30 novembro 2011

philippe soupault / mar vermelho





P.S. em 1982

O Mar Vermelho é um íman que atraiu e reteve os homens que iriam agitar os alicerces do mundo.
Não é que nos obstinemos a determinar o segredo das partidas de Rimbaud nem descobrir necessariamente o seu esquecimento da poesia, mas, mais simples do que isso, saber dos porquês do Mar Vermelho e suas margens fascinarem o viajante infatigável, nunca satisfeito, sempre à procura de novas luzes e novos mistérios.
Foi nessas margens que eu segui os itinerários traçados pelo futuro “negociante”, itinerários que ele finalmente havia preferido — ele que falava em regressar a França para se casar e fazer um filho que seria “engenheiro”.
Tendo procurado as pistas de Rimbaud em Londres e em Chipre, fui a Aden, vi a Arábia, Harar, a Etiópia. Em 1951. Ao explorar o Mar Vermelho, vi-me metamorfoseado. Não foi tanto a descoberta de um universo diferente; nem a solidão; mas uma metempsicose. Je est un autre. O homem que eu acreditava ser já não se parecia comigo. Experiência dolorosa mas irreversível. Inútil lutar contra esta ruptura. O olvido.
A sombra de Rimbaud, imperceptível, era impossível não se ficar obcecado por ela. Sombras. O que o vidente não podia conhecer nem mesmo imaginar.
E no entanto...
Os que encontrei eram também eles vítimas do esquecimento. Mesmo aquele milionário, senhor Besse que, alguns anos depois da partida do negociante havia feito fortuna ao retomar por sua conta os projectos que o ardenense teve de abandonar. Mesmo aqueles fantasmas ou aqueles destroços que erravam de Djibuti a Aden sem espírito de regresso.
A última viagem, a viagem da agonia do carregador de luíses de ouro.
Saberia ele que ia morrer?

Paris, 1982





philippe soupault
mar vermelho
trad. célia henriques e vítor silva tavares
& etc
2000






29 novembro 2011

herberto helder / as palavras







Ficarão para sempre abertas as minhas
salas negras.

Amarrado à noite,
eu canto com um lírio negro sobre a boca.

Com a lepra na boca,
com a lepra nas mãos.

Este mamífero tem sal à volta,
este mineral transpira, a primavera precipita-se.

Com a lepra no coração.

Mais de repente,
só chegar à janela e ver uma paisagem tremendo
de medo.

E uma vida mais lenta
só com uma estrela às costas,
uma tonelada de luz inquieta,
uma estrela respirando como um carneiro
vivo.

Igual a esta espécie de festa dolorosa,
apenas um ramo de cabelos violentos
e o seu odor a pimenta,
no lado escuro
como se canta que as salas vão levantar
o seu voo.

Ficarão para sempre abertas estas mãos exageradas
em dez dedos com sono,
como uma rosa acima do pénis.

Ao cimo do caule de sangue,
essa flor confusa.

Um equilíbrio igual,
só a estrela ao cimo do êxtase.

Só alguma coisa parada no cimo de uma visão
tremente.

A primavera, que eu saiba,
tem o sal como cor imóvel,

Por um lado entra a noite,
assim de súbito negra.

De uma ponta à outra enche-se o espaço
aplainando tábuas.

Rasga-se seda para aprender o ritmo.

Abraço um corpo com as camélias
a arder.

Abertas para sempre as negras partes
de mais uma estação.

Semelhante a isto
as mulheres andam pelas galerias transparentes,
e o palácio queima a noite onde estou
cantando.

É possível ainda cortar ao meio o ofício de ver —
e num lado há espelhos bêbedos,
no outro um cardume ilegível de sons
obscuros.

Sabe-se então pelo silêncio em volta,
sabe-se em volta que são lírios
sonoros.

Passando
as mulheres colhem estes sons irrompentes,
e as mãos ficam negras junto à beleza
insensata.

Elas sorriem depois com um talento
terrível.

Levamos às costas um carneiro palpitante.

Pesa tanto uma estrela
quando se acorda nas salas negras abertas de par em par,
e as mãos agarram um ramo de cabelos dolorosos,
e sobre a boca um lírio em brasa,
branco, branco,
que não nos deixa respirar.

A lepra na boca,
que não nos deixa respirar.

Um ramo de lepra contra o corpo,
como isto então só o movimento de águas obscuras
pelos canais de um canto,
como um palácio de salas negras abertas
para sempre.

Este animal respira como um espelho de pé,
no ar,
no ar.






herberto helder
apresentação do rosto
editora ulisseia
1968




28 novembro 2011

josé miguel silva / vista para um pátio




um


  
Cai um sino do pinheiro de natal.
Por muito menos se foge de casa
de seus pais. Agachados sob o leque
das hortênsias, descobrimos que as lágrimas
são fáceis de engolir. Sem saber,
já chegamos ao escuro.
Só nos falta pôr o til na palavra solidão.







josé miguel silva
vista para um pátio seguido de desordem
relógio d´água
2003






27 novembro 2011

ana paula inácio / queria que me acompanhasses





queria que me acompanhasses
vida fora
como uma vela
que me descobrisse o mundo
mas situo-me no lado incerto
onde bate o vento
e só te posso ensinar
nomes de árvores
cujo fruto se colhe numa próxima estação
por onde os comboios estendem
silvos aflitos






ana paula inácio
poetas sem qualidades
averno
2002




25 novembro 2011

jaime rocha / zona de caça

  


24.


Era um encontro impossível. Deitados à noite
sobre uma colcha apenas conseguiam tocar-se
com o choro, mas o cavaleiro não conhecia esse
segredo, nem via que o seu beijo se assemelhava a
uma morte definitiva. Porque tudo nele era matéria
flutuante, não suportava a felicidade. Uma luz
que não morria saía dela, como um barco que
demora séculos a desfazer-se abandonado num
porto, já devorado pelas algas. Por isso, o homem
vestia de novo a armadura e esperava até que,
desaparecido o anjo, solta para a caça, ela voltasse
a ser presa sem covil, à mercê da sua lança, onde
por suas próprias mãos havia colocado uma insígnia.




  


jaime rocha
zona de caça
relógio d´água
2002





24 novembro 2011

antónio pedro / protopoema da serra d’arga




Sonhei ou bem alguém me contou
Que um dia
Em San Lourenço da Montaria
Uma rã pediu a Deus para ser grande como um boi
A rã foi
Deus é que rebentou
E ficaram pedras e pedras nos montes à conta da fábula
Ficou aquele ar de coisa sossegada nas ruínas sensíveis
Ficou o desejo que se pega de deixar os dedos pelas arestas das fragas
Ficou a respiração ligeira do alívio do peso de cima
Ficou um admirável vazio azul para crescerem castanheiros
E ficou a capela como um inútil côncavo de virgem
Para dançar à roda o estrapassado e o vira
Na volta do San João d’Arga

Não sei se é bem assim em San Lourenço da Montaria
Sei que isto é mesmo assim em San Lourenço da Montaria
O resto não tem importância
O resto é que tem importância em San Lourenço da Montaria
O resto é a Deolinda
Dança os amores que não teve
Tem o fôlego do hálito alheio que lhe faltou a amolecer a carne
Seca como a da penedia

O resto é o verde que sangra nos beiços grossos de apetecerem ortigas
O resto são os machos as fêmeas e a paisagem é claro
Como não podia deixar de ser
As raízes das árvores à procura de merda na terra ressequida
Os bichos à procura dos bichos para fazerem mais bichos
Ou para comerem outros bichos
Os tira-olhos as moscas as ovelhas de não pintar
E o milho nos intervalos

Todas estas informações são muito mais poema do que parecem
Porque a poesia não está naquilo que se diz
Mas naquilo que fica depois de se dizer
Ora a poesia da Serra d’Arga não tem nada com as palavras
Nem com os montes nem com o lirismo fácil
De toda a poesia que por lá há

A poesia da Serra d’Arga está no desejo de poesia
Que fica depois da gente lá ter ido
Ver dançar a Deolinda
Depois da gente lá ter caçado rãs no rio
Depois da gente ter sacudido as varejeiras dos mendigos
Que também foram à romaria

As varejeiras põem as larvas nos buracos da pele dos mendigos
E da fermentação
Nascem odores azedos padre-nossos e membros mutilados

É assim na Serra d’Arga
Quando canta Deolinda
E vem gente de longe só para a ouvir cantar

Nesses dias
as larvas vêem-se menos
Pois o trabalho que têm é andar por debaixo das peles
A prepararem-se para voar

Quanto aos mendigos é diferente
A sua maneira de aparecer
Uns nascem já mendigos com aleijões e com as rezas sabidas
Do ventre mendigo materno
Outros é quando chupam o seio sujo das mães
Que apanham aquela voz rouca e as feridas
Outros então é em consequência das moscas e das chagas
Que vão à mendicidade

Não mo contou a Deolinda
Que só conta de amores
E só dança de cores
E só fala de flores
A Deolinda

Mas sabe-se na serra que há uma tribo especial de mendigos
Que para os criar bem
Lhes põem desde pequenos os pés na lama dos pauis
Regando-os com o esterco dos outros

Enquanto ali estão a criar as membranas que valem a pena
Vão os mais velhos ensinando-lhes as orações do agradecimento
Eles aprendem
Ao saberem tudo
Nasce de propósito um enxame de moscas para cada um

Todas as moscas que há no Minho
Se geraram nos mendigos ou para eles
E é por isso que têm as patinhas frias e peganhosas
Quando pousam em nós
E é por isso que aquele zumbido de vai-vem
Das moscas da Serra d’Arga
Ainda lembra a mastigação de lamúrias pelas alminhas do Purgatório
Em San Lourenço da Montaria

Este poema não tem nada que ver com os outros poemas
Nem eu quero tirar conclusões com os poetas nos artigos de fundo
Nem eu quero dizer que sofri muito ou gozei
Ou simplesmente achei uma maçada
Ou sim mas não talvez quem dera
Viva Deus-Nosso-Senhor

Este poema é como as moscas e a Deolinda
De San Lourenço da Montaria
E nem sequer lá foi escrito

Foi escrito conscienciosamente na minha secretária
Antes de eu o passar à máquina
Etc. que não tenho tempo para mais explicações

É que eu estava a falar dos mendigos e das moscas
E não disse
Contagiado pelo ar fino de San Lourenço da Montaria
Que tudo é assim em todos os dias do ano
Mas aos sábados e nos dias de romaria
Os mendigos e as moscas deles repartem-se melhor
São sempre mais
E creio de propósito
Ser na sexta-feira à noite
Que as mendigas parem aquela quantidade de mendigozinhos
Com que se apresentam sempre no dia da caridade

Elas parem-nos pelo corpo todo
Pois a carne
De tão amolecida pelos vermes
Não tem exigências especiais
E porque assim acontece
Todos os meninos nascidos deste modo têm aquele ar de coisa mole
Que nunca foi apertada

Os mendigos fazem parte de todas as paisagens verdadeiras
Em San Lourenço da Montaria
Além deles há a bosta dos bois
Os padres
O ar que é lindo
Os pássaros que comem as formigas
Algumas casas às vezes
Os homens e as mulheres

Por isso tudo ali parece ter sido feito de propósito
Exactamente de propósito
Exactamente para estar ali
E é por isso que se tiram as fotografias

Por isso tudo ali é naturalmente
Duma grande crueldade natural
Os meninos apertam os olhos das trutas
Que vêm da água do rio
Para elas estrebucharem com as dores e mostrarem que ainda estão vivas
Os homens beliscam o cu das mulheres para que elas se doam
E percebam assim que lhes agradam
Os animais comem-se uns aos outros
As pessoas comem muito devagar os animais e o pão
E as árvores essas
Sorvem monstruosamente pelas raízes tudo o que podem apanhar

Assim acaba este poema da Serra d’Arga
Onde ontem vi rachar uma árvore e me deu um certo gozo aquilo
Parecia a queda dum regímen
Tudo muito assim mesmo lá em cima
E cá em baixo dois suados à machadada

Ao cair o barulho parecia o duma coisa muito dolorosa
Mas no buraco do sítio da árvore
Na mata de pinheiral
O azul do céu emoldurado ainda era mais bonito
Em San Lourenço da Montaria"


Moledo, Agosto de 1948




antónio pedro
antologia poética
angelus novus
1998



23 novembro 2011

antónio franco alexandre / syrinx, ficção pastoral




V

Vestido de cavalo e fina seda
e coberto de escamas luminosas
é como se tivesse uma outra idade
(a verdadeira) e o jovem corpo
capaz de atravessar muros e medo.
Inclinarias sobre a minha boca
um nome arrevezado com sabor
a terras estrangeiras visitadas
secretamente, em noite toda escura,
envolto, nu, em glória impermeável.
Vais-me dobrar em dois como se dobra
um dia que passou sem nada dentro,
o velho ardor de nuvens encardidas;
sem ver na minha voz como cantava
ao telefone a sombra da memória
do desejo que dói como um veneno.





antónio franco alexandre
quatro caprichos
assírio & alvim
1999



22 novembro 2011

amália rodrigues / fado português









O Fado nasceu um dia,
quando o vento mal bulia
e o céu o mar prolongava,
na amurada dum veleiro,
no peito dum marinheiro
que, estando triste, cantava,
que, estando triste, cantava.

Ai, que lindeza tamanha,
meu chão , meu monte, meu vale,
de folhas, flores, frutas de oiro,
vê se vês terras de Espanha,
areias de Portugal,
olhar ceguinho de choro.

Na boca dum marinheiro
do frágil barco veleiro,
morrendo a canção magoada,
diz o pungir dos desejos
do lábio a queimar de beijos
que beija o ar, e mais nada,
que beija o ar, e mais nada.

Mãe, adeus. Adeus, Maria.
Guarda bem no teu sentido
que aqui te faço uma jura:
que ou te levo à sacristia,
ou foi Deus que foi servido
dar-me no mar sepultura.

Ora eis que embora outro dia,
quando o vento nem bulia
e o céu o mar prolongava,
à proa de outro veleiro
velava outro marinheiro
que, estando triste, cantava,
que, estando triste, cantava.





poema de josé régio
música de alain oulman





21 novembro 2011

antónio gamoneda / pavana impura




Envelheceu dentro de teus olhos; eras a doçura e o extermínio e amei o teu corpo em seus frutos nocturnos.

Tua inocência é como uma faca diante de meu rosto,

mas pesas no meu coração e, como um mel escuro, sinto-te em meus lábios ao encaminhar-me para a morte.



  

antonio gamoneda
livro do frio
(pavana impura)
trad. de José bento
assírio & alvim
1999



19 novembro 2011

josé tolentino mendonça / os versos






Os versos assemelham-se a um corpo
quando cai
ao tentar de escuridão a escuridão
a sua sorte

nenhum poder ordena
em papel de prata essa dança inquieta





josé tolentino mendonça
baldios
assírio & alvim
1999



18 novembro 2011

luis vaz de camões / esparsa





     Os bons vi sempre passar
no mundo graves tormentos;
e, para mais m´espantar,
os maus vi sempre nadar
em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
o bem tão mal ordenado,
fui mau, mas fui castigado:
Assi que, só para mim
anda o mundo concertado.




luís vaz de camões
poesia lírica


17 novembro 2011

mário cesariny / ortofrenia






Aclamações
dentro do edifício inexpugnável
aclamações
por já termos chapéu para a solidão
aclamações
por sabermos estar vivos na geleira
aclamações
por ardermos mansinho junto ao mar
aclamações
porque cessou enfim o ruído da noite a secreta alegria por escadas
               de caracol
aclamações
porque uma coisa é certa: ninguém nos ouve
aclamações
porque outra é indubitável: não se ouve ninguém





mário cesariny
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998