09 fevereiro 2010

mário-henrique leiria /claridade dada pelo tempo







I

Deixa-me sentar numa nuvem
a mais alta
e dar pontapés na Lua
que era como eu devia ter vivido
a vida toda
dar pontapés
até sentir um tal cansaço nas pernas
que elas pudessem voar
mas não é possível
que tenho tonturas e quando
olho para baixo
vejo sempre planícies muito brancas
intermináveis
povoadas por uma enorme quantidade
de sombras
dá-me um cão ou uma bola
ou qualquer coisa que eu possa olhar
dá-me os teus braços exaustivamente
longos
dá-me o sono que me pediste uma vez
e que transformaste apenas para
teu prazer
nos nossos encontros e nos nossos
dias perdidos e achados logo em
seguida
depois de terem passado
por uma ponte feita por nós dois
em qualquer sítio me serve
encontrar o teu cabelo
em qualquer lugar me bastam
os teus olhos
porque
sentado numa nuvem
na lua
ou em qualquer precipício
eu sei
que as minhas pernas
feitas pássaros
voam para ti
e as tonturas que a planície me dá
são feitas por nós
de propósito
para irritar aqueles que não sabem
subir e descer as montanhas geladas
são feitas por nós
para nunca nos esquecermos
da beleza dum corpo
cintilando fulgurantemente
para nunca nos esquecermos
do abraço que nos foi dado
por um braço desconhecido
nós sabemos
tu e eu
que depois de tudo
apenas existem os nossos corpos
rutilantes
até se perderem no
limite do olhar
dá-me um cigarro
mesmo que seja só um
já me basta
desde que seja dado por ti
mas não me leves
não me tires
as tonturas que eu teria
que eu terei
sempre que penso cá de cima
duma altura vertiginosa
onde a própria águia
nada mais é que um minúsculo
objecto perdido
onde a nuvem
mais alta de todas
se agasalha como um cão de caça
leva-me a recordação
apenas a recordação
da vida martelada
que em mim tem ficado
como herança dada há mil e
duzentos anos

deixa que eu fique
muito afastado
silencioso
e único
no alto daquela nuvem
que escolhi
ainda antes de existir











mário-henrique leiria
o surrealismo na poesia portuguesa
antologia organizada por natália correia
frenesi
2002







07 fevereiro 2010

isidore ducasse / que dizem um ao outro...




(…)

Que dizem um ao outro dois corações que se amam? Nada. Mas os nossos olhos exprimiam tudo. Digo-lhe que cinja o capote ao corpo, e ele fez-me notar que o meu cavalo se está a afastar demasiadamente do seu: cada um de nós interessa-se tanto pela vida do outro como pela sua própria; não rimos. Ele tenta sorrir-me; mas percebo que o seu rosto está marcado pelo peso das terríveis impressões nele gravadas pela meditação, constantemente debruçada sobre as esfinges que confundem, com um olhar oblíquo, as grandes angústias da inteligência dos mortais. Vendo como são inúteis as suas diligências, ele desvia os olhos, morde o seu freio terrestre com a baba da raiva, e contempla o horizonte que foge quando nos aproximamos. Tento por meu lado recordar-lhe a sua doirada juventude, que só pede entrada nos palácios dos prazeres, como uma rainha; mas ele nota que as palavras me saem dificilmente da boca emagrecida, e que também os anos da minha primavera já passaram, tristes e glaciais, como um sonho implacável que, nas mesas dos banquetes e nos leitos de cetim em que dormita a pálida sacerdotisa do amor, paga com as cintilações do ouro, passeia as amargas volúpias do desencanto, as rugas pestilentas da velhice, os sustos da solidão e os farrapos da dor.

(…)







isidore ducasse
conde de lautréamont
cantos de maldoror
canto terceiro
trad. pedro tamen
fenda
1988




03 fevereiro 2010

marin sorescu / xadrez









Eu movo um dia branco,
Ele move um dia preto.
Eu avanço com um sonho,
Ele manda-o para a guerra.
Ele ataca os meus pulmões
Eu fico um ano no hospital a pensar,
Faço uma combinação brilhante
E ganho-lhe um dia preto.
Ele move uma desgraça
E ameaça-me com o cancro
(Que por agora avança em forma de cruz),
Mas ponho à sua frente um livro
E obrigo-o a recuar.
Ganho mais algumas peças,
Mas, reparem, metade da minha vida
Já está fora de jogo.
— Vou dar-te cheque e perdes o optimismo
Diz ele.
— Não faz mal, gracejo eu,
Faço roque dos sentimentos.

Atrás de mim a minha mulher, os meus filhos,
O sol, a lua e os outros mirones
Tremem por cada jogada minha.

Eu acendo um cigarro
E retomo a partida.







marin sorescu
simetria
tradução colectiva revista, completada e apresentada
por egito gonçalves
poetas em mateus
quetzal
1997






02 fevereiro 2010

sarah kane / 4:48 psicose








"Estou triste
Sinto que não há esperança no futuro e que as coisas não podem melhorar
Estou farta e insatisfeita com tudo
Sou um fracasso completo como pessoa
Sou culpada, estou a ser castigada
Gostava de me matar
Sabia chorar mas agora estou para além das lágrimas
Perdi o interesse nas outras pessoas
Não consigo tomar decisões
Não consigo comer
Não consigo dormir
Não consigo pensar
Não consigo ultrapassar a minha solidão, o meu medo, o meu desgosto
Sou gorda
Não consigo escrever
Não consigo amar
O meu irmão a morrer, o meu amante a morrer, estou a matá-los aos dois
Invisto na direcção da minha morte
Estou aterrorizada com a medicação
Não consigo fazer amor
Não consigo foder
Não consigo estar sozinha
Não consigo estar com os outros
As minhas ancas são grandes de mais
Não gosto dos meus órgãos genitais
Às 4:48
quando o desespero me visitar
enforco-me
ao som da respiração do meu amante."








sarah kane
teatro completo
trad. pedro marques
campo das letras
2001







01 fevereiro 2010

maria gabriela llansol / saber esperar alguém







34



Não há mais sublime sedução do que saber esperar alguém.
Compor o corpo, os objectos em sua função, sejam eles
A boca, os olhos, ou os lábios. Treinar-se a respirar
Florescentemente. Sorrir pelo ângulo da malícia.
Aspergir de solução libidinal os corredores e a porta.
Velar as janelas com um suspiro próprio. Conceder
Às cortinas o dom de sombrear. Pegar então num
Objecto contundente e amaciá-lo com a cor. Rasgar
Num livro uma página estrategicamente aberta.
Entregar-se a espaços vacilantes. Ficar na dureza
Firme. Conter. Arrancar ao meu sexo de ler a palavra
Que te quer. Soprá-la para dentro de ti -------------------
----------------------------- até que a dor alegre recomece.






maria gabriela llansol
o começo de um livro é precioso
assírio & alvim
2003








30 janeiro 2010

narcís comadira / falcoaria









Agora sou um falcão e sobre a mão
do meu dono me firmo. O ar puro da manhã
respiro e o cheiro do veludo e das martas, o suor dos cavalos,
o feno pisado, os vapores
que sobem da terra.
Ervas e florinhas, tapete axadrezado que verei
das alturas quando em círculos, magnificente
observe os meus domínios, a pradaria, os arbustos,
o regato, a fugidia lebre.
E os cavalos, os cães, o dono
com os seus cavaleiros e o falcoeiro-mor,
pagens e servidores, todos iguais de tão pequenos,
espalhados pelo prado...
Agora o dono disse-me: quero uma grande lebre,
cheirosa de lentisco (o meu dono é poeta),
enquanto me acariciava a plumagem com o dedo.
Sinto-me imperador, na mão do meu dono, firme,
com o meu capuz de couro todo enfeitado.
Há movimento, alvoroço, relinchos, escarvar
e os moços dos canis que libertam e incitam os cães.
Aproxima-se o momento, o dono afaga-me,
quer uma grande lebre, cheirosa de lentisco
(eu também sou poeta). O coração pulsa com violência
e nestes momentos, agora, eu sou o dono e senhor
do mundo e da gente. Todos dentro do meu círculo,
de mim pendentes, esperando como me perco e regresso,
como o meu voo se vai cingindo, calculando
ao ver a lebre temerosa.
Os olhos são como setas, as garras agudizam-se
e uma dulcíssima vertigem me possui.
São um só céu e terra, árvores e nuvens, a erva e a pele
arisca da lebre. Nada vejo. Uma força
me arrasta para o fundo, para o poço do nada,
desço como um relâmpago. Por qual
vontade me pauto?
Qual a força obscura que me arrasta, que fios
movem as minhas asas, que fogo
poderá aquecer tanto
o sangue do meu corpo?

Agora tenho já
nas garras a lebre morta,
cheirosa de terra e de lentisco.
Tudo terminou, já se afundou o império.
O falcoeiro-mor
deixará que eu destroce um pedaço do cálido fígado...
Depois o dono rirá com os seus amigos
e eu me sentirei ridículo
com o meu capuz cheio de fitas.

Dura sempre tão pouco
aquilo que nos permite o esquecimento!







narcís comadira
quinze poetas catalães
trad. egito gonçalves
ed. limiar
1994











28 janeiro 2010

gil t. sousa / ternamente poderosos






13/


nunca sobrava uma sílaba. ternamente poderosos, revíamos o mundo
do mais alto lugar.

nas manhãs frias de sábado,
a noite ainda na pele.









gil t. sousa
falso lugar
2004







26 janeiro 2010

ernesto sampaio / geografia








A oriente
o horizonte escarlate
da dor humana
a ocidente
o crepúsculo
no fim do percurso
a norte
o Senhor da Morte
a sul
o vento do deserto
em cima
o olho do mundo
em baixo
o sonho indestrutível








ernesto sampaio
feriados nacionais
fenda
1999









23 janeiro 2010

paulo jorge fidalgo / gostos








Gosto da chuva em dias cinzentos
das ruas transpiradas e das mulheres
abrigadas sob as pálpebras da noite.
Gosto de uvas e de tremoços
e dos trémulos moços que namoram.
miúdas constipadas - choro com eles
suas mágoas.
Gosto das luzes e das fachadas iluminadas
dos palácios com árvores e dos pássaros
nas árvores gosto da fidelidade dos cães
e do cheiro dos animais em casa
gosto do Inverno se estou triste e de ir
anoitecer ao cinema, bebo vinho e rio
sozinho no meu quarto enquanto espero
que tu venhas tardia e fria ao meu colo,
chamo-te nomes que amei e tu sabes
que eu amei e não te importas que te ame
assim tipo filme de renúncias e façanhas,
gosto de homens taciturnos e amigos
dos jornais de ontem e de um quadro
de Giotto numa história sem sentido,
leio prosa dispersa a preço razoável
e sou maldoso se vejo coisa doutro
que não preste, gosto de viagens curtas
e de mijar ao vento contra as giestas,
gosto de falar do passado e ser diferente
por dentro de mim que se não vê,
modesto não digo porque minto mas gosto
do azul limpo ou quase verde, uso tinta
durmo mal e pago imposto.
E prefiro um gosto ao resto.








paulo jorge fidalgo
hablar/falar de poesia nr. 4
2001








20 janeiro 2010

josé tolentino mendonça / side of the road







Ateei o fogo
quebrei as portas de bronze
desfiz sinais nas pedras lisas
enlouqueci os adivinhos

minha língua tornou-se tão
estranha
que não se pode entender

as multidões vitoriosas
levantam em teu nome grinaldas
tamboris e danças
despojos de várias
cores

tomo o caminho por onde vieste
tropeçando como os que não
têm olhos






josé tolentino mendonça
a estrada branca
assírio & alvim
2005







18 janeiro 2010

egito gonçalves / imagens de um inverno indocumentado












A vida tem lágrimas pesadas como árvores…
A sombra avança no atalho como um formigueiro.
Tuas pernas estão vermelhas de frio na paragem do eléctrico.

Felizmente existe a noite e a tua chegada.
O anjo estático não é mais que um boneco de pedra.
O calor da tua boca reinventa o estio.







egito gonçalves
o amor desagua em delta
editorial inova
1971


16 janeiro 2010

antónio franco alexandre / corto viaggio sentimentale, capriccio italiano







6



quero dizer-te: não morras.
Nem me digas quem és, quem foste, como sabes
a língua que se fala sobre a terra.
Ao lume lanço
toda a vontade de viver, ser vivo,
a cautela do ar, ardendo em torno.
Passarei, terás passado em mim, só quero
dizer-te: não morras nunca, agora, nunca mais.






antónio franco alexandre
quatro caprichos
assírio & alvim
1999








14 janeiro 2010

daniel faria / ando um pouco acima do chão









Ando um pouco acima do chão
Nesse lugar onde costumam ser atingidos
Os pássaros
Um pouco acima dos pássaros
No lugar onde costumam inclinar-se
Para o voo

Tenho medo do peso morto
Porque é um ninho desfeito

Estou ligeiramente acima do que morre
Nessa encosta onde a palavra é como pão
Um pouco na palma da mão que divide
E não separo como o silêncio em meio do que escrevo

Ando ligeiro acima do que digo
E verto o sangue para dentro das palavras
Ando um pouco acima da transfusão do poema

Ando humildemente nos arredores do verbo
Passageiro num degrau invisível sobre a terra
Nesse lugar das árvores com fruto e das árvores
No meio dos incêndios
Estou um pouco no interior do que arde
Apagando-me devagar e tendo sede
Porque ando acima da força a saciar quem vive
E esmago o coração para o que desce sobre mim
E bebe









daniel faria
poesia
explicação das árvores e de outros animais

quasi
2003