Notai, peixes, aquela definição de Deus: Rector maris atque terrae: Governador do mar e da terra, para que não duvideis que o mesmo estilo que Deus guarda com os homens na terra observa também convosco no mar. Necessário é logo que olheis por vós e que não façais pouco caso da doutrina que vos deu o grande doutor da Igreja Santo Ambrósio, quando, falando convosco, disse Cave nedum alium insequeris, incidas in validiorem (1). Guarde-se o peixe que persegue o mais fraco para o comer, não se ache na boca do mais forte, que o engula a ele. Nós o vemos aqui cada dia. Vai o xaréu correndo após o bagre, como o cão após a lebre, e não vê o cego que lhe vem nas costas o tubarão com quatro ordens de dentes, que o há-de engolir de um bocado. E o que com maior elegância vos disse também Santo Agostinho: Proedo minorisfit proeda majoris (2).
Mas não bastam, peixes, estes exemplos, para que acabe de se persuadir a vossa gula, que a mesma crueldade que usais com os pequenos tem já aparelhado o castigo na voracidade dos grandes. Já que assim o experimentais com tanto dano vosso, importa que daqui por diante sejais mais repúblicos e zelosos do bem comum, e que este prevaleça contra o apetite particular de cada um, para que não suceda que, assim como hoje vemos a muitos de vós tão diminuídos, vos venhais a consumir de todo. Não vos bastam tantos inimigos de fora e tantos perseguidores tão astutos e pertinazes, quantos são os pescadores, que nem de dia nem de noite deixam de vos pôr em cerco e fazer guerra por tantos modos? Não vedes que contra vós se emalham e entralham as redes; contra vós se tecem as nassas; contra vós se torcem as linhas; contra vós se dobram e farpam os anzóis; contra vós as fisgas e os arpões? Não vedes que contra vós até as canas são lanças e as cortiças armas ofensivas? Não vos basta, pois, que tenhais tantos e tão armados inimigos de fora, senão que também vós de vossas portas adentro o haveis de ser mais cruéis, perseguindo-vos com urna guerra mais que civil, e comendo-vos uns aos outros? Cesse, cesse já, irmãos peixes, e tenha fim algum dia esta tão perniciosa discórdia; e pois vos chamei e sois irmãos, lembrai-vos das obrigações deste nome. Não estáveis vós muito quietos, muito pacíficos e muito amigos todos, grandes e pequenos, quando vos pregava Santo António? Pois continuai assim e sereis felizes.
Dir-me-eis (como também dizem os homens) que não tendes outro modo de vos sustentar. E de que se sustentam entre vós muitos que não comem os outros? O mar é muito largo, muito fértil, muito abundante, e só com o que bota às praias pode sustentar grande parte dos que vivem dentro nele. Comerem-se uns animais aos outros é voracidade e sevícia, e não estatuto da natureza, Os da terra e do ar, que hoje se comem, no princípio do mundo não se comiam, sendo assim conveniente e necessário para que as espécies de todos se multiplicassem. O mesmo foi (ainda mais claramente) depois do dilúvio, porque tendo escapado somente dois de cada espécie, mal se podiam conservar, se se comessem. E finalmente no tempo do mesmo dilúvio, em que todos viveram juntos dentro na Arca, o lobo estava vendo o cordeiro, o gavião a perdiz, o leão o gamo, e cada um aqueles em que se costuma cevar; e se acaso lá tiveram essa tentação, todos lhe resistiram e se acomodaram com a ração do paiol comum, que Noé lhe repartia. Pois se os animais dos outros elementos mais cálidos foram capazes desta temperança, por que o não serão os da água? Enfim, se eles em tantas ocasiões, pelo desejo natural da própria conservação e aumento, fizeram da necessidade virtude, fazei-o vós também; ou fazei a virtude sem necessidade, e será maior virtude.
Outra coisa muito geral, que não tanto me desedifica, quanto me lastima, em muitos de vós, é aquela tão notável ignorância e cegueira que em todas as viagens experimentam os que navegam para estas partes. Toma um homem do mar um anzol, ata-lhe um pedaço de pano cortado e aberto em duas ou três pontas, lança-o por um cabo delgado até tocar na água, e em o vendo o peixe, arremete cego a ele e fica preso e boqueando, até que assim suspenso no ar, ou lançado no convés, acaba de morrer. Pode haver maior ignorância e mais rematada cegueira que esta? Enganados por um retalho de pano, perder a vida! Dir-me-eis que o mesmo fazem os homens. Não vo-lo nego. Dá um exército batalha contra outro exército, metem-se os homens pelas pontas dos piques, dos chuços e das espadas, e por quê? Porque houve quem os engodou, e lhe fez isca com dois retalhos de pano. A vaidade, entre os vícios, é o pescador mais astuto e que mais facilmente engana os homens. E que faz a vaidade? Põe por isca nas pontas desses piques, desses chuços e dessas espadas dois retalhos de pano, ou branco, que se chama hábito de Malta, ou verde, que se chama de Avis, ou vermelho, que se chama de Cristo e de Santiago; e os homens, por chegarem a passar esse retalho de pano ao peito, não reparam em tragar e engolir o ferro. E depois disso, que sucede? O mesmo que a vós. O que engoliu o ferro, ou ali ou noutra ocasião, ficou morto e os mesmos retalhos de pano tornaram outra vez ao anzol para pescar outros. Por este exemplo vos concedo, peixes, que os homens fazem o mesmo que vós, posto que me parece que não foi este o fundamento da vossa resposta ou escusa, porque cá no Maranhão, ainda que se derrame tanto sangue, não há exércitos nem esta ambição de hábitos.
Mas nem por isso vos negarei que também cá se deixam pescar os homens pelo mesmo engano, menos honra da e mais ignorantemente. Quem pesca as vidas a todos os homens do Maranhão, e com quê? Um homem do mar com uns retalhos de pano. Vem um mestre de navio de Portugal com quatro varreduras das lojas, com quatro panos e quatro sedas, que já se lhe passou a era e não tem gasto. E que faz? Isca com aqueles trapos aos moradores da nossa terra; dá-lhe uma sacadela e dá-lhe outra, com que cada vez lhe sobe mais o preço; e os bonitos, ou os que o querem parecer, todos esfaimados aos trapos; e ali ficam engasgados e presos, com dívidas de um ano para outro ano e de uma safra para outra safra, e lá vai a vida. Isto não é encarecimento. Todos a trabalhar toda a vida, ou na roça ou na cana, ou no engenho ou no tabacal; e este trabalho de toda a vida, quem o leva? Não o levam os coches, nem as liteiras, nem os cavalos, nem os escudeiros, nem os pajens, nem os lacaios, nem as tapeçarias, nem as pinturas, nem as baixelas, nem as jóias. Pois em que se vai e despende toda a vida? No triste farrapo com que saem à rua. E para isso se matam todo o ano!
Não é isto, meus peixes, grande loucura dos homens com que vos escusais? Claro está que sim; nem vós o podeis negar. Pois se é grande loucura esperdiçar a vida por dois retalhos de pano quem tem obrigação de se vestir; vós, a quem Deus vestiu do pé até à cabeça, ou de peles de tão vistosas e apropriadas cores, ou de escamas prateadas e douradas, vestidos que nunca se rompem nem gastam com o tempo, nem se variam ou podem variar com as modas, não é maior ignorância e maior cegueira deixares-vos enganar, ou deixares-vos tomar pelo beiço com duas tirinhas de pano? Vede o vosso Santo António, que pouco o pôde enganar o mundo com essas vaidades. Sendo moço e nobre, deixou as galas de que aquela idade tanto se preza, trocou-as por uma loba de sarja e uma correia de cónego regrante; e depois que se viu assim vestido, parecendo-lhe que ainda era muito custosa aquela mortalha, trocou a sarja pelo burel e a correia pela corda. Com aquela corda e com aquele pano pescou ele muitos, e só estes se não enganaram e foram sisudos.
(1) «Tem cuidado, não caias nas mãos de um mais potente, quando vais em perseguição de um outro.»
(2) «O ladrão do menor acaba por ser vítima do maior.»
padre antónio vieira
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