14 outubro 2007

papeis selvagens




4

Vi morrer o sol. o centro redondo e os longos raios que, rapidamente se enroscaram.

Saí, caminhei sobre latas, pedras e tartarugas.
No prado, as violetas rodearam-me; os ramos sombrios e azuis.

A meu lado, brotou um ser, do sexo feminino, de quatro ou cinco anos, rosto redondo, escuro, cabelo curto.

Falou numa língua que eu nunca tinha ouvido; mas que entendi.
Perguntou-me se eu realmente existia, se tinha filhas.

Outras, idênticas, surgiram de muitos lados; de entre os ramos caíu, diante de mim, uma paisagem cheia de meninas.

Olhei para o céu, não havia uma estrela, não havia nada.

Recordei antigas fórmulas, disse-as de diversos modos, trocando as sílabas; nada resultou.
Não sei quanto tempo passou, como pude saltar das violetas.
Afastei-me em desespero, entrei, fechei as portas.

Mas já a casa tinha começado a soçobrar.
E ainda hoje, ela baloiça como um barco.





marosa di giorgio
poemas
tradução de rosa alice branco




11 outubro 2007

assim que souber




assim que souber onde se escondem as anquilosadas carmencitas
dos centenários flamencos sapateados em barulhentos metais e
roucas vozes
os d. josés iludidos depois desiludidos os toureiros organizados
em cooperativas da velha guarda atónita e remendada
os rapazes dos coletes brilhantes apertados e vermelhos do sangue da besta

assim que souber se vale a pena saber saberei o que fazer
conhecerei o meu destino pintalgado nas paredes do meu cubículo
as rosas que me adornam os pés serão regadas de cristais líquidos
retirarei desses olhos esmaecidos ao sol-pôr luzentes como gatos escondidos
nas noites
as opacidades que de longe te transmitem a voz dos esquecidos

terei nos meus braços o teu doce coração livre dos tormentos arroxeados
passarei as minhas mãos sobre os teus cabelos de pálido querubim
acariciarei as tuas doces orelhas de centauro solitário e sonhador
alisarei o teu pelo de ricos brocados renascentistas com cores de rubens
calçar-te-ei de garbosas botas voadoras

poderás de novo correr os bosques molhar o teu corpo nas espumas estelares
semear alegorias nos livros por editar em prateleiras cinematográficas
ambos poderemos ser uma coisa e ser outra e ser tudo e sobretudo
sermos o que somos


m.f.s.






09 outubro 2007

caixas e sacos




Quanto maior é a caixa, mais leva.
As caixas vazias levam tanto como as cabeças vazias.
Muitas caixinhas vazias que se deitam numa grande caixa vazia, en-
chem-na toda.
Uma caixa meio-vazia diz: "Ponham-me mais."
Uma caixa bastante grande pode conter o mundo.
Os elefantes precisam de grandes caixas para guardar uma dúzia de
lenços de assoar para elefantes.
As pulgas dobram os seus lencinhos e arrumam-nos com cuidado
em caixas de lenços para pulgas.
Os sacos encostam-se uns aos outros e as caixas levantam-se inde-
pendentes.
As caixas são quadradas e têm cantos, ou então são redondas e têm
círculos.
Pode empilhar-se caixa sobre caixa até que tudo venha abaixo.
Empilhe caixa sobre caixa, e a caixa do fundo dirá: "Queira notar
que tudo repousa sobre mim."
Empilhe caixa sobre mim, e a que está em cima perguntará: "É
capaz de me dizer qual de nós cai para mais longe quando
caímos todas?"
As pessoas-caixas vão à procura de caixas e as pessoas-sacos à pro-
cura de sacos.





carl sandburg
e.u.a. 1878-1967
trad. alexandre o'neill
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001




07 outubro 2007

das memórias de adriano





E foi por esta época
que principiei a sentir-me deus.

Não faças confusão: era sempre, era mais que nunca
aquele mesmo homem alimentado de frutos
e de animais da terra,
restituindo ao solo os resíduos dos seus alimentos,
sacrificando ao sono a cada revolução dos astros,
inquieto até à loucura
quando lhe faltava por demasiado tempo
a cálida presença do amor.

A minha força,
a minha agilidade física ou mental
eram cuidadosamente mantidas por uma ginástica
toda humana.

Mas que dizer senão que tudo isso era divinamente
vivido?
As ousadas experiências da juventude
tinham acabado,
assim como a sofreguidão de gozar o tempo que passa.

Aos quarenta e quatro anos
sentia-me sem impaciência,
seguro de mim,
tão perfeito
quanto a minha natureza me permitia,
eterno.

E compreende bem que se trata,
neste caso,
de uma concepção do intelecto:
os delírios, se este nome se lhes pode dar,
vieram mais tarde.

Era deus
simplesmente porque era homem.





marguerite yourcenar
memórias de adriano
trad. maria lamas
ulisseia
1974





06 outubro 2007

da indiferença de Deus





“Durante anos esforçamo-nos por aceitar a ideia de que as outras pessoas não se importam absolutamente nada connosco; depois, certo dia, com um pavor crescente, descobrimos que é o próprio Deus que se não interessa por nós: e, o que é pior, descobrimos que lhe é totalmente indiferente que sejamos uma coisa ou outra: bons ou maus.”












lawrence durrell

justine

(o quarteto de alexandria)

trad. daniel gonçalves

ulisseia

1992








05 outubro 2007

folhas de hipno


222


Minha raposa,
pousa a tua cabeça sobre os meus joelhos.

Eu não sou feliz e no entanto tu bastas.
Castiçal ou meteoro,
já não há na terra coração grande ou futuro.

Os passos do crepúsculo revelam o teu murmúrio,
albergue de hortelã e alecrim,
confidência trocada entre as sardas do Outono
e o teu vestido ligeiro.

És a alma da montanha com profundos flancos,
com rochas mudas por trás de lábios de argila.

Que estremeçam as tuas narinas.
Que a tua mão feche o caminho
e aproxime a cortina das árvores.

Minha raposa,
na presença dos dois astros,
o gelo e vento,
deposito em ti todas as esperanças desmoronadas,
por um cardo
que vença a solidão rapace.





rené char
furor e mistério
trad. margarida vale de gato
relógio de água
2000



04 outubro 2007

da voz das coisas





Só a rajada de vento
dá o som lírico
às pás do moinho

Somente as coisas tocadas
pelo amor das outras
têm voz.





fiama hasse pais brandão
as fábulas
edições quasi
2002





02 outubro 2007

mudemos de casa; porque é preciso





Mudemos de casa; porque é preciso
arrumar as dores de outra maneira,
certificarmo-nos da existência do corpo
em novos lençóis, voltar a ter ilusões,
lugar propício para a curiosidade
de alguns que nos fazem acreditar
que a vida é um amplo anfiteatro
para as mãos.








jorge gomes miranda
portadas abertas
anos 90 e agora
edições quasi
2001




27 setembro 2007

primitivos




Ouvi falar de gente civilizada,
os matrimónios temperados por conversas, elegantes e
honestos, racionais. Mas tu e eu somos
selvagens. Tu chegas com um saco,
entregas-mo em silêncio.
Sei logo que é Porco Moo Shu pelo cheiro
e percebo a mensagem: dei-te imenso
prazer ontem à noite. Sentamo-nos
tranquilamente, lado a lado, para comer,
os crepes compridos suspensos a entornar,
o molho fragrante a escorrer,
e de esguelha olhamos um para o outro, sem palavras,
os cantos dos olhos limpos como pontas de lança
pousadas no parapeito para mostrar
que aqui um amigo se senta com um amigo.




sharon olds
satanás diz
trad, margarida vale de gato
antígona
2004




26 setembro 2007

andre breton e paul éluard /a concepção

Sigamos o Boulevard Bonne-Nouvelle
e apresentemo-lo.

A concepção
Uma vida compreendida entre duas outras vidas e, como habitualmente, passo de noite sem estrela, o ventre longo da mulher sobe, é uma pedra e a única visível, a única verdadeira, na cascata. Tudo o que tanta vez se anula, anula-se mais urna vez, tudo o que o longo ventre da mulher tanta vez realiza, para conservar o seu prazer mais puro que o frio de se sentir ausente de si mesma, se realiza mais uma vez. Até não se ouvir a respiração de animal bravio muito perto de si. Não é a dádiva que se gostaria de fazer de uma única moeda deste tesouro desenterrado que não é a vida que se gostaria de ter recebido pois assim como o longo ventre da mulher é o seu ventre, assim sonho, o único sonho é o de não ter nascido. A noite habitual é de tal modo bastante. A ignorância tão bem encontra nela o seu interesse. Não interrompe o amor que não se deita nem se ergue. Bem se sopraram os carvões, bem se fitaram na face até ao ponto de se perderem de vista. Ainda há pouco, ainda há pouco... Não éramos cada um de nós senão nós.
O homem não se reproduz numa grande gargalhada. O homem não se reproduz. Nunca ele povoou o seu leito senão com os ardentes olhos do seu amor. Julga o problema resolvido, e é tudo. O problema raramente se resolve. Os trapeiros têm filhos que são na verdade filhos de reis, filhos que, ao abrirem os olhos, confundem o diadema de suas mães com as folhagens maravilhosas das cenouras. Víboras nascem em qualquer lado. Os chefes de família em nada acreditam. Só se corta a cabeça ao desejo. Deixem passar, diz o condutor do velho autocarro, o condutor que se parecerá contigo, que se parecerá comigo sem piedade pelos cavalos com cabeça de mar de óleo. E, como é muito delicado, acrescenta, deixem passar, se fazem favor. O autocarro fantasma está já longe.
Seria necessário continuar o mesmo, sempre, com este desconcertante passo de ginasta, com este porte de cabeça ridículo. Mas eis que a estátua cai na poeira, que se recusa a manter o seu nome. Felizmente nada sabes e quase não olhas para o lado da imagem mura! que apresenta Mazeppa, só, perdido, na estepe. Foi a partir de ontem que me pareceu que ele se mexia. Esta sala é absurda, tenhamos cautela. Existem aqui paredes que não atravessarás, paredes que cobrirei de injúrias e de ameaças, paredes que para sempre são cor de sangue envelhecido, de sangue derramado.




andre breton e paul éluard
a imaculada concepção
tradução franco de sousa
estúdios cor
1972



25 setembro 2007

estar lá






Estar lá
na espessura do mundo
as mãos abertas
o coração em vigília


Estar lá
sem outro desejo
que uma nascente
sem outro desígnio
que o amor.










jean-luc pouliquen
apeadeiro
revista de atitudes literárias
nr. 2 primavera 2002
tradução hugette rotheval e inês lourenço
edições quasi
2002









24 setembro 2007

claude lévi-strauss / olhar ouvir ler




XX
Descrevi noutro lado as circunstâncias em que conheci André Breton, no barco que nos levava a Martinica: longa viagem em que enganávamos a maçada e o desconforto discutindo sobre a natureza da obra de arte, primeiro por escrito, depois em conversa.
Para começar, eu tinha dado um texto a apreciar a André Breton. Ele respondeu-lhe e eu guardei a sua carta preciosamente. O acaso quis que, muito mais tarde, arquivando papéis velhos, eu tivesse encontrado o meu texto: Breton, provavelmente, tinha-mo devolvido.
Ei-lo seguido do texto inédito de Andre Breton. Agradeço a Madame Elisa Breton e Madame Aube Elleouet a autorização de publicação
.
Nota sobre as relações
da obra de arte e do documento,
escrita e entregue a André Breton
a bordo do Capitaine Paul Lemerle
em Março de 1941
No Manifesto do Surrealismo A. B. definiu a criação artística como a actividade absolutamente espontânea do espírito; tal actividade pode ser concebida como resultante de um treino sistemático e da aplicação metódica de um certo número de receitas: todavia a obra de arte define-se - e define-se exclusivamente — pelo seu carácter de liberdade total. Parece que neste ponto A. B. modificou sensivelmente a sua atitude (em A Situação Surrealista do Objecto). No entanto a relação que existe, segundo ele, entre a obra de arte e o documento não é perfeitamente clara. Se é evidente que toda a obra de arte é um documento, poderá admitir-se, como o implicaria uma interpretação radical da sua lese, que todo o documento seja, por isso mesmo, uma obra de arte? Partindo da posição do Manifesto, três interpretações’ são possíveis:
1) O valor estético da obra depende exclusivamente da sua maior ou menor espontaneidade, sendo a obra de arte mais válida (enquanto tal) definida pela liberdade absoluta da sua produção. Se qualquer pessoa, convenientemente treinada, é susceptível de atingir esta completa liberdade de expressão, então a produção poética está aberta a toda a gente. O valor documental da obra confunde-se com o seu valor estético; o melhor documento (avaliado como tal em função do grau de espontaneidade criadora) é também o melhor poema; de direito se não de facto, o melhor poema pode ser não apenas compreendido mas produzido por qualquer pessoa. Podemos conceber uma humanidade na qual lodos os membros, exercitados por uma espécie de método catártico, seriam poetas.
Tal interpretação aboliria o conjunto de privilégios electivos englobados até ao presente sob a designação de talento; e se ela não nega o papel do esforço e do trabalho na criação artística, pelo menos desloca-os para um estádio anterior ao da criação propriamente dita: o da pesquisa difícil e da aplicação dos métodos para suscitar um pensamento livre.
2) Mantendo-se a interpretação precedente, verifica-se mesmo assim, a posteriori, que os documentos provenientes de um grande número de indivíduos, se, do ponto de vista documental, se podem considerar como equivalentes (quer dizer; resultantes de actividades mentais igualmente autênticas e espontâneas), não o são no entanto do ponto de vista artístico, já que alguns deles proporcionam uma fruição e outros não. Como continuamos a definir a obra de arte como um documento (produto bruto da actividade do espírito), admitiremos a distinção sem procurar explicá-la (e sem ter a possibilidade dialéctica de o fazer). Constataremos a existência de indivíduos poetas e de outros que o não são, apesar da identidade completa, das condições das suas respectivas produções. Toda a obra de arte continua a ser um documento, mas deverá distinguir-se, de entre esses documentos, os que são também obras de arte dos que são apenas documentos. Mas como uns e outros permanecem definidos como produtos brutos, essa distinção, impondo-se a posteriori, será considerada em si própria como um dado primitivo, escapando, pela sua natureza, a qualquer interpretação. A especificidade da obra de arte será reconhecida sem que seja possível detectá-la. Constituirá um «mistério».
3) Finalmente, uma terceira interpretação, mantendo o princípio fundamental do carácter irredutivelmente irracional e espontâneo da criação artística, distingue entre o documento, produto bruto da actividade mental, e a obra de arte que consiste sempre numa elaboração secundária. É evidente, no entanto, que esta elaboração não pode ser produto do pensamento racional e crítico; tal eventualidade deve ser radicalmente excluída. Mas poderá supor-se que o pensamento espontâneo e irracional pode, em certas condições, e em alguns indivíduos, tomar consciência de si próprio e tornar-se verdadeiramente reflexivo, estando entendido que esta reflexão se exerce segundo normas que lhe são próprias, e tão impermeáveis à análise racional como a matéria à qual se aplicam. Esta «tomada de consciência irracional» implica uma certa elaboração do dado bruto, exprime-se através da escolha, da eleição, da exclusão, da regulamentação em função de estruturas imperativas. Embora toda a obra de arte continue a ser um documento, ultrapassa o plano documental, não apenas pela qualidade da expressão bruta, mas também pelo valor da elaboração secundária que, de resto, apenas se chama «secundária» em relação aos automatismos de base mas que, em relação ao pensamento crítico e racional, apresenta a mesma característica de irredutibilidade e de primitividade que esses mesmos automatismos.
A primeira interpretação não está de acordo com os factos; a segunda subtrai o problema da criação artística à análise teórica. Pelo contrário, a terceira é a única que parece susceptível de evitar certas confusões, às quais o surrealismo nem sempre parece ter escapado, entre o que é esteticamente válido e o que o não é, entre o que o é mais e o que o é menos. Qualquer documento não é necessariamente uma obra de arte, e tudo o que constitui uma ruptura pode ser igualmente válido para o psicólogo ou para o militante, mas não para o poeta, mesmo se o poeta também for um militante. A obra de um débil mental tem um interesse documental tão grande como a de Lautréamont, pode ter uma eficácia polémica superior, mas uma é uma obra de arte e a outra não, e é preciso ter o meio dialéctico de dar conta da diferença, e também da possibilidade de Picasso ser melhor pintor do que Broque, de Apoilinaire ser um grande poeta e Roussel não, de Salvador Dali ser um grande pintor e ao mesmo tempo um escritor detestável. Se estes juízos apenas são dados a título de exemplo, juízos deste teor, ainda que talvez diferentes ou opostos, não deviam deixar de constituir o termo absolutamente necessário da dialéctica do poeta e do teórico.
Já que as condições fundamentais da produção do documento e da obra de arte foram reconhecidas como idênticas, estas distinções essenciais só podem ser adquiridas deslocando a análise da produção para o produto e do autor para a obra.
Relendo hoje esta nota manuscrita, a inabilidade do pensamento constrange-me, tal como a deselegância da expressão. Desculpa fraca: é evidente que escrevi de jacto (apenas duas palavras rasuradas). Teria preferido esquecê-lo. Mas seria uma injustiça para o importante texto que Breton me enviou como resposta. Sem o meu, o seu tema seria incompreensível.
No manuscrito de Breton, cuidadosas rasuras tornam indecifráveis uma dezena de palavras ou membros de frases, substituídos por uma nova redacção nas entrelinhas onde surgem também alguns acrescentos. As correcções feitas às últimas linhas, muito emendadas, não permitem avaliar se Breton, com menos pressa de acabar, teria optado por uma construção gramatical ou se deliberadamente a rejeitou.
Resposta de André Breton
A contradição fundamental que você sublinha não me escapa: ela permanece, apesar dos meus esforços e de mais alguns para a reduzir (mas não me preocupa nem poderia confundir-me porque sei que nela reside o segredo do movimento para a frente que permitiu ao surrealismo durar). Claro que, naturalmente, as minhas posições variaram sensivelmente desde o 1° manifesto. No interior de textos-programa deste tipo, que não comportam a expressão de nenhuma reserva, de nenhuma dúvida, cujo carácter essencialmente agressivo exclui toda a casta de subtilezas, é óbvio que o meu pensamento tende a adquirir um tom extremamente brutal, mesmo simplista, que não lhe conheço interiormente.
Esta contradição que o choca é, creio, a mesma que Caillois, como eu lhe dizia, rebateu de um modo tão severo. Tentei explicar-me num texto intitulado «A beleza será convulsiva» (Minotaure n°5) e retomado no início de L’Amour fou. Com efeito, cedo alternadamente - e afinal por que não? não sou o único — a dois apelos muito distintos: o primeiro leva-me a procurar na obra de arte uma fruição (é a única palavra exacta, você emprega-a, já que a análise deste sentimento em mim não me dá senão elementos para-eróticos); o segundo, que se manifesta independentemente ou não do primeiro, leva-me a interpretá-la em função da necessidade geral de conhecimento. Estas duas tentações, que distingo no papel, nem sempre são separáveis (tendem a confundir-se também em muitas passagens de Uma época no Inferno).
Escusado será dizer que, se qualquer obra de arte pode ser considerada sob o prisma do documento, a recíproca não poderia de forma nenhuma sustentar-se.
Examinando sucessivamente as suas três interpretações, não me sinto nada embaraçado em lhe dizer que apenas me sinto absolutamente próximo da última. No entanto, algumas palavras a propósito das precedentes:
1) Não estou seguro de que o valor estético da obra dependa da sua maior ou menor espontaneidade. Eu tinha muito mais em vista a sua autenticidade do que a sua beleza, e a definição de 1924 testemunha-o: «Ditame do pensamento.., fora de qualquer preocupação estética ou moral. » Não lhe pode passar despercebido que a omissão deste último membro da frase pudesse ter privado o autor de textos automáticos de uma parte da sua liberdade: seria preciso começar por defendê-lo de qualquer juízo deste tipo se quiséssemos evitar que ele fosse por isso constrangido a priori e se comportasse de acordo com isso. Infelizmente isto não foi completamente evitado (mínimo de organização do texto automático em poema: deplorei-o na minha carta a Rolland de Reneville publicada em Points du Jour mas é fácil ter em conta esta preocupação e de a retirar da obra considerada).
2) Não estou tão seguro como você da enorme diferença qualitativa que existe entre os diversos textos completamente espontâneos que se podem obter. Sempre me pareceu que o principal elemento de mediocridade susceptível de intervir era devido à impossibilidade em que se encontram muitas pessoas de se colocarem nas condições requeridas para a experiência. Contentam-se em registar um discurso descosido, onde se iludem com os despropósitos, o absurdo, mas podemos constatar por sinais facilmente discerníveis, que não se expuseram verdadeiramente, o que basta para afastar o seu pretenso testemunho. — Quando afirmo que não estou tão seguro disso como você é sobretudo porque ignoro como é que a ipseidade (comum a todos os homens) se encontra repartida (igualmente ou, se o está desigualmente em que medida?) entre os homens. Só uma investigação de carácter sistemático e que deixe provisoriamente os artistas de lado nos poderia esclarecer a este propósito. A hierarquização das obras surrealistas não me interessa praticamente nada (ao contrário do que Aragon afirmava em tempos: «Se escreverem de maneira puramente surrealista algumas imbecilidades tristes, serão sempre imbecilidades tristes»); o mesmo se passa, como o dei a entender, com a hierarquização das obras românticas ou simbolistas. A minha classificação destas últimas obras diferiria radicalmente da que é aceite e, sobretudo, tenho a objectar a estas classificações o facto de nos fazerem perder de vista o significado profundo, histórico desses movimentos.
3) Será que a obra de arte exige sempre esta elaboração secundária? Sim, sem dúvida, mas somente no sentido muito lato em que você o entende: «tomada de consciência irracional», e mesmo assim, em que nível de consciência se opera essa elaboração? Em todo o caso, estaríamos apenas no pré-consciente. As produções de Hélène Smith em estado de transe não poderão ser tomadas como obras de arte? E se chegássemos a demonstrar que certos poemas de Rimbaud são pura e simplesmente sonhos acordados, você apreciá-los-ia menos? Relegá-los-ia para a gaveta dos «documentos»? A distinção continua a parecer-me arbitrária. Torna-se, a meu ver, especiosa, quando você opõe Apollinaire poeta a Roussel não-poeta ou Dali pintor a Dali escritor. Tem a certeza de que o primeiro destes juízos não é demasiado tradicionalista, de que não reproduz demasiado a «velharia poética»? Não considero Dali um grande «pintor» e isto pela excelente razão de que a sua técnica é manifestamente regressiva. O que me interessa nele é o homem e a sua interpretação poética do mundo. Por isso, não posso associar-me à sua conclusão (mas isto você já o sabia). Há outras razões mais imperiosas que argumentam em favor da sua não aceitação da minha parte. Essas razões, insisto, são de ordem prática (adesão ao materialismo histórico). É verdade que o alijar da responsabilidade psicológica é necessário à obtenção da atitude inicial de que tudo depende, mas é a responsabilidade psicológica e moral mais profunda: identificação progressiva do eu consciente com o conjunto das suas concreções (está muito mal dito) considerado como o teatro no qual ele é chamado a produzir-se e reproduzir-se, tendência para a síntese do princípio do prazer com o princípio da realidade (desculpe por ficar uma vez mais no limiar do meu pensamento sobre este assunto); concordância a todo o preço do comportamento extra-artístico e da obra: anti-valerismo.





claude lévi-strauss
olhar ouvir ler
trad. teresa meneses
edições asa
1995




20 setembro 2007

flor de sal




não chames por mim
levo nos olhos queimados
o fim dos desertos

não te posso escutar
na branca solidão dos dias
porque até no meu silêncio
te matei

não chames por mim
levo nos passos
o veneno da Lua

a espuma do tempo
sai-me das mãos vazias
e apaga o trilho
por onde as vozes
podem chegar

não chames por mim
levo o peito tão rasgado
de ausência!

e no meu coração
só há
uma vermelha flor de sal
que já ninguém
pode tocar




gil t. sousa
poemas
2001