29 outubro 2022

álvaro de campos / cruzou por mim, veio ter comigo,

 


 
Cruzou por mim, veio ter comigo, numa rua da Baixa
Aquele homem mal vestido, pedinte por profissão que se lhe vê na cara,
 
Que simpatiza comigo e eu simpatizo com ele;
E reciprocamente, num gesto largo, transbordante, dei-lhe tudo quanto tinha
 
(Excepto, naturalmente, o que estava na algibeira onde trago mais dinheiro:
Não sou parvo nem romancista russo, aplicado,
E romantismo, sim, mas devagar...).
 
Sinto urna simpatia por essa gente toda,
Sobretudo quando não merece simpatia.
Sim, eu sou também vadio e pedinte,
E sou-o também por minha culpa.
Ser vadio e pedinte não é ser vadio e pedinte:
É estar ao lado da escala social,
É não ser adaptável às normas da vida,
Às normas reais ou sentimentais da vida —
Não ser Juiz do Supremo, empregado certo, prostituta,
Não ser pobre a valer, operário explorado,
Não ser doente de uma doença incurável,
Não ser sedento de justiça, ou capitão de cavalaria
Não ser, enfim, aquelas pessoas sociais dos novelistas
Que se fartam de letras porque têm razão para chorar lágrimas,
E se revoltam contra a vida social porque têm razão para isso supor.
 
Não: tudo menos ter razão!
Tudo menos importar-me com a humanidade!
Tudo menos ceder ao humanitarismo!
De que serve uma sensação se há uma razão exterior para ela?
 
Sim, ser vadio e pedinte, como eu sou,
Não é ser vadio e pedinte, o que é corrente:
É ser isolado na alma, e isso é que é ser vadio,
É ter que pedir aos dias que passem, e nos deixem, e isso é que é ser pedinte.
 
Tudo mais é estúpido como um Dostoievski ou um Gorki.
Tudo mais é ter fome ou não ter que vestir.
E, mesmo que isso aconteça, isso acontece a tanta gente
Que nem vale a pena ter pena da gente a quem isso acontece.
Sou vadio e pedinte a valer, isto é, no sentido translato,
E estou-me rebolando numa grande caridade por mim.
 
Coitado do Álvaro de Campos!
Tão isolado na vida! Tão deprimido nas sensações!
Coitado dele, enfiado na poltrona da sua melancolia!
Coitado dele, que com lágrimas (autênticas) nos olhos,
Deu hoje, num gesto largo, liberal e moscovita,
Tudo quanto tinha, na algibeira em que tinha pouco, àquele
Pobre que não era pobre, que tinha olhos tristes por profissão.
 
Coitado do Álvaro de Campos, com quem ninguém se importa!
Coitado dele que tem tanta pena de si mesmo!
 
E, sim, coitado dele!
Mais coitado dele que de muitos que são vadios e vadiam,
Que são pedintes e pedem,
Porque a alma humana é um abismo.
 
Eu é que sei. Coitado dele!
 
Que bom poder-me revoltar num comício dentro da minha alma!
Mas até nem parvo sou!
Nem tenho a defesa de poder ter opiniões sociais.
Não tenho, mesmo, defesa nenhuma: sou lúcido.
 
Não me queiram converter a convicção: sou lúcido.
Já disse: Sou lúcido.
Nada de estéticas com coração: Sou lúcido.
Merda! Sou lúcido.
 
s.d.
 
 
 
fernando pessoa
poesias de álvaro de campos
edições ática
1944






28 outubro 2022

josé gomes ferreira / de repente

 


XIX
 
De repente
tudo se tornou mais fundo
para além da superfície
das pedras sem flor
e das árvores sem voz.
 
Tão fundo, tão fundo
que até a Morte
já não precisa de sair do mundo
para caber nos olhos de todos nós.
 
(E há lá quem suporte
esta dor que eu tenho
de saber que a Morte
é do meu tamanho!)
 
 
 
josé gomes ferreira
poesia II
sonâmbulo 1941-1942-1943
portugália
1962




27 outubro 2022

amalia bautista / conta-mo outra vez

 
 
Conta-mo outra vez: é tão bonito
que não me canso nunca de escutá-lo.
Repete-me, uma vez mais, que o par
do conto foi feliz até à morte,
que ela não lhe foi infiel, que ele nem sequer
pensou em enganá-la. E não te esqueças
de que, apesar do tempo e dos problemas,
continuavam cada noite a beijar-se.
Conta-mo mil vezes, se faz favor:
é a história mais bela que conheço.
 
 
 
amalia bautista
trevo
tradução de inês dias
averno
2021

 



26 outubro 2022

albano martins / folhas

 


 

Repara: sem vento, as folhas
são como sono apenas.
Corpos ao relento,
que da morte se esquecem.
 
 
albano martins
escrito a vermelho
campo das letras
1999

 



25 outubro 2022

julien gracq / inabordável

 
 
É uma jovem mulher sob os passos da qual as imagens se erguem, profusas. Por vezes, numa senda de abril, ela levanta uma mão mole e doce tal uma pena e acalma, como que a contra-gosto, as inquietudes da paisagem – ou então a misteriosa assinatura do seu andar entre margens de betume rivaliza com o mais belo instrumento do literato. Gosto de seguir os meandros duma rua colorida, o fio dessa melodia de morte súbita que a sua aparição repercute, dum lado para o outro, do horizonte das fachadas. Que rua sonora – onde um teatro arrasado, vitrinas estilhaçadas, ardinas uivando o mais belo assassínio do século – que vidrilhos pintados a sangue, que belo sangue espumando e cantando algo parecido a trinados, a harpejos, que flácida inflexão de saxofone poderá alguma vez valer, para mim, o olhar que ela derrama, a partir do canto do seu olho preciso e sereno, o regato magnético do seu olhar que corre transbordante entre as casas como a saliva ácida dum glaciar?
 
 
 
julien gracq
sonhador definitivo e perpétua insónia
uma antologia de poemas
surrealistas escritos em língua francesa
trad. regina guimarães
contracapa
2021



 
 

24 outubro 2022

wislawa szymborska / paisagem com grão de areia




Chamamos-lhe grão de areia.
E ele a si nem areia nem grão.
Passa muito bem sem nome
genérico, específico,
duradouro, efémero,
erróneo ou real.
 
Nada é para ele o nosso olhar, o nosso tacto.
Não se sente observado e tocado.
E se caiu no parapeito da janela
é peripécia nossa, não dele.
Para ele é o mesmo cair aqui ou acolá,
sem a certeza de já ter caído
ou de estar ainda a cair.
 
Da janela há uma bonita vista sobre o lago
mas esta vista não se vê a ela própria.
Informe e descolorido,
inodoro e sem voz
e sem dor se lhe apresenta o mundo.
 
Como que desfundadamente ao fundo do lago
e desmarginadamente às suas margens.
Nem seco nem molhado à sua água,
nem singular nem múltiplo às suas ondas,
marulhando surdas ao próprio marulhar
ao redor de pedras nem grandes nem pequenas.
 
E tudo sob um céu de natureza inceleste
onde se põe um sol nunca poente
escondendo-se sem se esconder atrás de nuvem inconsciente.
Impele-a o vento sem outra razão
a não ser a de que venta.
 
Passa um segundo.
Dois segundos.
E um terceiro.
Mas são só nossos estes três segundos.
 
Precipitou-se o temo como mensageiro com notícia premente.
Mas a comparação é apenas nossa.
A figura inventada, a pressa insinuada,
e a notícia inumana.
 
 
 
wislawa szymborska
paisagem com grão de areia
trad. júlio sousa gomes
relógio d’água
1998
 



 

23 outubro 2022

gonçalo m. tavares / o amor



 

A Natureza tem uma entrada por trás
como os clubes clandestinos;
e o coração, mesmo apaixonado, não é tão estúpido
como uma galinha, por exemplo,
que é capaz de seguir durante horas
uma linha traçada a giz no chão.
 
 
 
gonçalo m. tavares
1 poesia
relógio d´água
2004





 

22 outubro 2022

gastão cruz / corda

 
 
Ninguém tem nome: apenas uma escura
corda de sons que prende o corpo e deixa
queimaduras na pele, esse é o preço
de ser nomeado porque o chamamento
 
de cada vez se torna mais ardente
até ser casa ou roupa ou outra pele
que fere o corpo e finalmente o veste
do nome que é o dele
 
 
 
gastão cruz
relâmpago, revista de poesia nº 34
abril 2014
fundação luís miguel nava
2014




21 outubro 2022

josé viale moutinho / triestinos

 



à ilse pollack e à claudia santos
 
 
 
1      com os vidros anos se desdobram
        murmuram-se os jogos e as damas
        como um regresso a todas as mesas
        onde o vento começa a completar-se
 
2      havia uma corda no meio da terra
        e todos os bustos do jardim municipal
        slataper saba joyce svevo e os outros
        ouvindo o que resta do vento do outono
 
3      quem se eu gritar virá à porta
        do castelo trazer-me os papéis de rilke
        e asas para que voe até ao rochedo
        de dante onde falo com nuvens baixas
 
4      merda jovem príncipe das pedras
        que as paredes se tornem chamas
        aí onde o rasto de rilke é castelo
        de cartas e papéis assombrados
 
5      eis alguns dos rostos de bronze
        sobre cada pedra os seus nomes
        numa escrita que a chuva limpa
 
        e o pó em joyce a erva em slataper
        uma gota de água em umberto saba
        svevo folhetim no diário popular
 
        aqui não entram os cães nem o vento
        e entre as árvores nada acontece
        as alamedas são o esguio giotti
 
        das bicicletas dos triestinos dos
        olhos tristes de quem se afasta
        deste outono de apontamentos mortos
 
 
 
josé viale moutinho
hífen 2 abr / set 88
cadernos semestrais de poesia
1988

 

 


20 outubro 2022

rui caeiro / o toureiro de deus

 




Os que procuram Deus nos pátios da miséria,
onde ele não está
 
os que procuram Deus nos jardins da abastança,
onde ele também não
 
os que procuram Deus na memória longínqua,
onde ele nunca por nunca
 
e os que o procuram nos curros onde, cegos,
os touros investem a esmo
 
porque é aí, porque é aí e não em outro lugar,
porque é precisamente aí
 
 
 
rui caeiro
o toureiro de deus
o sangue a ranger nas curvas apertadas do coração
maldoror
2019





 


19 outubro 2022

cesare pavese / és como uma terra

 
 
És como uma terra
que nunca ninguém disse.
Não espera nada
a não ser a palavra
que brotará do fundo
como fruto entre os ramos.
Um vento que se aproxima.
Coisas secas e mortas
embaraçam-te e vão no vento.
Membros, palavras antigas.
Tremes no verão.
 
            29 de Outubro de 1945
 
 
 
cesare pavese
a terra e a morte
virá a morte e terá os teus olhos
trad. rui caeiro
edições do saguão
2021






 

18 outubro 2022

heiner müller / cem passos

 



(segundo Defoe)
 
 
No século da peste
Um homem habitava em Bow, a norte de Londres,
Barqueiro, sem meios nem consideração, mas
Fiel aos seus. Circunspecto mesmo
Na sua fidelidade.
Das cidades a jusante
Onde havia a peste
Ele trazia os víveres rio acima
Para os burgueses ansiosos
Nos seus barcos
A meio do rio.
Assim a epidemia alimentava-o.
Mas a peste estava também
Com a sua mulher e o seu filho de quatro anos
Na sua cabana.
E do rio todas as tardes ele fazia subir, fruto da sua jornada,
Um saco de comida que pousava sobre uma pedra a cem passos da sua cabana.
Depois, estendendo-se, chamava a sua mulher. Observava-a
Quando ela erguia o saco, seguia com atenção cada um dos seus movimentos
Ficava ainda um instante
A boa e segura distância
E respondia à sua saudação.
 
 
 
heiner müller
poemas (1949-1995)
trad. adolfo luxúria canibal
oficina noctua
2021





17 outubro 2022

martín lópez-vega / política




Como tinha lido em René Char
(«Aquele que acredita no girassol não meditará dentro de casa.
Todos os pensamentos de amor serão os seus pensamentos»)
pus girassóis no jarrão, ao lado das laranjas,
em completa harmonia com o teu vestido. Cúpulas douradas
entregues à sua reza, politeísta e nós
dervixes giróvagos em redor da sua alegria.
 
Sobre a mesa os objectos contemplam-se.
Quando a mão os mover
calar-se-ão e falará a mão.
Escuta-os antes,
não terás outra oportunidade;
assim com tudo.
 
Numa conca de madeira com castanhas
uma romã e um marmelo são uma ética.
Como duas partes de algo anterior agora reunido
quando tento pintá-las
o vermelho foge para o amarelo e o verde para o laranja.
 
Na cozinha fumega ainda
o chá vermelho com mel de urze, sem procurar a chave
de uma emoção precisa (cf. Durrell, Lawrence, Collected Poems,
Dutton, New York, 1960, pp. 92-93), enquanto que da rua
chegam pela varanda aberta as vozes dos lojistas,
o chiar da corrente de uma bicicleta,
uma canção que não conhecemos e cujas notas
ouvidas ao acaso procuram o seu lugar bem dentro de nós
para voltar num outro dia a perturbar-nos, sem saber bem porquê.
 
– Que fazeis?
– Política.
 
Parámos a meio do caminho
Que vai do subiectum ao subiectus, detivemos o dispositivo
para contemplar cada detalhe do instante, os ínfimos
grãos de pó suspensos no ar da habitação,
cada minúscula fenda nas vigas de madeira do tecto,
o preguiçoso gato eslovaco, o tiquetaque do despertador,
os livros empilhados, a canção, as vozes, a bicicleta…
parámos o tempo e podemos mover-nos pela sua quietude.
 
– Isto é o que a poesia ensina ao mundo.
– Parecer-te-á pouco.
 
 
 
martín lópez-vega
a eterna qualquercoisa
tradução de Jorge melícias
officium lectionis edições
2022