vra, amigo da bondade e da beleza, o meu cão.

olhar é desaparecer

abre a janela e passa orgulhoso
sob o aqueduto
o avião o
silêncio

além de tudo o novo cisne de Rhodes teu pai, pai de
si-mesmo e de quantos o habitam, ele que tanto
lembra o seu esplêndido vácuo e fala claramente,
separado do mundo.

quanto a Fausto, é de ver que se trata de gente doida
com aparência de sábios, gente que sabe, que sabe
muito, gente para fuzilar.

le vieux couple.


cadame.

le soleil.





mário cesariny
primavera autónoma das estradas
assírio & alvim
1980




25 fevereiro 2013

sebastião alba / a bomba


  
Cessado o canto olhar-nos-emos todos
das pálpebras de pó que um vento poupa
fragmentados dos gestos e dos modos
que ousámos ter quando tivemos roupa.



sebastião alba
o ritmo do presságio
edições 70
1981



24 fevereiro 2013

sophia de mello breyner andresen / pudesse eu




Pudesse eu não ter laços nem limites
Ó vida de mil faces transbordantes
Para poder responder aos teus convites
Suspensos na surpresa dos instantes!



sophia de mello breyner andresen


23 fevereiro 2013

alberto caeiro / passei toda a noite




Passei toda a noite, sem dormir, vendo, sem espaço, a figura dela, 
E vendo-a sempre de maneiras diferentes do que a encontro a ela.  
Faço pensamentos com a recordação do que ela é quando me fala, 
E em cada pensamento ela varia de acordo com a sua semelhança.
  
Amar é pensar.

E eu quase que me esqueço de sentir só de pensar nela.
Não sei bem o que quero, mesmo dela, e eu não penso senão nela. 
Tenho uma grande distracção animada.
Quando desejo encontrá-la
Quase que prefiro não a encontrar,
Para não ter que a deixar depois.
Não sei bem o que quero, nem quero saber o que quero.  
Quero só Pensar nela.
Não peço nada a ninguém, nem a ela, senão pensar.



alberto caeiro



22 fevereiro 2013

gil t. sousa / na lama do tempo



13

estás preso na lama do
tempo


e o corpo foge-te como a cor
da casa
donde se parte para não
voltar




gil t. sousa
água forte
2005



21 fevereiro 2013

edmund white / nirvana




(...)

Não, do que eu gostava era do budismo dos primeiros tempos
do Hinayana, daquelas austeras instruções que conduziam a
uma extinção do desejo (em sânscrito, nirvana significa «extinguir»,
como «extinguimos» a vela de uma chama). Sentia uma grande
afinidade com esta religião que odeia a vida de uma forma muito curiosa,
que nos ensina que não temos alma e que o eu não passa
de um depósito de bagagens onde foram guardados estes e
aqueles embrulhos ou pacotes (com as etiquetas de emoções,
sensações, memórias e assim por diante), os quais não tardarão
a ser recolhidos por diferentes proprietários, um esvaziamento
que deixará o depósito de bagagens ditosamente vazio.
Este esvaziamento, este aniquilamento, é o que o cristão mais teme,
mas o que o budista mais veementemente deseja - ou desejaria,
se o desejo não fosse precisamente aquilo que tem de ser extirpado.
O desejo - a ânsia de sexo, dinheiro, fama, segurança - acorrenta-nos
ao mundo e condena-nos à reencarnação , «o ciclo da reencarnação»,
que eu imaginava como uma roda a que o pecador era bem atado
e estirado, a roda que o esmagava à medida que rodava, mas que,
crueldade das crueldades, não o matava nunca.
Sentia a necessidade de me libertar do desejo. Não devia querer nada.
Não devia sentir afectos. Acima de tudo, nada de atracções.
Devia renunciar a toda a esperança, planos, felizes expectativas.
Devia estudar o esquecimento. Devia dar cama e mesa ao silêncio
e pagar propinas ao vazio. Mesmo a mais ténue luzinha de desejo
devia ser apagada. Todos os fios deviam ser arrancados
até que todos os mecanismos deixassem de funcionar
e todos os ponteiros apontassem para zero.




edmund white
a vida privada de um rapaz
trad. josé vieira de lima
dom quixote
1996



20 fevereiro 2013

ernesto sampaio / adeus, luz que giravas sobre o mundo




Adeus, luz que giravas sobre o mundo.
Adeus, beleza das horas.
A lua sobre a casa. Os morcegos sobre a lua.
A lua sobre o pântano.
A lua no fundo do pântano.
A lua sobre as árvores.
A brisa nas árvores.
A bruma nos campos.


ernesto sampaio
fernanda
fenda
2005



19 fevereiro 2013

eugenio montale / a história



A história também não é
a escavadeira que destrói como dizem.
Deixa passagens no subsolo, cavernas, covas
e esconderijos. Há quem sobreviva.
A história é também benigna: devasta

o mais que pode: se exagerasse decerto
que seria melhor, mas sempre lhe faltam
notícias, não cumpre
todas as suas vinganças.
A história rapa o fundo
como uma rede de arrasto
com alguns rasgões, e há peixes que fogem.
Por vezes encontra-se o octoplasma
de um que escapou e não parece por isso feliz.
Não sabe que está fora, ninguém lhe falou nisso.
Os outros, apanhados, julgam-se
mais livres do que ele.




eugenio montale
excerto de "a história".
mesa de amigos – versões de poesia
pedro da silveira
assírio & alvim
2002