13 maio 2023

adília lopes / desde as cozinhas na cave

 
 
Desde as cozinhas na cave onde
marroquinos preenchiam tacinhas escacadas
com um doce cor-de-laranja suspeita
até às retretes com as paredes cheias
suponho que de palavrões em várias línguas
tudo era muito cosmopolita a casa
para mim bastante duvidosa ou talvez fosse só eu
que andasse suspeitosa nunca o saberei
lá não hei-de voltar
jamais no meu quarto começou por estar
uma americana que se não se chamava
Daisy pouco lhe faltava
fingia que lia Rich Man, Poor Man
gritava de noite à janela Shut up!
porque realmente saía muita gente
sempre em grita e riso do passage
de que esqueci o nome onde havia poeirentos
vidros azuis translúcidos salitre osgas
depois apareceu-me uma Stefania
que se dizia ruiva veneziana
e viver na Via Cava Aurelia
nunca acreditei em Roma
fazia por tudo e por nada queixas
ao gordo guardador das chaves
que dormia de tronco nu debaixo
de um cobertor branco de pelúcia
dois ou três gatos geralmente pretos perto
(embora estivesse muito abafado o tempo)
lá não hei-de voltar
 
 
 
adilia lopes
dobra
poesia reunida
o decote da dama de espadas (1988)
assírio & alvim
2021




12 maio 2023

vincenzo cardarelli / harpejos

 



 
Vivíamos dum frémito de ar,
dum fio de luz,
dos mais vagos e fugazes
movimentos do tempo,
de auroras furtivas,
de amores nascentes,
de imprevistos olhares.
E para exprimir o que sentíamos
há só uma palavra:
desespero.
Doce infinita profunda palavra.
 
Vaga e triste é a sorte dos homens:
dos homens que passam
sem estrondo maior que o de uma folha
que se transforma em terra.
Precário estado o seu.
a morte, um dissolver-se,
não um acabar,
e sem tempo, sem memória,
a viagem terrestre.
O sol está cansado de observar
uma vida tão monótona.
Assim falava um monge
indolente e bizarro,
lá no antigo Oriente:
pequeno homem assediado
por enormes fantasmas.
 
 
 
vincenzo cardarelli
dez poetas italianos contemporâneos
trad. de albano martins
dom quixote
1992
 



11 maio 2023

concha garcía / um gesto útil

 
 
Nove em cada dez vezes
da pouca juventude que resta
meto-me no fundo, simulo
que o negro é uma luz
e no seu reflexo olho pontos mortos.
Uma mulher que escreve um verso
afunda-se na palavra, pisca os olhos
diante de uma cintilação pergunta-se
se tal como ela esquece
também os outros esquecem.
 
 
 
concha garcía
ayer y calles
poesia espanhola de agora vol. I
tradução de joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997



10 maio 2023

rúben marques / reflexos

 
 
Não escrevemos poesia,
Escrevemos janelas interiores
Para acordar as verdades
Simples e óbvias,
Em nós
E em quem se julga sozinho.
 
 
 
rúben marques
quem somos quando ninguém nos vê
cordel d´prata
2023





09 maio 2023

jack gilbert / é óbvio porque é que os anjos não voltam

 
 
É óbvio porque é que os anjos não voltam.
Ali parados, majestosos, no seu belíssimo latim,
como podiam eles aceitar ser diluídos
tão diminutamente noutra gramática, ou abandonar
o seu canto perfeito por esta fala avariada?
Porque deveriam eles tropeçar por este mundo estranho?
 
Invejei sempre aos anjos a sua graça.
Mas larguei a minha esperança de tamanho bizantino
e cheguei a este embaraço, a esta estupidez.
Cheguei finalmente a ti e lavavas-me a cara
enquanto todos se riam, e encontrei uma floresta
abrindo-se enquanto o casamento corria em mim. Todas
 
as folhas no mundo teceram uma pequena
entoação: os anjos estão errados.
 
 
 
jack gilbert
deixem-me ser ambos
trad. leonor castro nunes e marcos pereira
destrauss
2020




08 maio 2023

robert frost / o caminho que não tomei

 



 
Dois caminhos, um para cada lado:
Ah, ir por ambos na mesma viagem!
Olhei para o primeiro ali, parado,
Nesse bosque de tom amarelado,
Até perder-se longe entre a folhagem.
 
Mas o outro também me atraía,
Por uma razão diferente, afinal:
Desbastar erva que densa crescia.
Quem por eles passara, todavia,
Os fora desgastando por igual.
 
E cada um nessa manhã jazia
Com a mesma cor, a mesma frescura.
Reservei o primeiro para outro dia!
Como um caminho a outro levaria,
Duvidei lá voltar noutra altura.
 
Daqui a mil anos, o que aconteceu,
Suspirando, estarei contando a ti:
Dois caminhos bifurcavam, e eu –
O menos pisado tomei como meu,
E a diferença está toda aí.
 
 
 
robert frost
antologia de poesia anglo-americana
de chaucer a dylan thomas
tradução antónio simões
campo das letras
2002
 


07 maio 2023

cesare pavese / a arte de desenvolver os pequenos motivos




9 de Outubro de 1938
 
A arte de desenvolver os pequenos motivos para nos decidirmos a realizar as grandes acções que nos são necessárias. A arte de nunca nos deixarmos desencorajar pelas reacções dos outros, recordando que o valor de um sentimento é juízo nosso, pois seremos nós a senti-lo e não os que assistem. A arte de mentir a nós próprios, sabendo que estamos a mentir. A arte de encarar as pessoas de frente, incluindo nós próprios, como se fossem personagens de uma novela nossa. A arte de recordar sempre que, não tendo nós qualquer importância e não tendo também os outros qualquer espécie de importância, nós temos mais importância do que qualquer outro, simplesmente porque somos nós. A arte de considerar a mulher como um pedaço de pão: problema de astúcia. A arte de mergulhar fulminante e profundamente na dor, para vir novamente à tona graças a um golpe de rins. A arte de nos substituirmos a qualquer um, e de saber, portanto, que cada pessoa se interessa apenas por si própria. A arte de atribuir qualquer dos nossos gestos a outrem, para verificarmos imediatamente se é sensato.
 
A arte de viver sem arte.
 
A arte de estar só.
 
 
 
cesare pavese
o ofício de viver - diário (1935-1950)
trad. alfredo amorim
relógio d´água
2004
 



 

06 maio 2023

gonçalo m. tavares / o táxi



 
Uma mulher levanta o braço. Está no passeio. Não tem pressa, mas levanta o braço e acena com a mão. O táxi pára. Está vazio, mas não pára.
 
A mulher veste calças elegantes, castanhas. Tem um lenço ao pescoço.
 
De novo, vemos a sua mão levantada a acenar. Outro táxi que não pára.
 
A mulher está a sorrir. É bonita. Levanta o braço de novo. Estamos sempre a vê-la, a ver o seu entusiasmo sorridente. Mas não, de novo o táxi não pára. Também vazio, mas não pára.
 
O plano agora abre-se mais. Vemos a mulher, sim, as suas calças elegantes castanhas. E, junto aos seus pés, um corpo inerte; provavelmente morto.
 
 
 
gonçalo m. tavares
short movies
caminho
2011
 



 

05 maio 2023

konstantinos kaváfis / na aldeia aborrecida




 

Na aldeia aborrecida em que trabalha –
empregado num estabelecimento
comercial; muito jovem – e onde aguarda
que passem ainda dois ou três meses,
dois ou três meses ainda para que o trabalho abrande,
e assim possa ir para a cidade e todo
se entregar ao bulício e à diversão;
na aldeia aborrecida em que aguarda –
caiu esta noite na cama tomado pelo amor,
abrasada toda a sua juventude na paixão da carne,
numa bela intensidade toda a sua formosa juventude.
E com o sono chegou o prazer; no sono
vê e faz sua a imagem, a carne que desejava…
 
1925
 
 
 
konstantinos kaváfis
konstantino kaváfis, 145 poemas
tradução de manuel resende
flop livros
2017


 



04 maio 2023

jorge de sousa braga / montanhas

 
 
1.
Quando uma montanha se apaixona tudo pode acontecer… Começar aos saltos ou então ficar para ali deitada a olhar as nuvens. Convém por isso não a escalar nesses dias e sobretudo não beber da água das suas nascentes.
 
2.
As montanhas apaixonam-se com frequência. Vestem-se de branco. De verde ou azul. Por vezes abrem as pálpebras. E a lava da sua paixão corre-lhe pelas faldas.
 
 
 
jorge de sousa braga
o poeta nu
fenda
1991
 



03 maio 2023

joan margarit / depois de jantar

 
 
 
Oiço tocar à porta e vou abrir
mas não é ninguém.
Penso naqueles que amo e não virão.
Não fecho a porta e insisto em dar as boas-vindas.
Com a mão no puxador, espero.
A vida vai-se ancorando na dor
como as casas sobre os alicerces.
E sei por quem me demoro lançando o feixe
de luz familiar na rua deserta.
 
 
 
joan margarit
misteriosamente feliz
trad. miguel filipe mochila
flâneur / língua morta
2020




02 maio 2023

carlos saraiva pinto / havia mais ar

 



 
havia mais ar.
mais limites de árvores.
um charco era um espelho
que tinha sua esperança
e os musgos sabiam que a chuva
chegava cedo
quando o outono
escolhia os choupos das margens
para dar ao douro
o nome que um corpo sentia,
 
próximo da boca e do olhar
por quem são João da cruz
abandonava neve nas montanhas
 
eu subia para a lareira
e tudo era um livro aberto
de navios infantis
no caudal dos tanques.
 
hoje, a luz é mais complexa
e dorme neste quarto asilar
a que pertence a desordem
dos papéis.
os meus projectos são poucos.
apenas desejo sentir os ombros
sobre as ruínas das famílias sepultadas.
 
teu ramo de rosas chegou tarde.
 
o sublime não arde nos quintais
onde decido desprender-me
dos papéis insensatos e loucos.
 
a orfandade é o ciclone que uivará
nas vidraças
que escondem aquele recanto da casa
em que repousa a minha cabeça na travesseira.
 
O tempo não pertence ao amor.
tarde o reconheço.
 
a palavra da vigília
alimenta vasos e sementeiras
que no pátio
dão alguma serenidade
àquilo que a poesia antecipa.
dispo o casaco vulgar
e a poeira torna-se líquida.
os remos são poucos
nas metáforas.
nem sei se o pão
que trouxe para as paisagens
bastará para a fome.
 
 
 
carlos saraiva pinto
escrever foi um engano
o correio dos navios
2001
 



01 maio 2023

alexandre o'neill / o tabaco da vida

 



 
De amor cantando,
sem nele demasiado acreditar,
dei a volta ao coração (demorei anos):
está só – mas sem nenhuma vontade de parar…
 
Desiludidos? Paciência, amigos…
Bebamos mais, fumemos, refumemos,
entre as mulheres, o tabaco da vida.
Como cedilhas pendurados que felizes seremos,
 
exemplares cretinos nesta noite comprida…
 
 
 
alexandre o´neill
poemas com endereço 1962
poesias completas
assírio & alvim
2000