04 março 2022

konstandinos kavafis / muitas vezes verifiquei…

 
 
 
Muitas vezes verifiquei que os homens dão pouca importância às palavras. Vou explicar-me. Uma pessoa banal (com banal não quero eu dizer que seja tola, apenas alguém que não é relevante) tem uma ideia qualquer que é de censura a uma instituição ou a uma opinião generalizada; sabe que a grande maioria pensa o contrário e por tal razão cala-se, pensa que não lhe convém falar e argumenta que a discussão não altera nada. É um grande erro. Eu actuo de outra maneira. Censuro, por exemplo, a pena de morte. Quando a ocasião se proporciona declaro-o, não porque esteja convencido de que os Estados vão fazer a sua abolição no dia seguinte, mas por estar convencido de que vou contribuir para o triunfo da minha opinião. É indiferente que ninguém esteja de acordo. As minhas palavras não caem em saco roto. Talvez alguém chegue a repeti-las, e possam ir ter a ouvidos que as oiçam e apoiem. Pode ser que alguém, entre os que não concordam agora, no futuro vá recordá-las em circunstância favorável e, havendo o concurso de outras circunstâncias, se convença ou ponha em dúvida a sua convicção, que lhe é contrária. E o mesmo se passa com outros problemas sociais, e outras coisas em que é sobretudo necessário haver Acção. Reconheço que sou um cobarde e não posso actuar. Limito-me, por isso, a falar. Embora não acredite que as minhas palavras sejam supérfluas. Outro existirá que vai actuar. E as minhas palavras – palavras de um cobarde – vão facilitar-lhe a actuação. Prepara-lhe o terreno.
 
(19-10-1902)
 
 
 
konstandinos kavafis
kavafis páginas íntimas
trad. joão carlos chainho
hiena editora
1994




1 comentário:

Porventura escrevo disse...

Há mais de 100 anos, um pequeno texto que reflete perfeitamente o mundo atual.