21 abril 2012

paula almada-negreiros / canção





Longe, muito longe onde as minhas mãos serão cúpulas para
                                                              [abrigar corujas
onde meus olhos asas de águia para abrir livros antigos
onde meus braços serão novas árvores daqui a
milhões de anos para uma nova floresta virgem

onde minha cabeça será o campanário duma igreja aldeã
antiquíssima para os homens do centésimo vigésimo quinto
                                                    [século depois de mim
onde minha boca será a gruta do lado de fora da Terra
                                                   [do lado de dentro do mar
onde se esconderão traineiras navegadas por sereias
de meus braços algas do princípio do mundo

onde minha cama será o barco para navegar em toda a Terra
                                                                         [cinzenta
com dunas que taparão árvores de deserto
onde num mundo em que EU se diz ALFABETO NÚMERO
                               asteróide com um número
incapaz de se ler






paula almada-negreiros
ângulo poente
o surrealismo na poesia portuguesa
org. de natália correia
frenesi
2002



20 abril 2012

gil t. sousa / não saber


  

50

todas as noites não saber

em que hora parar
em que degrau de sombra

largar o recado para o nada

que nos queima
as mãos




gil t. sousa
falso lugar
2004





19 abril 2012

dórdio guimarães / guerra e civilização




  
II

revolver o sangue até a língua ser revólver
revirar os olhos com endereço revoltar a lua
revelar em fotograma ao retardador o céu
rodopiar em árvore um réquiem solar
revoar em ave a rápice aventura
revolver o universo no rito de morrer

redigo refazer reunir recomeçar
(remorso foi não amar de mais) repercutir
ah grande organista é a flor





dórdio guimarães
a idade dos lilases
o surrealismo na poesia portuguesa
org. de natália correia
frenesi
2002


18 abril 2012

eugénio de andrade / somos folhas breves onde dormem





Somos folhas breves onde dormem
aves de sombra e solidão.
Somos só folhas e o seu rumor.
Inseguros, incapazes de ser flor,
até a brisa nos perturba e faz tremer.
Por isso a cada gesto que fazemos
cada ave se transforma noutro ser.




eugénio de andrade
as mãos e os frutos
poesia
fundação eugénio de andrade
2000


17 abril 2012

hermes trismegisto / tabula smaragdina






Isto é a realidade não falseada mas certa e verdadeira.
O que está em cima é igual ao que está em baixo e o
que está em baixo é igual ao que está em cima para
realizar os milagres de uma coisa.
E da mesma forma que todas as coisas estavam sujeitas
à contemplação de uma, assim todas as coisas, por um
simples acto de contemplação, apareceram daquela.
O pai disto é o Sol. A mãe, a Lua. O vento transpor-
tou-a nas suas entranhas e a Terra foi a ama dedicada.
E a causa de todos os maravilhosos trabalhos espalha-
dos pelo mundo.
O seu poder é perfeito.
Se se entregar à terra, separará o elemento da terra do
fogo, o subtil do grosseiro.
Com grande sagacidade proporciona uma subida agra─
dável da terra para o céu.
Novamente proporciona a descida à terra e reúne em
si a força das coisas superiores e inferiores.
Assim, possuirás a glória do esplendor de todo o mundo
e toda a obscuridade fugirá de ti.
Assim, intensamente se robustece toda a fortaleza. Com
ela dominarás tudo o que é subtil e penetrarás em toda
a substância sólida.
Assim se criou este mundo.
Tal é a maneira de conseguir maravilhosas adaptações.
Por esta razão me chamam Hermes Trismegistus, porque
possuo três partes da sabedoria do mundo.
Assim se completa tudo o que tinha a dizer sobre a
operação do Sol.





hermes trismegisto
tabula smaragdina



16 abril 2012

fernando grade / aqui no planeta encontrado





Aqui no planeta encontrado todos sabem tudo sobre nós
e as raparigas tremendo de cio e de outras coisas mais
pedem-me poesia e bravas rosas bravas bravíssimas

Pouco se fala de electrões e de bombas
─ não vale a pena falar de coisas que incomodam as pessoas
Aqui as raparigas distribuem sorrisos pelas ruas
e há uma ternura especial nos seus olhos quando falam no amor

Dói o corpo e o sexo por não ter trazido coisas da Terra
Vim nu sem abraços navalhas ou mordeduras de pulga
Apenas trago dois versos do meu amigo Jorge
─ poeta anónimo que morreu sem ninguém dar por isso
Mas os versos do Jorge cabem dentro de um bolso
e a poesia não pode caber dentro de nada

Aqui no planeta todos sabem tudo sobre nós
mas há sempre quem pergunte que forma geométrica tem
                                                           [a fome terrestre
a fome espanhola portuguesa ultramarina
querem saber se Lisboa ainda é uma cidade de dez mil
                                                                             [coitadinhos
e se a mesa de pé-de-galo serve para abrir caminho na literatura
Há pouco uma criança castanha chegou-se a mim e disse:
─ Fernando como foi aquilo em Nagasáqui?

E vem gente de muitas bandas oferecer-me cogumelos
e calor de seios e tranças vermelhas bacteriologicamente puras
                                                                        [e vermelhas

Aqui todos os cogumelos são objectos turísticos
pois nunca mataram ninguém

Agora mesmo acabo de ser beijado por uma moça
Aqui qualquer pessoa pode beijar outra
mesmo sem a conhecer
É preso quem não tiver estômago para entrar neste ritual
há uma multidão de impotentes pelas ruas
beijando as virgens e as mulheres parideiras
Já me perguntaram que satisfação moral existe
em fazer filhos no Sena





fernando grade
desintegracionismo
o surrealismo na poesia portuguesa
org. de natália correia
frenesi
2002

14 abril 2012

carlos drummond de andrade / amar






Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?

Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o áspero,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.

Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.

  



carlos drummond de andrade
claro enigma
ed. record
1996




13 abril 2012

josé blanc de portugal / homenagem ao conde drácula ou a lua dos mortos





Velhos estão os dias; cheios
De caras rasgadas ‘inda servidoras…

Transbordam dos olhos, meios-
-Cheios de crescentes, mouras
Luas servidores de brancos altares
A deuses da noite, mortos
Nos dias solares e vivos quando
Sobe nos ares para os seus portos,
Argênteo, o disco de seu astro pertinente
E brilha a palidez escaldante, a luz dormente,
De seus rostos-jaspe de sangue vazios…

Das mortalhas-mantas pendem nastros
Iguais às cores das bocas f´ridas e dos olhos turvos,
Iguais às das bandeiras de seus grandes navios
Estivando a carga, sempre igual,
P´r´o céu dos mortos onde seu planeta
Outras luas vê e outros deuses
A boiarem nas ondas da mareta
Da esteira silente dos adeuses…

Velhos estão os dias; cheios
De caras rasgadas, ‘inda servidoras…





josé blanc de portugal
odes pedestres
o surrealismo na poesia portuguesa
org. de natália correia
frenesi
2002





12 abril 2012

tiago nené / a criança de neandertal





uma rua por baixo dos cabelos
onde coloco os pulmões ruivos dos dedos;
com o deus das unhas acedo
ao olhar submarino que deixaste à porta;
a infância tem as persianas p'ra cima,
os teus nervos estão poligâmicos,
e assim proibidos;
e desço com os dedos respirando
o ar dessa rua de colecção,
sem uma única parede embriagada,
ou um amor cubista;
estarias a cem mil anos de mim, criança
de neandertal, inconsciente ao meu
sábado; mas aqui estás tu, dormindo
na minha revista científica, sobre a qual os
pulmões dos meus dedos te escutam
a rua que me aparece nas ruínas
da minha solidão;




tiago nené
relevo móbil num coração de tempo
lua de marfim
2012




11 abril 2012

raul de carvalho / para um novo livro de cesário verde





                                     ao Sebastião Fonseca


Eles tomam cerveja, ambrosia, licores,
oleosos, sagrados como discos lunares.
Do azul da gravata ou da fímbria das ondas
retiram pensamentos ociosos e puros.

Recolhem-se de noite às oliveiras mansas
duma infância passada em louco desafio.
Ou então, nos portais, em amoroso convívio,
fingem que já não temem a noite nem o frio.

Já não têm família e mastigam, sozinhos,
um jovial jantar, colorido e minúsculo,
que haviam de comer, num domingo qualquer,
entre amigos cantando, entre mulheres amando.

Têm as caudas leves e subtis dum peixe,
têm um planeta adormecido e exangue,
têm os olhos líquidos, de asfódelo ou de cobre,
esses seres mitológicos que asfixiam a Terra.

São eles que caminham, irreais e aos tombos,
pondo nódoas de espanto por cima dos telhados.
Eles é que me deram o título deste poema:
A  Cidade Está Cheia de Homens Assassinados.





raul de carvalho
o surrealismo na poesia portuguesa
organização de natália correia
frenesi
2002





10 abril 2012

robert schindel / requiem por uma amizade






Morreu o meu hóspede, vejo-o ainda a descer, a descer
Pelo caminho abaixo com a distância nos cabelos.
E de noite, quando as estrelas o permitem, serpenteia, serpenteia
O seu eco no coração, morreu o meu hóspede.

Um riso, um sapato, o violino de estar aqui
Bebíamos um copo ou dormíamos nas palavras mais novas
E havia segundos que fazíamos explodir
Saltar da lama do tempo, para assim o podermos entender.

Agora foi-se, o seu nome descansa, descansa o tempo
Levanto os pés do caminho e vou andando
Às arrecuas pelo atalho, o eco traz-me
O longe e o perto, eu e nunca, o hóspede-amigo do lado de lá.

Há por aqui outras paisagens?, perguntam por vezes as crianças.
Eu parto o caminho em pedaços e ofereço-lhes
Serpentinas, serpentinas, que elas recebem como maçãs e papoilas.
Porque tempos houve em que dormíamos nas palavras,
Tempos houve em que fazíamos explodir o tempo.








robert schindel
telhados de vidro nr. 11
tradução de joão barrento
averno
2008





09 abril 2012

edmundo de bettencourt / vigília





No panorama de frio
jazia cristalizado o voo dos gaviões.

Ao seu encontro ia fremente
o respirar da terra quente quase adormecida.

Fluía um riso irónico das dentaduras alvas da neblina
para bocas de ouvidos,
olhos de bocas.

Surgiu então coberto de silêncio
o homem que desde sempre morrera trucidado.

O seu sangue caía enquanto andava.
Das gotas pelo chão se levantaram logo as árvores de fogo
dentro em pouco a floresta incendiária
de todo o frio que o chamava.

E antes que soprasse a ventania
a borboleta colorida foi queimada.

Mas antes que o sol humidamente
repousasse num clarão de olhos fechados,
as cinzas de pirâmides se espalhavam
indo ferir o enorme olho esbugalhado
que de aquém fitava um espaço maior!





edmundo de bettencourt
poemas surdos
assírio & alvim
1981




07 abril 2012

rui knopfli / amputação





Algo, em mim, está morto.
O lado direito inerte, ausente,
de mim está alheio.
Do lado esquerdo
o fito,
como se a um outro
olhasse.
Metade de mim persiste,
vive,
e contempla algo, ardendo,
estiolando,
que em mim está morto.
Um perfil que apodrece
e eu vivendo
e vendo ausentar-se de mim
algo que em mim está morto
definitivamente.



rui knopfli
memória consentida : 20 anos de poesia 1959-1979
imp. nac. casa da moeda
1982