30 dezembro 2022

pedro tamen / nem esquecer o que tenho

 
 
 
Nem esquecer o que tenho
nem no que vens
se esfuma:
das ilhas continentes donde venho
em cada tens
ilustrações – é uma
apenas só viagem nossa,
quer siga eu aonde eu possa
ter memória de ti,
quer venhas tu de frente,
andando simplesmente
até aqui.
 
E assim dos nossos pés se fica em brasa
o chão do corredor da nossa casa.
 
 
 
pedro tamen
princípio de sol
circulo de leitores
1982





29 dezembro 2022

ana hatherly / 463 tisanas




236
 
Os grandes erros que se cometem na vida são erros recorrentes. Sempre repetimos os mesmos erros, isto é, o mesmo erro, e é esse erro que finalmente nos define, porque não se trata de um erro mas de uma situação-limite. Mas esta terminologia é absolutamente inadequada.
 
 
ana hatherly
463 tisanas
quimera
2006





 

28 dezembro 2022

elio pecora / de poemas para a mãe



 
Eu não sabia, não, quando cantavas
– talvez em Abril, no quarto azul –
que tu eras a mãe, que eu era o filho.
 
Escutavam-te as montanhas e as planícies,
as andorinhas apaziguadas nas goteiras
e eu encantado na almofada branca.
 
No teu canto abriam-se as esperas
do confuso presente, as tristezas
de todos os improváveis futuros.
 
Compreendi então que eras a companheira
de uma viagem de agruras, de tormentos,
para lá das paredes e das portas.
 
Por muitas estações esse engano
dentro de mim criei e fingi-me aquele
que na noite anda à frente.
 
Esta noite dizes com voz de pranto
– sobe no céu a Lua de Agosto –
que andaste sozinha pelas ruas escuras.
 
 
 
elio pecora
poemas escolhidos
interlúdio (1987)
tradução de simoneta neto
quasi
2008
 


 



27 dezembro 2022

eugénio de andrade / as mãos e os frutos

 
 
IV
Somos como árvores
só quando o desejo é morto.
Só então nos lembramos
que dezembro traz em si a primavera.
Só então, belos e despidos,
ficamos longamente à sua espera.
 
 
 
eugénio de andrade
as mãos e os frutos
poesia
fundação eugénio de andrade
2000
 




26 dezembro 2022

antónio franco alexandre / dos jogos de inverno

 
 
3
 
hoje sonhei que vou morrer e via-te
confundida no mais amado rosto.
creio que te pedia para seres e para não seres
a amada, a que alimenta o sonho da vida.
deixei toda a aspiração da poesia
presa nas mãozinhas metálicas com que se estende a roupa,
lençóis brancos compridos imóveis ou
mergulhando devagar no vento; como se fora apenas
uma exacta confusão, uma troca de corpos e de nomes.
 
e uma vespa pousada e pobre Mrs. Poesy
avançassem para um lugar robusto: a mansidão
dos atletas no momento em que lançam
uma pequena pedra.
só eles aqui devemos imitar, aprendendo da sua perfeita
futilidade, uma paixão sem melancolia.
o ar virando, ao fim da tarde, vibra
nas surpresas folhas de pano,
como o leve cantar das máquinas sozinhas.
 
preso nas muitas palavras, o amor confia
vivendo de si,
e os cavalos soltam as crinas no dorso das
imagens,
uma voz pergunta, novamente, onde estás?
quero o meu coração limpo e desarmado
diante de ti, diante dos meus inimigos,
sei que não mereço, e procuro
a menor voz do salmo.
 
 
antónio franco alexandre
dos jogos de inverno
poemas
assírio & alvim
1996
 




25 dezembro 2022

s. kierkegaard / como me senti estranhamente melancólico

 



 
Como me senti estranhamente melancólico ao ver um pobre homem arrastar-se pelas ruas num sobretudo muito gasto, verde-claro, para o amarelado! Deu-me pena dele. Mas o que mais me comoveu, no entanto, foi que essa mesma cor do sobretudo tão vivamente me recordou as minhas primeiras criações de criança na nobre arte da pintura. Esta era precisamente uma das minhas cores preferidas. Não é mesmo triste que estas misturas de cores, em que ainda penso com tanta alegria, não se encontrem em parte nenhuma na vida? Toda a gente as acha berrantes, garridas, a empregar apenas nas figuras de Nuremberga. Se alguma vez, nos deparamos com elas, o encontro será sempre tão infeliz como este agora. Tem sempre de ser um fraco de espírito ou um desgraçado, em resumo, sempre alguém que se sente um estranho na vida e que o mundo não quer reconhecer. E eu que sempre pintei as vestes dos meus heróis com pinceladas deste verde amarelado eternamente inesquecível! Não acontece o mesmo com todas as misturas de cores da infância? O brilho que a vida então tinha torna-se pouco a pouco demasiado forte, demasiado berrante para o nosso olhar esvaído.
 
 
s. kierkegaard
diapsalmata
trad. de bárbara silva, m. jorge de carvalho,
nuno ferro e sara carvalhais
assírio & alvim
2011 





24 dezembro 2022

luís miguel nava / em entrelinhas

 
 
Tem furos na consciência, este rapaz. Tem a memória em cacos. Que fará da minha infância quando entrar no rasgão com que deu a todo o comprimento dela? Que sabe ele do labirinto onde uma letra se extravia ou do horizonte em que pressinto um sublinhado? Ignoro o que ele fará, bem como o que dirá ao ver num poema o céu em entrelinhas.
 
 
luís miguel nava
onde à nudez
poesia completa (1979-1994)
publicações dom quixote
2002
 




23 dezembro 2022

sophia de mello breyner andresen / evadir-me

 
 
Evadir-me, esquecer-me, regressar
À frescura das coisas vegetais,
Ao verde flutuante dos pinhais
Percorridos de seivas virginais
E ao grande vento límpido do mar.
 
 
 
sophia de mello breyner andresen
dia do mar
obra poética
assírio & alvim
2015





22 dezembro 2022

miguel torga / unha negra



 
Hoje,
Nem a vida me foge,
Nem eu fujo;
É não sei quê no sol
Que está sujo,
 
 
 
miguel torga
diário I
1941
poesia completa vol. i
dom quixote
2007





 

21 dezembro 2022

ezra pound / o agravo da escadaria cravejada

 



 
Os degraus cravejados já estão brancos do orvalho,
É tão tarde que o orvalho ensopa minhas meias d gaze,
E deixo cair a cortina de cristal
E contemplo a lua, através do claro outono.
 
                                                                    RIHAKU
 
 
 
ezra pound
antologia poética
personae
tradução m. faustino
editora ulisseia
1960




20 dezembro 2022

maurice blanchot / não tinha inimigos

 
 
 
Não tinha inimigos, não era incomodado por ninguém. Por vezes criava-se uma vasta solidão na minha cabeça onde o mundo inteiro desaparecia, voltando a sair intacto, sem um arranhão, sem nada em falta. Quase perdi a visão quando alguém esmagou vidro nos meus olhos. Reconheço que esse golpe me abalou. Senti que estava a penetrar o muro, a deambular num arbusto de sílex. O pior foi a brusca e chocante crueldade do dia – não podia olhar nem deixar de olhar. Ver era aterrador, deixar de ver dilacerava-me da testa à garganta. Para além disso, ouvia gritos de hiena, o que me expôs à ameaça de um animal selvagem (esses gritos, acredito, eram os meus).
 
 
 
maurice blanchot
a loucura do dia
trad. ricardo ribeiro
sr teste edições
2021




19 dezembro 2022

sami mahdi / os extremos da ilusão



 
vossa foi
esta formosa noite.
vossa foi
esta longa charla.
e dela manava contínua ilusão –
que a ilusão não se origina de um absurdo.
 
falaste-nos de outra nuvem
de outra estrela
e só nos reservamos este pouco.
e chamais segredo ao que entre nós existe?
 
se quereis que cantemos juntos
e juntos gracejemos
reconheçamos que o cantar está cansado
invertamos os termos
e comecemos pela última das penas.
 
 
 
sami mahdi
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
tradução de adalberto alves
assírio & alvim
2001
 
 

 

 

18 dezembro 2022

paulo campos dos reis / ceuta

 
  
Vinha com cara de pedir cigarros. Pediu.
Informei não ter. Fugiu.
Segui-lhe os passos. Um café.
Informou chamar-se Maria José.
Informei ser fumador.
Riu até ao útero.
Amámo-nos até ao cancro.
 
 
 
paulo campos dos reis
habilitações literárias
volta d´mar
2022