02 abril 2007

shakespeare





Shakespeare criou o mundo em sete dias.

No primeiro dia fez o céu, as montanhas e os abismos da alma.
No segundo dia fez os rios, os mares, os oceanos
E os restantes sentimentos —
Que deu a Hamlet, a Júlio César, a António, a Cleópatra, e a Ofélia,
A Otelo e a outros,
Para que fossem seus donos, eles e os seus descendentes,
Pelos séculos dos séculos.
No terceiro dia juntou todos os homens
E ensinou-lhes os sabores:
O sabor do ciúme, da glória e assim por diante,
Até esgotar todos os sabores.

Por esse tempo chegaram também uns indivíduos
Que se tinham atrasado.
O criador afagou-lhes compassivo a cabeça,
E disse que só lhes restava
Tornarem-se críticos literários
E contestarem a sua obra.
O quarto e o quinto dia reservou-os para o riso.
Soltou os palhaços
Para darem cambalhotas,
E deixou os reis, os imperadores
E outros desgraçados divertirem-se.
Ao sexto dia resolveu alguns problemas administrativos:
Forjou uma tempestade,
E ensinou ao rei Lear
O modo de usar uma coroa de palha.
Com os restos da criação do mundo
Fez o Ricardo III.
Ao sétimo dia viu se havia algo mais a fazer.
Os directores de teatro já tinham coberto a terra de cartazes,
E Shakespeare concluiu que depois de tanto esforço
Também ele merecia assistir ao espectáculo.
Mas antes disso, esfalfado de todo,
Foi morrer um pouco.








marin sorescu
simetria
tradução colectiva revista, completada e apresentada
por egito gonçalves
poetas em Mateus
quetzal
1997








31 março 2007

vertigem





a absurda vertigem
das luas mais tardias

do seu duro espelhar
no lado morto dos rios

do demorado subir
da loucura

do desaguar das veias
no coração deserto

dos vivos
dos que caminham

sobre o sangue
e gritam

rasgam a seda do céu
com a faca do desejo

até choverem os anjos
no escuro charco do medo








gil t. sousa
poemas
2001








30 março 2007

primeiro poema do diário flagrante





Na ponta da minha caneta vem-me uma insónia
e todos os mares rasteiros
e tudo que não vem com a tinta
festas de luto.
Pela ponta da minha caneta a precocidade dos céus dramáticos
que me interrogam.
Mas meu amor, eu não te interrogo
nem te chamo
porquanto nasço contigo num mesmo berço:
os poemas que queimei no fogão.
Dos poemas fiquei eu que não me fui a queimar.
Porque, tu sabe-lo, no sangue não há leilões
e jamais deixarias de ser impossível
num silêncio marinho como o do sangue.


E pela noite
uma estátua desce do pedestal para espreitar nos bares,
e pela noite
(já não quero mais noite nem mais dia)
conta milhões de vidas sobre mim
e quero-me lá vidro escaldante
criando uma superfície
onde os teus passos fiquem marcados
como problemas que do meu corpo
e em sono
são todos o silêncio de uma praia.

Faço uma bola negra para me divertir.
Justamente uma bola que não faça conclusões.
Prego alfinetes no meu tapete
e deito-me no meio.
Depois
é esperar-me a rolar
despir o sobretudo e sair.
Atravessar o rio
e parar junto de um sapato que está na outra margem.
Desse sapato farei mil coisas:
vidros,
casas arruinadas,
animais sem vida,
infinitos de avenida
e líquidos de sabores variáveis
(os alfinetes do meu tapete perguntam-me se amo)
e os meus cabelos ficam alheados
e as minhas mãos são a estrada de tanta resposta sem fito.
Cama de mim mesmo não obstante
nunca me quis medir
salvo em fumo,
em horas de insónia
ora em catorze horas de sono funâmbulo.

…………………………………………………………………………
Esta aparência de calma são gases
e fico sem saber se estou em casa se na rua.

São para mim as pancadas numa porta algures em Paris.
São umas tantas esquinas
correrias e gritos
brincalhonas e alcoólicas umas tantas algibeiras
pingando nesgas de noite.
Faço rodas com os gatos numa rua gelada
e os ponteiros do relógio
audaciosos recolhem-se junto da maquinaria.
Emocionados todos os meus objectos
falam de mares distantes
como me falava o pequeno buda de marfim
que aguardava o dia de leilão para ser vendido…
Era todo um mundo que se projectava atrás dos meus passos,
um equívoco de que falavam,
de telhado para telhado,
todas as cidades.
E no espaço
um campo de meteoros
muitas léguas para além dos cactos onde me pico por desdém
assim como uma sede que me ataca durante uma conversa telefónica.
Depois,
um diário flagrante que deixo esquecido num túmulo.








fernando alves dos santos
diário flagrante [poesia]
edição perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
2005






29 março 2007

se tudo fosse só teu (uma despedida)





Por quanto em mim
De ti havia
Que a alma me enganava
Em nova vida
Dei a sombra
Que me queimava
E era minha,
Mas mesmo assim
Não me seguia.


De tanto querer
Achei em mim
A pessoa querida
Que eras tu,
E assim esqueci
Por completo
Quem era
Ao certo
Quem te queria.

Era eu,
Fui sempre eu
Que tu,
A ver comigo,
Que com o meu amor,
Nada eras
E nada tinhas.

Por muito ter amado
Em tão pouca coisa
Percebi quanto doía
O que também me era dado:
Amar sem querer mais nada
E deixar-me ficar
Só por ti.

Em vez de também me dar
Para teu mal
E para meu,
Calava-te,
Amava-te,
E mais não fiz
Senão isto,
Que tu um dia dirás
Se é verdade ou não,
Calava-me, amava-te:
Recebia-me.

E ia deitando tudo fora,
Tudo o que foi teu
E me foste dando,
À medida que mo davas.
Como havia de guardar
O que não me pertencia?

Fui recebendo.
Depois dei por mim
E sabes que mais?
Morria.
Alguém morria.

Por tudo o que uma vez foi teu
E teu, apenas,
Amor,
Alguém morria
Mas era alguém

Que não era eu.








miguel esteves cardoso
apeadeiro
revista de atitudes literárias
primavera de 2002






28 março 2007

arte do regresso


13.



Tudo o que aconteceu no passado
está agora presente como uma fogueira.
A tua ausência permanece.
A árvore oscila entre o mar e a terra,
os ramos quebram-se nesse vento funesto,
vejo que passas com as mãos a arder
e a brancura intensa a cobrir-te a cabeça.
O rosto é ainda o último refúgio.







amadeu baptista
arte do regresso
campo das letras
1999


27 março 2007

estranho reino




um sonho desolado e preciso
real e irreal como a vida
e uma misteriosa encenação
inquietantes ilustrações de novela gótica
ou difusas prisões de Piranesi,
e por entre ruinosos arcos, derrotados muros,
os rostos de alguns desaparecidos



palavras imprecisas – sonho dentro do sonho –
e o olhar intenso de uma mulher
salva do terrível estrago dos anos.

a sensação de estar num inferno gelado
e, de repente, ao despertar a luz do sol,
inesperada e brilhante luz de janeiro


com toda essa matéria derrubada
e o repetido rumor do relógio da morte
construí este estranho reino:
espelhos rotos donde se reflecte o sol









juan luis panero
el pais, babelia
trad. gs
5 de janeiro de 2002


rosas




andy warhol





hoje roubei todas as rosas dos jardins
e cheguei ao pé de ti
de mãos vazias.







eugénio de andrade
poema para o meu amor doente
as mãos e os frutos
1948






26 março 2007

regresso de passeio





Assassinado pelo céu,
entre as formas que vão até à serpente
e as formas que procuram o cristal,
deixarei crescer os meus cabelos.


Com a árvore de mãos cortadas que não canta
e o menino com seu branco rosto de ovo.

Com os animaizinhos de cabeça partida
e a água andrajosa dos pés secos.

Com tudo o que tem fadiga surda-muda
e borboleta afogada no tinteiro.

A tropeçar como o meu rosto diferente de cada dia.
Assassinado pelo céu!








federico garcia lorca
nova iorque num poeta
trad. antónio moura
hiena editora
1995


25 março 2007

o pai




1

Um pai morto talvez tivesse
Sido um pai melhor. Melhor ainda
É um pai nado-morto.
Volta sempre a crescer erva sobre a fronteira.
Tem de ser arrancada a erva
Sempre sempre a erva que cresce sobre a fronteira.


2

Gostava que o meu pai tivesse sido um tubarão
E despedaçado quarenta pescadores de baleias
(E eu aprendido a nadar no seu sangue)
A minha mãe uma baleia azul o meu nome Lautréamont
Falecido em Paris
Incógnito em 1871









heiner müller
o anjo do desespero
trad. joão barrento
relógio d´ água
1997





book zapping #009 diários, kafka




1910


Os espectadores ficam de pedra quando o comboio passa.

«Se ele tiver sempre questões para me pôr.» O ô, solto da frase, voou como uma bola sobre o prado.

A sua seriedade mata-me. A cabeça no colarinho, os cabelos ordenados, imóveis, sobre o crânio, os músculos em baixo, nas faces, esticados no lugar devido...

A floresta ainda lá está? A floresta em boa parte ainda lá estava. Mas mal o meu olhar se afastou dez passos, eu desisti, de novo preso na conversa aborrecida.

Na floresta escura, no caminho ensopado, só me orientava pelo branco do seu colarinho.

Pedi em sonhos à bailarina Eduardowa que dançasse mais uma vez as czardas. Ela tinha uma larga fita de luz ou de sombra no meio do rosto, entre a orla inferior da testa e o meio do queixo. Veio precisamente naquele momento alguém com os repugnantes movimentos do intriguista inconsciente para lhe dizer que o comboio estava prestes a partir. Pela maneira como ela ouviu a informação, percebi horrorizado que ela não mais dançaria. «Sou uma mulher horrível, não sou?», perguntou. «Oh, não», disse eu, «isso não», e voltei-me para ir para qualquer lado. Antes, tinha-a interrogado sobre as muitas flores que ela trazia à cintura. «São de todos os príncipes da Europa», respondeu. Pensei que significado teria o facto de estas flores, que ela trazia frescas à cintura, terem sido oferecidas à bailarina Eduardowa por todos os príncipes da Europa.

A bailarina Eduardowa, amante da música, anda, quer de eléctrico, quer de outra maneira qualquer, sempre na companhia de dois violinistas que ela frequentemente manda tocar. Porque não há lei que proíba que se toque no eléctrico, se a música é boa, se agrada aos companheiros de viagem e se nada custa, ou seja, se depois não houver peditório. Na verdade, ao princípio é um pouco surpreendente, e durante uns momentos as pessoas acham um pouco deslocado. Mas em plena marcha, com forte corrente de ar e rua silenciosa, soa bem.

A bailarina Eduardowa não é tão bonita cá fora como no palco. As cores pálidas, as maçãs do rosto que esticam a pele de tal maneira que quase não há naquele rosto outro movimento mais forte, o grande nariz que parece elevar-se de uma cavidade, com o qual ninguém pode brincar — ver se a ponta é dura ou pegar nele levemente e puxá-lo de cá para lá e de lá para cá, ao mesmo tempo que se diz: «Mas agora vens comigo.» A figura larga com a cintura alta e saias com demasiadas pregas — a quem é que isto pode agradar —, ela parece-se com uma das minhas tias, senhora de certa idade, muitas tias de idade de muita gente têm este aspecto. Para estes defeitos, não se encontra porém na Eduardowa, cá fora, de facto nenhum substituto a não ser os pés, que são verdadeiramente bons, o que na verdade não é nada pára suscitar a admiração, o espanto ou mesmo o respeito. E assim vi tratarem muitas vezes a Eduardowa com uma indiferença que até os cavalheiros de maneiras muito correctas e usos mundanos não conseguiam esconder, se bem que o tentassem a todo o custo, perante uma bailarina tão famosa como não deixava de ser a Eduardowa.

A concha do meu ouvido sente-se fresca, áspera, fria, sumarenta como uma folha.

Escrevo isto levado, com toda a certeza, pelo desespero que me causa o meu corpo e o futuro deste corpo.
Quando o desespero se exprime tão categoricamente, se apresenta assim ligado ao seu próprio objecto, assim mantido à retaguarda como que por um soldado que cobre a retirada e que por isso se deixa despedaçar, isso não é o verdadeiro desespero. O verdadeiro desespero está constantemente a ultrapassar o seu alvo (com esta vírgula, verifica-se que a primeira frase estava certa).
Estás desesperado?
Sim? Tu estás desesperado?
Foges? Queres esconder-te?

Os escritores falam fedor.

As costureiras de roupa branca sob os aguaceiros,

Finalmente, depois de cinco meses da minha vida, durante os quais não consegui escrever nada que me satisfizesse, pelos quais nenhum poder me compensará, embora todos eles a tal fossem obrigados, lembrei-me de voltar a exprimir-me. Respondi sempre a este apelo; todas as vezes que de facto me interrogava, havia ainda qualquer coisa a fazer sair de mim, deste monte de palha que sou eu desde há cinco meses, e cujo destino parece ser deitarem-lhe fogo no Verão e extinguir-se mais rapidamente do que o pestanejar do espectador. Se ao menos isto me pudesse acontecer! E dez vezes deveria acontecer-me, porque nem sequer lamento essa época infeliz. O meu estado não é de infelicidade, mas também não é de felicidade, nem de indiferença, nem fraqueza, nem cansaço, nem outro interesse, mas então o que será? O facto de eu não saber está ligado à minha incapacidade de escrever. E esta penso que percebo, sem saber o porquê. É que todas as coisas de que eu me lembro não se me apresentam pela raiz, mas algures, pelo meio. Que alguém tente segurá-las, que alguém tente segurar a vergôntea e segurar-se a ela, à vergôntea que começou a crescer no meio da haste. Só poucos o conseguem, por exemplo, os saltimbancos japoneses, que sobem uma escada que não se apoia no solo mas nas plantas dos pés que um homem semideitado levanta, e que não se encosta a uma parede mas que apenas sobe para o ar. Eu não sou capaz, mesmo abstraindo o facto de a minha escada não ter à disposição os pés acima citados. E óbvio que isto não é tudo, e um tal pedido de informação não me dispõe a falar. Mas em cada dia pelo menos uma linha tem de me ser dirigida, tal como se dirige o telescópio para o cometa. E se eu um dia aparecer perante essa frase, atraído por essa frase, como por exemplo me aconteceu no Natal passado, quando eu estava tão longe que mal me conseguia controlar, quando eu de facto parecia estar no último degrau da minha escada, a qual, porém, pousava calmamente no solo e se apoiava à parede. Mas que solo, que parede! E no entanto essa escada não caiu, de tal modo os meus pés a comprimiam contra o solo, de tal modo os meus pés a empurravam contra a parede.
Hoje, por exemplo, fui três vezes insolente, com um condutor, com uma pessoa que me apresentaram, bom, foram só duas vezes, mas doeram como uma dor de estômago. Teriam sido uma insolência da parte de quem quer que fosse, quanto mais vindas de mim. Saí de mim próprio, lutei no ar no meio do nevoeiro, e para cúmulo: ninguém notou que fui insolente com quem me acompanhava, uma insolência sem mais, e tinha de o ser, tinha de assumir a sua verdadeira forma e a sua responsabilidade; mas o pior foi quando uma das pessoas que me acompanhavam não tomou essa insolência como sinal de um carácter, mas como o próprio carácter, me chamou a atenção para a minha insolência e a admirou. Porque não fico eu em mim? Na verdade, digo para mim próprio: olha, o mundo deixa que lhe batas, o condutor e a pessoa que te apresentaram ficam calmos quando tu te afastas, o último até cumprimenta. Mas isto não significa nada. Não consegues alcançar nada se renunciares a ti próprio, mas que perdes tu além disso no teu meio? A este apelo apenas respondo: também eu prefiro que me batam no meu meio do que bater-me a mim próprio fora dele, mas onde com os diabos fica esse meu meio? Durante um tempo vi-o estendido na terra, como que espargido com cal, mas agora paira só em meu redor, que digo?, nem sequer paira.

Noite de cometas, 17/18 de Maio. Juntamente com Blei, a mulher e o filho, de tempos a tempos escutei-me a mim próprio fora de mim, soava acidentalmente como o ronronar de um gatinho, mas sei lá.
Quantos dias voltaram a passar, mudos; hoje é o dia 28 de Maio. Não tomei eu uma vez a decisão de ter diariamente na mão esta caneta, este bocado de madeira? Creio já não a ter tomado. Remo, cavalgo, nado, fico deitado ao sol. Por isso tenho as barrigas das pernas em bom estado, as coxas nada mal, a barriga ainda passa, mas já o peito está em péssimo estado, e se a cabeça me assenta no pescoço...






franz kafka
diários (1910-1923)
trad. maria adélia silva melo
difel
1986




23 março 2007

e os árabes faziam perguntas terríveis



E os árabes faziam perguntas terríveis
e o Papa não sabia o que dizer e as pessoas
corriam de um lado para o outro em sapatos de
[madeira
perguntando para que lado estava virado o rosto
[de Midas e toda a gente dizia



Não em vez de Sim


Enquanto nos Jardins do Luxemburgo
nas fontes dos Médicis estavam
para sempre imóveis os
peixes dourados vermelhos grandes e os peixes
[dourados brancos grandes
e as crianças correndo à roda do lago
apontando com o dedo e esganiçando-se:


Des poissons rouges!

Des poissons rouges!


Mas foram-se embora
e uma folha desprendeu-se da árvore
e a caiu no lago
e ficou à tona de água como um olho a piscar círculos
e depois o lago ficou muito

tranquilo

e só lá ficou um cão
sem fazer nada
na borda do lago
a olhar para baixo
para os peixes em transe
e sem ladrar
nem dar ao ridículo rabo nem
nada


de modo que
então por um momento
no crepúsculo do final de Novembro
o silêncio pendeu como uma ideia perdida
e uma estátua virou



a cabeça









lawrence ferlinghetti
pictures of the gone world
trad. josé palla e carmo
cadernos de poesia
dom quixote
1972







22 março 2007

requiem

(ao menino morto, eu próprio)




A tarde declina com uma luz ténue.
Estou grave e calmo.
E não preciso de ninguém
Nem a luz da tarde me comove: entendo-a.
Até as imagens me são inúteis porque contemplo tudo.


Os ventos rodam, rodam, gemem e cantam
E voltam. São os mesmos:
Como os conheço desde a infância!
E a terra húmida das tapadas da quinta…
O estrume da égua morta quando eu tinha seis anos
Gira transparente nesta brisa fria…
(Na noite gotas de orvalho sumiam-se sob as folhas de erva…)


Oh, não há solidão nas neblinas de Inverno
Pela erma planície…


E foi engano julgar-te morto e tão só nas tapadas em silêncio…
Agora sei que vives mais
Porque começo a sentir a tua presença, grande como o silêncio…
Já me não vem a vaga tristeza do teu chamamento longínquo,
Já me confundo contigo.







cristovam pavia
revista árvore, nº. 1
Outono de 1951





21 março 2007

antónio josé forte (1931-1988)




azuliante




Este poema
começa com um homem de tronco nu
à sua mesa de trabalho e hiante
a esta hora em que de oriente a ocidente
se acendem lâmpadas trémulas e bárbaras e ferozes
e o mar é o teu nome a esta hora pétala a pétala
em que subirei de avião para ir beijar-te os olhos
e ver no meio do deserto o único
o magnífico devorador de rosas a comer um pão
enquanto do Oceano resta apenas
o silêncio de uma lágrima caindo nos joelhos de uma criança
Espera-me onde um nome há no Ar escrito com saliva azul
com raiva azul
como a urina violenta dos amantes
com a sua flor azul à superfície onde crepita a morte


Choverá muito eu sei choverá muito
e não porei uma pedra branca sobre o assunto digo
sobre o tremor de terra em que tu danças
na tua roda de cigarros cada vez mais depressa cada vez mais depressa
e lento o peixe de plumas de águia letra a letra
dá a volta ao mundo dos teus olhos
enquanto a dentadura cintilante pronuncia o grande uivo
de oriente a ocidente



Certas palavras muito duras quando a noite cai
não devem ter outra origem sabem tão bem quanto eu
porque agora a lava das lágrimas ao crepúsculo
são as rosas com que o poeta fala
à multidão em volta do crocodilo o animal repugnante
de costas para a luz contra o grande uivo:
de oriente a ocidente a mesma flor podre o estado
os segredos de estado as razões de estado a segurança do estado
o terrorismo de estado os crimes contra o estado
e o equilíbrio do terror
de oriente a ocidente meu amor de oriente a ocidente


Digo não Eu digo não
digo o teu nome que diz não


No entanto às portas da cidade e ao pé de cada árvore
à espera que tu chegues ou passes simplesmente
estão os grandes do império com o chapéu na mão para cumprimentar-te
Então passas tu com a lua no peito
dividindo distribuindo os alimentos
passas tu devagar atirando as moedas
que os dias não aceitam e gastamos depressa
noite mil e uma noites de quem espera
Meu amor países pátrias têm todos um nome
de letras imundas que não é para escrever
Se ainda podes ouvir o búzio da infância
ouvirás com certeza o sinal de partir


No comboio multicor sobre carris ferozes e azuis
que há mil anos dá a volta ao mundo
sou eu o homem que viaja nu porque eu sou
o arco-íris e a rosa no trapézio
e tu toda a paisagem que atravesso
como se fosse de bicicleta
como se fosse sílaba a sílaba
a primeira frase da terra
tu com as tuas luvas de amianto ao lado do vulcão
com a tua máscara de olhar a aurora boreal
de me olhares para sempre nua eu a tempestade
de coração a coração


Roda sórdida da razão cínica e canto de galos
depenados vivos que cantam nos intervalos da morte
no meu livro de horas deste século
está escrito que o homem livre fará o seu aparecimento
sob a forma de um cometa de cauda fascinante
que arrastará os amorosos até ao centro do mundo
donde partirão na rosa-dos-ventos e este será o sinal










antónio josé forte
uma faca nos dentes
parceria a. m . pereira
lisboa 2003