05 janeiro 2011
vitorino nemésio / poema
Uma tarde é tão pouco em nossa mão!
Os seus anéis deixados os pesamos
Com puros olhos; damos
Rigor ao que é recordação.
Depois a noite esculpe
Nossa extensão no sono.
A que erma catedral iremos nós de estátuas?
Sem um deus que nos culpe,
Tais os anéis de outono
Somos imagens fátuas.
vitorino nemésio
edoi lelia doura
antologia das vozes comunicantes
da poesia moderna portuguesa
assírio & alvim
1985
03 janeiro 2011
juan luís panero / como se fosse um poema de amor
Esta cidade tem hoje o teu rosto
e as gaivotas voam na orla dos teus olhos,
sob as nuvens cinzentas da tua fronte.
Ramos verdes de Abril agitam-se em teus lábios
e entre os teus dedos, brancas, surgem, surgem cúpulas
e torres.
Um castelo de sombras ergue-se em teu peito
e um avião passa lento, percorrendo o teu cabelo.
História do teu corpo, com ruas e com rostos
recantos de cansaço, paredes coloridas,
luz que vem e pára, atónita, a teus pés,
como um cão adormecido cujo nome ignoramos.
Esta cidade terá o teu rosto para sempre
e em sua cálida extensão conhecida,
pele a pele, até aos ossos, pedra a pedra nos anos,
o amor será distância e viverá sua morte.
Subitamente não há passado em sua língua
e em tua língua desmorona-se o presente
e tua língua arde e sua saliva queima
enquanto o rio enorme desagua
levando sob suas águas nossas vozes.
Esta cidade terá o teu nome para sempre,
escrevo-o como se fosse verdade,
como se minhas palavras fossem de pedra ou aço,
como se nada tivesse jamais de desmenti-las.
Numa noite qualquer, numa morna manhã
de uma primavera chuvosa e de tormentas,
com cinismo e cansaço, mas também um momento
com aquela ilusão que tiveram outrora
e um calor vencido que alimenta ainda sua pele,
frente ao esquecimento dois seres abraçaram a vida.
Com tristeza mais suave, oh que melancolia,
junto ao húmido parque suas duas sombras tremeram
«esta cidade terá o teu nome para sempre»
e ouviram-se distantes anunciar seu adeus.
(Lisboa 1969)
juan luís panero
antologia da poesia espanhola contemporânea
tradução de josé bento
assírio & alvim
1985
30 dezembro 2010
gil t. sousa / o tempo
29
O tempo é uma fortaleza de papel. Todos os passos se resolvem em caminhos esquecidos. Todos os horizontes se erguem como livros guardados. Leio tudo o que me cerca, como se tivesse que esconjurar impressionantes silêncios. Tenho aqui o mundo e aqueles que lhe traçaram a órbita. Tenho aqui as minhas noites e os meus dias, os anos e as estações, as latitudes e as longitudes... Tenho aqui os fundamentais pontos que me marcaram o norte e o sul.
Dou-me esta ilusão de uma manhã lúcida e depois parto pelos dias adentro, interiormente, dissimuladamente como a maré de um sentimento. Tenho na pele a nostalgia de um lugar perdido. Navios, grandes navios adormecidos no seu azul ferido. Dançam-me a sua morte num pensativo silêncio. Exaltam o seu morrer numa coreografia de lágrimas em ferrugem, escondem na imobilidade dramática dos guindastes o diário intacto das viagens cumpridas. Os arranhões no ferro são linhas de mapas impossíveis e no fim dos seus nomes já não brilha a recompensa de um destino.
Ah! os nomes e as intenções que contêm! Um nome é um cruzeiro no nada, uma corrente que nos arrasta ao incerto do paraíso ou do inferno.
gil t. sousa
falso lugar
2004
Dou-me esta ilusão de uma manhã lúcida e depois parto pelos dias adentro, interiormente, dissimuladamente como a maré de um sentimento. Tenho na pele a nostalgia de um lugar perdido. Navios, grandes navios adormecidos no seu azul ferido. Dançam-me a sua morte num pensativo silêncio. Exaltam o seu morrer numa coreografia de lágrimas em ferrugem, escondem na imobilidade dramática dos guindastes o diário intacto das viagens cumpridas. Os arranhões no ferro são linhas de mapas impossíveis e no fim dos seus nomes já não brilha a recompensa de um destino.
Ah! os nomes e as intenções que contêm! Um nome é um cruzeiro no nada, uma corrente que nos arrasta ao incerto do paraíso ou do inferno.
gil t. sousa
falso lugar
2004
29 dezembro 2010
herberto helder / as palavras
Deslocações de ar, de palavras, partes do corpo
deslocações de sentido nas partes do corpo.
As ribeiras tremem na base das montanhas —
geladas, de costas,
as montanhas tremem sobre as águas deslocadas de repente.
Os animais apoiam-se no seu próprio sangue.
As flores apoiam-se na sua própria cor.
As idades apoiam-se na sua própria memória.
E o sono desloca-se da terra para o coração.
Vive-se com o coração a tremer
como uma montanha sobre ribeiras de luz —
e depois a treva desloca-se da idade para o coração
como um lugar inteiro.
E um dia os animais passam junto aos lençóis estendidos,
e a sua passagem queima a brancura
exposta a todas as deslocações.
Então candeias e papoulas deslocam-se sobre imagens cheias de patas —
e fechamos os olhos para a terrível dor da carne,
respiramos mal,
trememos apoiados no nosso próprio terror.
Deslocações de dedos em volta de umas ancas ferozes,
mão atentamente aberta sobre uma vagina viva
como uma boca nas virilhas, a flor do ânus, a flor do ânus —
e depois a luz desloca-se de toda a parte para toda a parte.
O dia apoia-se no seu próprio movimento.
O peixe apoia-se na sua própria submersão.
O amor apoia-se no seu próprio êxtase.
E as vozes apoiam-se no seu próprio som.
Apenas as flores se apoiam no perfume veloz.
Apenas os corpos se apoiam nas flores que eles próprios são —
atados como ramos de um cego e amargo e monstruoso e veloz perfume,
como um perfume de corpos.
As ribeira de luz respiram a prumo.
As ribeiras de treva respiram a prumo.
Vive-se a tremer com o pavor e a glória.
Vive-se de uma ponta à outra o extremo amor, o amor,
e a solidão como um lugar inteiro.
Alguém respira onde é vivo —
uma boca, um ânus, uma vagina viva.
Alguém ferve pela luz adiante até entrar nas trevas
e ficar respirando nas trevas.
Um perfume de esperma.
Um perfume de salsa.
Um perfume de enxofre que estonteia.
Alguém se transforma numa coisa inominável.
(…)
herberto helder
apresentação do rosto
editora ulisseia
1968
28 dezembro 2010
jorge luís borges / outro poema dos dons
Graças quero dar ao divino
labirinto dos efeitos e das causas
pela diversidade das criaturas
que formam este singular universo,
pela razão, que não cessará de sonhar
com um plano do labirinto,
pelo rosto de Helena e a perseverança de Ulsses,
pelo amor que nos deixa ver os outros
como os vê a divindade,
pelo firme diamante e a água solta,
pela álgebra, palácio de precisos cristais,
pelas místicas moedas de Angel Silésio,
por Schopenhauer
que decifrou talvez o universo,
pelo fulgor do fogo
que nenhum ser humano pode olhar sem um assombro antigo,
pelo acaju, o cedro e o sândalo,
pelo pão e o sal,
pelo mistério da rosa
que prodiga cor e não a vê,
por certas vésperas e dias de 1955,
pelos duros tropeiros que, na planície,
arreiam os animais e a alba,
pela manhã em Montevideu,
pela arte da amizade,
pelo último dia de Sócrates,
pelas palavras que foram ditas num crepúsculo
de uma cruz a outra cruz,
por aquele sonho do Islão que abarcou
mil noites e uma noite,
por aquele outro sonho do inferno,
da torre do fogo que purifica
e das esferas gloriosas,
por Swendenborg,
que conversava com os anjos nas ruas de Londres,
pelos rios secretos e imemoriais
que convergem em mim,
pelo idioma que, há séculos, falei em Nortúmbria,
pela espada e a harpa dos saxões,
pelo mar que um deserto resplandecente
e uma cifra de coisas que não sabemos
e um epitáfio dos vikings,
pela música verbal da Inglaterra,
pela música verbal da Alemanha,
pelo ouro que reluz nos versos,
pelo épico Inverno,
pelo nome de um livro que não li: Gesta Dei per Francos,
por Verlaine, inocente como os pássaros,
pelo prisma de cristal e o peso de bronze,
pelas riscas do tigre,
pe1as altas torres de São Francisco e da ilha de Manhattan,
pela manhã no Texas,
por aquele sevilhano que redigiu a «Epístola Moral»
e cujo nome, como ele teria preferido, ignoramos,
por Séneca e Lucano, de Córdova,
que antes do espanhol escreveram
toda a literatura espanhola,
pelo geométrico e bizarro xadrez,
pela tartaruga de Zenão e o mapa de Royce,
pelo odor medicinal dos eucaliptos,
pela linguagem, que pode simular a sabedoria,
pelo esquecimento, que anula ou modifica o passado,
pelo costume,
que nos repete e nos confirma como um espelho,
pela manhã, que nos depara a ilusão de um princípio,
pela noite, sua treva e sua astronomia,
pelo valor e a felicidade dos outros,
pela pátria, sentida nos jasmins
ou numa velha espada,
por Whitman e Francisco de Assis, que já escreveram o poema,
pelo facto de que o poema é inesgotável
e se confunde com a soma das criaturas
e jamais chegará ao último verso
e varia segundo os homens,
por Frances Haslam, que pediu perdão a seus filhos
por morrer tão devagar,
pelos minutos que precedem o sonho,
pelo sonho e a morte,
esses dois tesouros ocultos,
pelos íntimos dons que não enumero,
pela música, misteriosa forma do tempo.
jorge luís borgesnova antologia pessoaltrad. maria da piedade m. ferreira
difel
1983
27 dezembro 2010
paul auster / eixos
Ver é estoutra aflição, expiada
Na dor de ser visto: o dito,
O visto, contidos na recusa
De falar, e de uma só voz a semente,
Sepultada no acaso de uma pedra.
Nunca as minhas mentiras me pertenceram.
paul auster
poemas escolhidos
tradução de rui lage
quasi
2002
26 dezembro 2010
álvaro de campos / estou cansado, é claro
Estou cansado, é claro,
Porque, a certa altura, a gente tem que estar cansado.
De que estou cansado, não sei:
De nada me serviria sabê-lo,
Pois o cansaço fica na mesma.
A ferida dói como dói
E não em função da causa que a produziu.
Sim, estou cansado,
E um pouco sorridente
De o cansaço ser só isto —
Uma vontade de sono no corpo,
Um desejo de não pensar na alma,
E por cima de tudo uma transparência lúcida
Do entendimento retrospectivo...
E a luxúria única de não ter já esperanças?
Sou inteligente: eis tudo.
Tenho visto muito e entendido muito o que tenho visto,
E há um certo prazer até no cansaço que isto me dá,
Que afinal a cabeça sempre serve para qualquer coisa.
fernando pessoapoesias de álvaro de camposedições ática
1980
19 dezembro 2010
leonardo gandolfi / sem passado, assalto fotografias
Sem passado, assalto fotografias
alheias e integro-as à memorabilia
mais próxima, que por acaso é a minha.
Me conta a fascinante história da sua vida,
leio num outdoor imaginário, que faria
facilmente do recém-falecido Salinger
o autor dos Minutos de Sabedoria.
A única e burra sabedoria de que somos
capazes é a de ver sumirem os nossos
um a um. Depois do avô, um cachorro,
assim sucessivamente, sem naturalidade alguma.
Cada coisa, tanta gente, para onde caminha
tão frouxo coração? À esquerda de quem entra,
diz meu personal salinger. Vou pra sala
e a sala é um poço. Bem localizado no sofá,
começo a assistir pela undécima vez
a Blade Runner. E cheio de esperança
penso no futuro de milhares de pessoas,
entre as quais, os replicantes.
leonardo gandolfi
kansas
relâmpago
revista de poesia nr 26
abril 2010
fundação luís miguel nava
2010
13 dezembro 2010
josé miguel silva / piazza della signoria
Ora, pobres sempre houve, senhor.
E todos sabemos, foi assim ordenado,
que não há mal que não venha por bem.
Muito mesquinhos seríamos nós,
muito egoístas, se não nos alegrasse
que do nosso suor tenha nascido a arte
de gastar dinheiro, para que dentro
de cem ou mil anos também os nossos
descendentes possam ter o direito de
cagar sentados, ouvir música de câmara
ou sair do dentista com um sorriso
nos dentes. Se valeu a pena o sacrifício?
Isso nem se pergunta. Pessoalmente,
só lamento não ter podido dar mais
do que uma vida, mas era a única que tinha,
e morro, por isso, de consciência tranquila.
josé miguel silva
erros individuais
relógio d´água
2010
09 dezembro 2010
eduardo moga / onde dormem os trovões?
[…]
Onde dormem os trovões? Onde estão
as chamas que bebemos? Onde foram
as crianças despojadas das suas têmporas,
as ânforas sem vísceras, as serpentes
de olhos como fuzis, as dulcíssimas
úlceras? Por que não encontra nunca a água
o seu limite? Por que é descontínua
a rocha, por que existe só a rajadas,
a dentadas, quando antes percorria
o vasto labirinto da pulsação?
Nada escapa à fuga: nem os dedos,
que tão longe estão das esferas;
nem a mãe, que esquece o seu baptismo;
nem os lábios, fincados no inerte;
nem o vento, demolido. Quando morri?
Por que se oxidou o mar? Para onde foram
as leis, as sementes, as retinas
construídas com mãos e sondas?
A razão não perdura. Os irmãos
não nascem. Dissolve-se a unidade
do amor, reúnem-se os seus vazios,
desmoronam-se, intactos, os seus jardins.
[…]
eduardo moga
poesia espanhola anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000
06 dezembro 2010
mário cesariny / julião os amadores
Já nada temos a fazer sobre a Terra esperemos de olhos
fechados a passagem do vento
dizia eu dizia eu
que é sobre a missa branca do teu peito que se erguem os
palácios rasos de água
no escuro no escuro
alguém nos levará tocando-nos com um dedo nós trémulos,
deitados, sem dizer palavra, morremos de ter-nos
conhecido tanto
e depois? e depois?
depois o halo de uma fita azul o martelo esquecido sobre a
pedra de um sonho
mas os salões? e a casa?
e o cão que nos seguia?
o teu rosto meu rosto
este homem alto
o Sol
mário cesariny
manual de prestidigitação
assírio & alvim
1981
02 dezembro 2010
margarida vale de gato / a auto-estima de uma corça sozinha num bar
Um olhar arisco talvez não seja metáfora
um olhar melindrado
os cascos de unhas tratadas
tamborilando nos amendoins
diante de uma bebida branca
atrair sem chamar as atenções
agir com singularidade — o cigarro
que já aprendeu a enrolar —
afectar desinteresse sem descurar possível contágio,
a isso chamam os homens mistério.
Pensar na casa vazia como se de sobriedade se tratasse
não pensar sequer na casa vazia
nem nos corpos que lá subiram
troféus que não cumpriram elementar função
de brilhar no espaço
quando para o ocupar bastam gatos
extensos de tédio.
Oscilar levemente os ombros à música saturada
descontracção
os ombros bem torneados
moldura do impecável colo
ombros ebúrneos pescoço esguio
queixo bicudo nariz inflexível boca madura
ossos do esterno rigorosos
olhos levemente abstraídos por matizes de álcool
relaxar inclinar flutuar com cabelos não perder a cabeça
acenar ao sorriso dos lábios da mesa fronteira
o significado do sorriso — convite curiosidade
escárnio compaixão bebedeira
alerta! vulnerabilidade máxima, não sorrir
olhar fixamente para o cartaz da loira
que tem as saias arregaçadas pelo vento:
Uma mulher numa casa vazia contaminada de barbitúricos
o telefone sempre sem descanso a imagem de estar só
o corpo de desejo o desleixo no sofá seminu.
Esvaziada mente
mandar vir outra de espfrito mais forte
convir à discrição ouvir a música fluir ser grácil
o detentor do sorriso adianta-se a chamar o empregado
— avidezes bailando sedutoras —
alguma coisa humedece ao som dos lábios untuosos
pois sim outro gim — mãos imperceptivelmente crispadas
não ceder.
Resguardar-se.
Defender-se da luz para não chocar com as traças
não — para não se mostrar que se envelhece
titubeante
amparar disparo com desdém.
margarida vale de gato
relâmpago
revista de poesia nr 26
abril 2010
fundação luís miguel nava
2010
30 novembro 2010
rui cóias / despede-se de outra vida
2.
Despede-se de outra vida, de uma terra já vergada,
quem regressa com a chave do inverno marcada nos seus passos e,
nesta
hora, renuncia ao próprio alento.
Porque esta é mesmo a sua morte. Quando
a paisagem traz a vida para mais alto, a vida em que se move o
devir do tempo
que assim serve os seus próprios fins
quando os jacintos empalidecem nas longas escadarias
como coisas que se tocam, atingidas.
Porque o inverno não se ouve, nem define,
mas sujeita o sangue a todas as histórias que terminam. Porque
o inverno não se lembra,
mas vê fulcros que expandem nas encostas, vê o fio de mel que viaja
na penumbra
de uma ponta da terra a toda a terra.
Porque o inverno não é o que parece. Mas é a bruma dos frutos
novos
e o orvalho em que o passado se efabula no presente
em plenos frios, com raízes entranhadas.
Porque esta é mesmo a sua morte; em tudo o que viu antes, que não
conhece fim,
em tudo o que se afasta a um passo do caminho
abandonado para sempre
no silêncio que quer aproximar-se, que não ouve mais do que silêncio.
Porque a morte regressa doutra vida – porque
sabe-o no sulco em que os passos, vendo atrás as clareiras,
pressentem o flagelo
em que o rosto, no intervalo delas,
é essa vida a chamar das áleas decrescentes,
a recuar em vistas mortais, em quilómetros, nessas vastidões.
rui cóias
cinco poemas
relâmpago
revista de poesia nr 26
abril 2010
fundação luís miguel nava
2010
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