17 junho 2012

manólis anagnostákis / a decisão








  


Vocês são a favor ou contra?
Respondam sim ou não.
Decerto já pensaram no problema
Creio sinceramente que ele os tem preocupado.
Tudo na vida traz preocupações
Crianças mulheres insectos
Plantas nocivas, horas sem proveito
Paixões difíceis, dentes cariados
Filmes medíocres. E isto decerto os preocupa.
Sejam responsáveis e digam: Sim ou não.
A vocês é que cabe decidir.
Não lhes pedimos evidentemente que abandonem
Suas ocupações, que interrompam sua vida
O jornal preferido o bate-papo
No barbeiro os domingos ao ar livre.
Uma palavra só. Vamos, então:
Vocês são contra ou a favor?
Pensem bem: Eu fico à espera.





manólis anagnostákis
trad. josé paulo paes
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001





16 junho 2012

giórgos markópoulos / a crédito



  

Goulas, o Korátos, apelidado Thorís,
de Sálona de Stereá
no dia da Páscoa mandou pintar o retrato
a um pintor ­funileiro ambulante
por um pouco de azeite arroz e um bocado de sabão.

Goulas, o Korátos, apelidado Thorís,
pintado, foi vendido pela velha
numa feira da ladra
por uma escova de nylon por uma velha balança
e um espelho do Congo.

A tua tristeza, eh pá, tesouro,
É como a Kaisarianí nas noites de Outono.

Pára lá de me chagar com o rembétiko
por detrás das tascas, nas ruas
Os marujos naufragaram, os marujos nos petroleiros
pegando-se pelo quinhão, perderam-se para sempre.

A última vez que me escreveste, lembras-­te?
O teu recado soube-o num bar
“tens carta”, disse o fogueiro do navio,
choviam grupos de clientes que praguejavam e gritavam
e havia um rádio que chorava ao canto
“O miúdo pirou-­se na outra noite”, escrevias,
às tantas foi comprar fósforos à esquina”.


Noites enormes duplamente esfaqueadas com a amargura do infinito,
noites de barulhos surdos tirânicas e infindas
mil momentos e eternidade mil momentos e morte,
e era uma época difícil, ninguém a ouvia,
só alguma “rapaziada” despejava as noites nas tascas
a juntar-­se ao mal e à guerra civil, diz­-se,
mas quem sabia dessas coisas
via a solidão a torturar e a culpa a espreitar,
até que certa noite te voltámos a ver num palácio mudo sozinha
“ei... como vais?” gritámos, deus meu.
O nosso corpo e o teu corpo
molde de gesso estragado pela chuva e pelos anos
como quartel da guarda em ruínas quartel da guarda
“hão-­de vir uma noite aqueles que esquecemos, dissemos­-te,
de rosto inexistente
o crânio cheio de lagartos e nu
descerão passo a passo sozinhos
descobrirão uma alegria pela vida
por sobre as casas e os túmulos
descobrirão uma alegria pela vida
um amargor de amor por nós e pelos mortos”,
e depois tornaste a desaparecer.

─  Abri um pouco o rádio, a luz e as janelas
porque, na verdade, que vergonha morrermos nos nossos lençóis brancos
enquanto todos os nossos amigos foram assassinados nos passeios.


Os assaltantes do inferno.


  

giórgos markópoulos
trad. manuel resende





15 junho 2012

almeida garrett / o anjo caído


  


Era um anjo de Deus
Que se perdera dos céus
E terra a terra voava.
A seta que lhe acertava
Partira de arco traidor,
Porque as penas que levava
Não eram penas de amor.

O anjo caiu ferido,
E se viu aos pés rendido
Do tirano caçador.
De asa morta e sem splendor
O triste, peregrinando
Por estes vales de dor,
Andou gemendo e chorando.

Vi-o eu, o anjo de Deus,
Vi-o nessa tropelia
Que o mundo chama alegria,
Vi-o a taça do prazer
Pôr ao lábio que tremia...
E só lágrimas beber.

Ninguém mais na terra o via,
Era eu só que o conhecia...
Eu que já não posso amar!
Quem no havia de salvar?
Eu, que numa sepultura
Me fora vivo enterrar?
Loucura! ai, cega loucura!

Mas entre os anjos dos céus
Faltava um anjo ao seu Deus;
E remi-lo e resgatá-lo
Daquela infâmia salvá-lo
Só força de amor podia.
Quem desse amor há-de amá-lo,
Se ninguém o conhecia?

Eu só e eu morto, eu descrido,
Eu tive o arrojo atrevido
De amar um anjo sem luz.
Craveia-a eu nessa cruz
Minha alma que renascia
Que toda em sua alma pus.
E o meu ser se dividia,

Porque ele outra alma não tinha,
Outra alma senão a minha...
Tarde, ai! tarde o conheci,
Porque eu o meu ser perdi
E ele à vida não volveu...
Mas da morte que eu morri
Também o infeliz morreu.




almeida garrett
folhas caídas




14 junho 2012

egito gonçalves / tudo vai bem, amor!...






Tudo vai bem, amor! Aqui estamos longe!
Aqui malogra-se a abordagem dos terrores,
ninguém descarna o sonho ou a esperança,
não há fantasmas de espingarda ao ombro,
ninguém agoniza chicoteado pelas sombras...
Aqui não há ditadores nem guilhotinam os oráculos,
ninguém encobre estrelas com areia,
não cortam com navalhas os seios das mulheres,
não se incendeiam guetos com corpos de crianças:
é tudo útil, simples, como um campo de trigo
─  a Esfinge é um animal de pedra muito gasta.
Os poetas podem passear nas ruas; a paz
não é uma aranha sobre terra árida.
O sono não se povoa de estátuas de ameaça,
o amor não se faz de coração crispado:
o leito do amor é a simples terra nua.





egito gonçalves
o vagabundo decepado
edição notícias do bloqueio
1958



13 junho 2012

gil t. sousa / equador


  

3

mais tarde
sentiria a dor da terra seca

havia de ouvir o cinzel do tempo
e experimentar o arrepio
da fusão lenta dos espelhos

que estranho fogo nos queima
quando da solidão suprema
se ergue o chão de todas as coisas

e exangues de saudade e medo
aí deixamos o amor
todo o amor
com a violenta ternura
do que é eterno

quanto mais se pode dar
a quem um dia nos cruzou o coração
como um equador
de vida e paixão?



gil t. sousa
água forte
2005



12 junho 2012

werner aspenström / a sardinha no metropolitano



  
Não quero lavar-me com esse sabonete!
Não quero usar essa pasta de dentes!
Não quero dormir naquele sofá-cama!
Não preciso desse papel higiénico!
Não estou interessado nessa apólice!
Não penso mudar de marca de cigarros!
Não me apetece ir ver aquele filme!
Recuso-me a sair em Skärholmen!

A sardinha quer que a lata
seja aberta em direcção ao mar.




werner aspenström
(suécia, 1918-1997)
tradução de vasco graça moura



11 junho 2012

wallace stevens / hibiscos nos litorais adormecidos






Agora eu digo, Fernando, que naquele dia
O espírito vadiava como vadia uma traça,
Entre as flores para lá do areal imenso;

E que o mínimo rumor do vaivém das ondas
Nas algas marinhas e nas pedras submersas
Não incomodava nem o mais ocioso ouvido.

Foi então que aquela monstruosa traça
Que ficara imóvel pregada no azul
E no púrpura colorido do mar preguiçoso,

E dormitara ao longo de litorais ossudos,
Surda para a conversa que as águas fiavam,
Se ergueu perlada e buscou o rubro ardente

Salpicada de pólen amarelo ─  tão rubro
Como a bandeira no cimo do velho café ─
E por ali vadiou toda a estúpida tarde.





wallace stevens
harmónio
trad. jorge fazenda lourenço
relógio d´água
2006




10 junho 2012

josé tolentino mendonça / uma coisa a menos para adorar





Já vi matar um homem
é terrível a desolação que um corpo deixa
sobre a terra
uma coisa a menos para adorar
quando tudo se apaga
as paisagens descobrem-se perdidas
irreconciliáveis

entendes por isso o meu pânico
nessas noites em que volto sem razão nenhuma
a correr pelo pontão de madeira
onde um homem foi morto

arranco como os atletas ao som de um disparo seco
mas sou apenas alguém que de noite
grita pela casa

há quem diga
a vida é um pau de fósforo
escasso demais
para o milagre do fogo

hoje estive tão triste
que ardi centenas de fósforos
pela tarde fora
enquanto pensava no homem que vi matar
e de quem não soube nunca nada
nem o nome

  


josé tolentino mendonça
baldios
assírio & alvim
1999

09 junho 2012

jean-arthur rimbaud / depois do dilúvio III






No bosque há uma ave, o seu canto
detém-vos e faz-vos corar.

Há um relógio que não toca.

Há uma lixeira com um ninho de
bichos brancos.

Há uma catedral que desce e um lago
que sobe.

Há um carrinho abandonado nas moitas,
ou descendo a vereda em correria,
engalanado.

Há uma troupe de pequenos cómicos
com os seus fatos, visíveis sobre a estrada
através da orla do bosque.

Há, enfim, quando tens fome e sede,
alguém que te enxota.




jean-arthur rimbaud
iluminações
uma cerveja no inferno
trad. mário cesariny
estúdios cor
1972



08 junho 2012

jean cocteau / dorso de anjo





Em sonhos rua que encanta
e uma trombeta irreal
mentiras são que levanta
um anjo celestial.

Que seja sonho ou não seja,
logo a mentira se afunda,
se a gente de cima o veja,
que todo o anjo é corcunda.

Pelo menos é-o a sombra
na parede do meu quarto.





jean cocteau
poesia do século xx
(de thomas hardy a c. v. cattaneo)
antologia e tradução de jorge de sena
editorial inova
1978


07 junho 2012

edmundo de bettencourt / circunstância





Do clarão que é das ruínas,
pelo escuro,
uns pedaços se unem em fio estendido, serpente
um dia já sangue erguendo e triturando o edifício.


Eis um mar que se abisma
que a si próprio se engole
e a si próprio se vomita
com uns destroços de galera.

Ruínas…
no clarão que as ilumina,
aos poucos se dilui um fio com princípio e fim.
Mas, a acabar, ainda resplandece
na chave que abre a porta aos pesadelos!





edmundo de bettencourt
poemas surdos
assírio & alvim
1981



06 junho 2012

thom gunn / a destruição do nada


  


Nada é o que permaneceu: nada, o arrojado epíteto
Que pronunciei pela noite tantas vezes até ser transportado
Para um escuro sono, ou o sono que continha um sonho.

Nisto havia uma enorme ausência contagiosa,
Mais espaço do que espaço, sobre a nuvem e o lodo,
Definidos apenas pela sua excessiva oscilação.

Despojado até à indiferença nas curvas do tempo,
Cujo fim eu conhecia, acordei sem um desejo,
E saudei o zero como um paradigma.

Mas agora despedaça-se: as imagens surgem incendiadas
Na calma esfera onde tenho vivido,
Regulando a paisagem ainda intacta:

O poder que imaginava, que presidia
Supremo a devastações abstractas,
É apenas uma mudança; os átomos que o dividiam

Completam, sem o saber, novas combinações.
Apenas descubro uma infinita finitude
Naquelas variações belas e estranhas.

É o desespero de que o nada possa existir
A cintilar no espírito e a deixar uma marca fumegante
De temor.
               Olhem para cima. Nem presa nem liberta.

Uma questão inútil paira nas trevas.




thom gunn
a destruição do nada e outros poemas
trad. maria de lurdes guimarães
relógio d´água
1993


05 junho 2012

miguel serras pereira / após o mar


  


Perdeu-se após o mar a nostalgia
de sermos pelo menos na hora do desastre
um voo de marinheiros caindo ainda
vencidos e longínquos ─  como o dia
sobre o rasto vermelho das amadas

E mesmo onde te encontro a despedida
corta as minhas mãos abertas pelas tuas
Passam as aves e passada a minha vida
procura o chão ardente da cidade
onde eu possa ser contigo as mesmas ruas

Entretanto esperamos apenas ─ árvores tristes
divididos um pouco mais a cada encontro
Eu parto e digo-te à partida amada que resistas
decepado sobre a terra e sobre ti
terra que deceparam do meu sangue

Mas a esperança que nos vem dentro do vento
desperta a voz da morte no regresso
Por isso somos hoje tão sábios e tão lentos
que as gaivotas nos poisam na cabeça






miguel serras pereira
trinta embarcações para regressar devagar
relógio d´água
1993