12 fevereiro 2012

guillevic / mais tu sais trop qu´on te prefere…




Sabes de mais que todos te preferem,
Que mesmo aqueles que te deixam

Nos trigos te reencontram,
Na erva te procuram,
Na pedra te escutam,
Sem que jamais consigam agarrar-te.




guillevic
carnac (1961)
vozes da poesia europeia III
traduções de david mourão-ferreira
colóquio letras 165
fundação calouste gulbenkian
2003



11 fevereiro 2012

marcel proust / o silêncio é uma força




“Já se disse que o silêncio era uma força; num sentido completamente diferente, ele é uma força, e terrível, à disposição daqueles que são amados. Uma força que aumenta a ansiedade de quem espera. Nada convida tanto alguém a aproximar-se de um ser como o que dele o separa, e que barreira existe mais intransponível que o silêncio? Já se disse também que o silêncio era um suplício, e capaz de enlouquecer aquele que nas prisões a ele estava obrigado. Mas que suplício - maior que o de guardar silêncio  - é o de sofrer o silêncio de quem se ama! Robert dizia de si para si: «Que estará ela a fazer para estar assim calada? Estará por certo a enganar-me com outros...» Dizia ainda: «Que fiz para ela estar assim calada? Provavelmente odeia-me, e para sempre.» E acusava-se a si mesmo. Assim, com efeito, o silêncio o punha louco de ciúme e de remorso. De resto, mais cruel que o das prisões, tal silêncio é ele mesmo uma prisão. Uma clausura imaterial, sem dúvida, mas impenetrável, aquela fatia interposta de atmosfera vazia, mas que os raios visuais do abandonado não podem atravessar. Haverá luz mais terrível que o silêncio, que não nos mostra uma ausente, mas mil, e cada uma delas entregando-se a alguma outra traição? Às vezes, numa brusca distensão, Robert acreditava que esse silêncio iria cessar daí a pouco, que a esperada carta iria chegar. Via-a a chegar, espiava cada ruído, a sua sede estava já saciada, murmurava: «A carta! A carta!» Depois de ter assim entrevisto um oásis imaginário de ternura tornava a dar consigo patinhando no deserto real do silêncio sem fim.
Sofria adiantadamente todas as dores, sem esquecer nenhuma, de um rompimento que em outras ocasiões julgava poder evitar, como aquelas pessoas que liquidam todos os seus assuntos na mira de uma expatriação que não irá efectuar-se, e cujo pensamento, que já não sabe onde deverá situar-se no dia seguinte se agita momentaneamente, despegado delas, semelhante a um coração que se arranca a um doente e que continua a bater, separado do resto do corpo. Em todo o caso, esta esperança de que a amante regressaria dava-lhe coragem para perseverar no rompimento, tal como a crença de poder regressar vivo do combate ajuda a enfrentar a morte. E como o hábito é, de todas as plantas humanas, aquela que menos necessidade tem para viver de um solo rico de alimento, e a primeira a aparecer no aparentemente mais desolado dos rochedos, talvez começando por praticar o rompimento a fingir acabasse por se lhe acostumar sinceramente. Mas a incerteza alimentava nele um estado que, ligado à recordação daquela mulher, se assemelhava ao amor. Forçava-se contudo a não lhe escrever (pensando acaso que o tormento era menos cruel de viver sem a amante que com ela em certas condições, ou que, depois da maneira como se haviam separado, esperar as suas desculpas era necessário para que ela conservasse o que acreditava que ela sentia por ele, senão de amor, pelo menos de estima e respeito). “





marcel proust
em busca do tempo perdido
volume III o lado de guermantes
trad. pedro tamen
relógio d´água
2003






10 fevereiro 2012

joão almeida / parabéns






Neste Fevereiro distante
a alegria poisa devagar

não me quero lembrar de nada
entrego as botas e um a um
entramos no grande centro cultural

o último poeta foi atropelado em Braga
morreu no hospital público
com direito a névoa pela manhã

oh o barulho da responsabilidade
a expansão do deserto ao primeiro toque
começa-se por dormir vestido
e depois o pasmo
o risco de vender um verso por desfastio

que posso eu dizer
que não esteja dentro de um fungo
tantos livros
o barulho sempre nunca
ter um tecto
ter comida
e uma data de poemas na cabeça
ligados por tubos de respirar

uns acabam por morrer
e apodrecem onde estão
ali ficam como almas penadas
assombrações
outros vivem até à última gota

de ambos se faz a doença
e os planos de uma invasão




joão almeida
rumo
a poesia em 2009
assírio & alvim
2010


09 fevereiro 2012

armando silva carvalho / poema do êxtase






Irmãos, não porque padeça de loucura precoce,
Mas sempre vos direi que haveis de procurar
alguns profetas.
Nos buracos do metro, nas locas das sentinas
e também no olhar, quantas vezes trémulo,
dessas crianças que riem no meio
dos charcos de óleo.
O pouco que dirão vos servirá.
O muito, por pouco e escasso, deixai
para outros dias.
Porque outros dias virão, esses, sim,
definitivos.
Não saberão aqueles os pesos da matéria.
Dedilham as guitarras esses povos de Deus
e de que servirá o fogo, o rei, o leão, a águia,
o número sete e as pedras do Sepulcro
àqueles que vão sonâmbulos, imagem sobre imagem,
pelo dédalo das ruas a caminho da Gruta?
Irmãos eclesiastas, deixai de ir a vós
as bibliotecas, as falas das paredes.
Deixai para os artistas a hora de saída
das marquesas, esse minuto infinito
de levar à têmpora as armas fatais.
 Essa delicada estufa em que fermenta
 a mais rasteira planta: a das paixões.
Paredes são retratos. São sa1as para serem vistas.
O precioso Vieira ergueu extensas paredes
vítreas. Cortejava o ouvido medroso
e fidalgo, julgando deste jeito,
trazer-lhes a alma à arreata,
que trazia oculta sobre as vestes.
Politico Vieira. De Deus Nosso Senhor
e Rei. E de outros nomes.
 Profetas loucos, roucos ou sem fala.
Como Chet Baker, Elisa a rapadeira.
Procurai neles o inverso da ciência,
o inferno do céu.
Procurai quem destrua estas paredes
que gritam tanta engenharia.
Buscai quem as atravesse mudo como um anjo
com fogo nos vestidos
e nas mãos todo o licor cioso
do silêncio.
Chorai, matai e sem uma pa1avra
Fazei com que Deus cresça.



armando da silva carvalho
poema do êxtase
poezz
almedina
2004


08 fevereiro 2012

adília lopes / primeiro amor






Gostava muito dele
mas nunca lhe disse isso
porque a minha criada tinha-me avisado
se gostar de um rapaz
nunca lhe diga que gosta dele
se diz
ele faz pouco de si para sempre
os rapazes são maus
eu não era bela
nem sabia quem tinha pintado Os pestíferos de Jaffa
resolvi  assim escrever-lhe cartas anónimas
escrevia o rascunho num caderno pautado
não sei hoje o que escrevia
mas sei que nunca escrevi
gosto muito de ti
e depois pedia a uma rapariga muito bonita
que passasse as cartas a limpo
eu acreditava que quem tinha uns cabelos
assim loiros e a pele assim fina
devia ter uma letra muito melhor do que a minha
agora que conto isto
vejo que deixo muitas coisas de fora
por exemplo que o meu primeiro amor
não foi este mas o Paulo
o irmão da rapariga bonita





adília lopes
resumo
a poesia em 2009
assírio & alvim
2010



07 fevereiro 2012

homero aridjis / há seres que são mais imagem que matéria


   



     Há seres que são mais imagem que matéria
mais olhar do que corpo

     tão imateriais os amámos
que quase não queremos tocá-los com palavras

     desde a infância os buscamos
mais no sonho que na carne

     e sempre no limiar dos lábios
a luz da manhã parece dizê-los





homero aridjis
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
tradução de josé bento
assírio & alvim
2001




06 fevereiro 2012

antónio osório / augúrio





Não antecipes a tristeza
de morrer: não queiras muito
às lágrimas: consola-te
bebendo-as. E sê grato ao dia
em que, vivo, as tragaste.



antónio osório
casa das sementes
décima aurora
assírio & alvim
2006




04 fevereiro 2012

fiódor dostoiévski / cadernos do subterrâneo




6

Oh, se eu não fizesse nada só por preguiça! Meu Deus, que respeito teria por mim. E teria esse respeito, precisamente, porque era capaz, pelo menos, de ter preguiça; haveria em mim, pelo menos, a certeza de uma característica definida. Se perguntassem de mim: quem é? E respondessem: um mandrião — isso ser-me-ia extremamente agradável de ouvir. Quer dizer que tinha uma característica determinada, logo, era possível dizer algo de mim. «Mandrião!» — mas isso é um título, um cargo, uma carreira. Não é brincadeira, é verdade. Nesse caso, seria membro de pleno direito de um clube de primeira e passava a vida a respeitar-me. Conheci um sujeito que toda a vida se orgulhou de ser perito em champanhe Laffite. Considerava isso uma grande qualidade sua e nunca duvidava de si mesmo. Morreu, não só de consciência tranquila, mas de consciência triunfante, e tinha absoluta razão. Quanto a mim, escolheria uma carreira de mandrião e glutão, mas não de um simples e corriqueiro mandrião e glutão, antes, por exemplo, de adepto de tudo o que é belo e sublime. Que tal, na vossa opinião? Tive esta ideia há muito tempo. Muito esse «belo e sublime» me oprimiu a nuca, chegado aos meus quarenta anos; mas isso foi aos quarenta — se fosse antes, teria sido outra coisa! Teria também achado para mim, com toda a certeza, a minha correspondente actividade, como seja: beber brindando à saúde de tudo o que é belo e sublime. Não deixaria passar qualquer ocasião de verter, primeiro, uma lágrima no copo e, depois, de o emborcar em honra de tudo o que é belo e sublime. Tornar-me-ia lacrimejante como uma esponja embebida. Por exemplo, um artista pintava um quadro de Gay (1).Imediatamente eu brindava à saúde do artista que pintava um quadro de Gay, porque gosto de tudo o que é belo e sublime. Um autor escrevia que «cada um faz o que lhe dá na gana»; de imediato brindo pela saúde de «quem me dá na gana» porque gosto de todo o «belo e sublime». Exigiria que me respeitassem por isso mesmo, perseguiria quem não me mostrasse respeito. Vivo sossegado, morro solenemente — mas é uma maravilha, uma verdadeira maravilha! E que barriga deixaria crescer, que papo triplo cultivaria, que nariz de sândalo elaboraria; e qualquer um diria olhando para mim: «Este tem pinta! Tem algo de verdadeiramente positivo!» Seja como for, é extremamente simpático ouvir características destas no nosso século negativo, meus senhores.


(1) Esta frase sarcasticamente invertida refere-se ao pintor russo Nikolai Gay (1831-1894) e ao seu quadro  Última Ceia, que Dostóievski  achava transmitir uma ideia falsa.





fiódor dostoiévski
cadernos do subterrâneo
trad. nina guerra e filipe guerra
assírio & alvim
2000


03 fevereiro 2012

patrick lane / transformando-se em tempestade





Sei que é um homem branco.
Entra de lado no vento
Permitindo ao seu lado esquerdo

esquecer o que o direito
conhece como frio. Os seus ouvidos
transformam em morte o que

os seus olhos não podem ver. O dia inteiro
ele afasta-se do sol
transformando-se em tempestade. Não

o tomes pelo uivo que ouves
ou pelo rasto que pensas estar
a seguir. Encontrar um homem branco

na neve é procurar os mortos.
Ele tem sido queimado pelo vento.
Tem deixado demasiada

carne no cascalho branco do inverno
para que deixe a sua cor como sinal.
Branco frio. Carne fria. Ele encosta-se

Ao vento de lado; mata sem
piedade tudo o que esteja ao seu lado esquerdo
entrando como a loucura na neve.





patrick lane
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
tradução de cecília rego pinheiro
assírio & alvim
2001




02 fevereiro 2012

marguerite yourcenar / solidão





solidão...

não creio como eles crêem,
não vivo como eles vivem,
não amo como eles amam...

morrerei
como eles morrem.


  


marguerite yourcenar
fogos
trad. de maria da graça morais sarmento
difel
1995


01 fevereiro 2012

gil t. sousa / recado





45

amei-vos

como uma árvore
ama os seus pássaros



gil t. sousa
falso lugar
2004




31 janeiro 2012

jorge velhote / acqua

   

                                                           para António Osório


                                                                          Ora passa e declina
                                                                          in quest'autunno che inced
                                                                          con lentezza indicibille,
                                                                          il miglior tempo della nostra vita     
                                                                                                                              
                                                                               Cardarelli


1.

eu não tinha relógio
nem húmidos dedos para habitar
de palavras
apenas lentíssimos olhos
sobre a chuva
como fogo

mas como contemplar teu rosto
crepitando
se das cinzas do vinho e do mel
cresciam as aves
que ocultavas
como música

como invadir a casa
de silêncio
se nas  pálpebras da água

e sobre a terra
um ofício de segredos
como láagrimas

me perturba


2.

eu começara perdendo fascinado
o outono
a azul respirado límpido

mas gravando
o corpo desses agudos
nomes
na loucura da água
recomeço rente às pedras
il miglior tempo della nostra vita







jorge velhote
1979



30 janeiro 2012

caio resende / meninos e bruxas



I

Hoje tenho a mão mais leve,
cansei de pesar sobre as coisas
o que meu peito e alma não puderam.
Levo inda, por baixo de um segredo,
um par de coisas de que tenho medo,
são coisas bobas de menino,
como, por exemplo, ficar de ponta cabeça
e ver alguém se aproximando  – parece bobo,
mas o que esperar de gente com a cabeça tão no céu?
E tenho medo dos caminhos mais seguros,
desde muito, muito menino,
pois lá é que sempre as coisas ficam chatas,
ficam como se sempre fossem a mesma coisa.
Lá, os rios pararam de correr e os meninos
chovem para dentro




caio resende
meninos e bruxas
2011