08 junho 2022

zetho cunha gonçalves / fragmentos da terra

 



 

                                          Ao Herberto Helder
                                          e ao Luís Carlos Patraquim

 
 
 
Os meus mortos deram-me versos – um rio
acampado na memória.
(Os pássaros tomam o ar do seu canto – vento,
vento espantado.)
          E se troveja,
Cobrem-se de colchas e de toalhas os espelhos
da casa;
colocam-se três montículos de cinza fresca
nos cantos interiores das portas,
e um fio de sorte, em sal grosso, ao longo do peitoril
das janelas voltadas a nascente – que se fecham,
flor do mato,
sem luz eléctrica nem água canalizada;
sem para-raios.
          Sem para-raios,
desmembram os relâmpagos, faísca
sobre faísca,
as árvores antigas da terra – que rodeiam,
estremecem – amuleto e feitiço,
como se Deus se soletrasse
na pedra inaugural do meu rosto.
 
 
 
zetho cunha gonçalves
noite vertical
poemas reunidos 1979-2021
maldoror
2021



 


07 junho 2022

eva ruivo / um recado por baixo da porta

 
 
 
                                                                  «We are the stuff
                                                 As dreams are made of, and our little life
                                                  Is rounded with a sleep».
 
                                                                    Shakespeare, The Tempest
 
 

Parece que estou metida num vídeo
pornográfico, as ramagens batidas pelo suor e o rumor
de vozes agrícola, regos abertos a cruzar as únicas
sílabas que a colheita, mãos de cortiça, deixou
varejadas. Dói: o sol nos muros, corpo inculto
versado na dor. Depois, certos dias obrigados
a festa, colchas no parapeito, jarras cheias
de calendário para encobrir o remorso;
a vida na província
são obscenas imagens de fuga.
 
Acordei, tinham passado por cima de mim
aldeias inteiras, vivalma, sequer um alguidar
com água para a mula, pele e osso, ou música
o acordeão a insuflar a tenda.

 
 
eva ruivo
hífen 10 maio 1997
cadernos semestrais de poesia
anos noventa (alguns poetas)
1997




06 junho 2022

fiama hasse pais brandão / a casa

 
 
Sempre se conheceu o vento de Junho
nessa orla, que regougava nas esquinas
da casa à noite e nas manhãs ansiosas
em que voltava a aragem matinal
deixava irremediavelmente os frutos
a juncar a terra e os atalhos.
 
E sempre se lamentaram as velhas pancadas
do vento, no seu ritmo marítimo, a exaltação
a que nos levava, permanentes povoadores
da costa. E para lamentar dizíamos
as palavras usuais e alguns suspiros
próprios da insónia de ouvir o vento.
 
 
 
fiama hasse pais brandão
três rostos
poemas revistos 1985-1987
assírio & alvim
1989



05 junho 2022

daniel faria / magoa ver a magnólia cair

 
 
7
Magoa ver a magnólia cair. Acredita.
O relâmpago vem
Sobre ela. A tempestade.
As plantas são tão frágeis como as cabanas dos homens.
Somos muito frágeis os dois neste poema
Com o relâmpago, a cabana, com a magnólia aos ombros
Sem nenhum terreno pulmonar intacto
Para depois de nos olharmos um de nós dizer
Plantêmo-la aqui – aqui
É o meu pulso, a minha boca
É a retina com que procuras, é a madeira da porta
Com que te fechas em casa. Prometo-te
Eu nunca vou fechar os olhos
As mãos.
 
 
 
daniel faria
dos líquidos
anos 90 e agora
uma antologia da nova poesia portuguesa
quasi
2001




 

04 junho 2022

josé tolentino mendonça / restos de chuva

 
 
Traz um lírio seco cravado nas costas à traição
a morte do pai em certos nomes
consumida na meteórica duração
que permitia aos cigarros
a distância terrível de si mesmo
até as pequenas as mais inocentes viagens agravavam
a dor de ter um corpo um sabre herdado
sobre o monte de livros de roupas e de súplicas
 
Na fotografia com um grande sol prateado
e um caminho de cartão que depois nunca percorrera
o pai estava à sua frente e não se via
a inclinação ténue dos seus olhos
 
Agora os filmes e os remorsos ocupavam-lhe as tardes
comboios errados em que propositadamente se metia
para fugir não da sombra mas da luz calma da luz pura
 
 
 
josé tolentino mendonça
longe não sabia
presença
1997
 



03 junho 2022

luís miguel nava / ainda às vezes

 
 
Avanço devagar, vão-se os amigos na ressaca
de cujo amor avanço assim deixando
ficar contudo aos poucos para trás, embora o mar
lhes sobre ainda às vezes do sorriso.
 
Procuro esses amigos. É possível
atar-lhes o horizonte entre o cabelo e acaricia-los
ainda uma vez mais. fazer-lhes através
das mãos passar o sopro das pedreiras.
 
 
 
luís miguel nava
onde à nudez
poesia completa (1979-1994)
publicações dom quixote
2002
 



02 junho 2022

jabra ibrahim jabra / caçadores numa rua estreita

 
 
 
Nós, filhos do deserto, não precisamos de eufemismos. Chamamos a uma pá uma pá… as nossas histórias são histórias de pessoas verdadeiras e acontecimentos verídicos. Não temos que os registar em livros, mantemo-los vivos através da palavra, de boca em boca. Somos a nossa própria obra de arte, e o resto não importa. Conheces a história do beduíno que uma vez quis fazer uma estátua? Ele queria fazer uma estátua em honra de uma mulher falecida que ele amava, mas não tinha materiais para trabalhar. O que tinha era uma grande quantidade de tâmaras. Por isso fez a estátua com tâmaras. Na manhã seguinte, estava com tanta fome que comeu a estátua. E fez bem.
 
 
 
jabra ibrahim jabra
um árabe é um árabe/é um árabe, um árabe
breve antologia de poesia árabe
versões e traduções joana santos e andré simões
contracapa
2022




 
 

01 junho 2022

juan manuel bonet / chuva de junho

 
 
Chuva de junho sobre as acácias,
sobre a dor de que não estejas
aqui nesta cama comigo,
sobre o céu mais cor de chumbo
que de neve. Chuva de junho, que
fica tão bem num poema,
mas na vida não.
 
 
 
juan manuel bonet
poesia espanhola de agora volume I
trad. de joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997




31 maio 2022

egito gonçalves / engarrafamento

 
 
O dia está triste,
Perséfona deve ter sido hoje forçada por Vulcano.
O inverno derrama-se na cidade
como se tivéssemos de pagar
os problemas do Inferno. Os automóveis
engarrafam o trânsito
de Santa Catarina – a rua,
não a santa
que dos gemidos de Perséfona não entende –.
Sejamos pacientes. Saboreemos
Este momento em que os motores em ralenti
Aguardam o orgasmo dos deuses.
 
 
 
egito gonçalves
o esperado fim do mundo já partiu
uma antologia
língua morta
2020




 

30 maio 2022

josé carlos barros / lídia

 
 
 
Melhor do que o amor é estar aqui sentado
de coração leve, e não ter segredo nenhum
para contar,
e não recordar da vida
mais do que a diluída imagem
de alguns pássaros
voando à procura do outro lado do rio.
 
 
 
josé carlos barros
estação
on y va
2020



29 maio 2022

antónio osório / andorinhas

 
 
À vacaria os dois casais voltaram.
Os ninhos junto da lanterna,
arca da sua aliança,
e armadilha, rede de aranhas.
As vacas levantam os olhos
e o calor do corpo, da bosta
comunicam, cifrada mensagem
para outros seres, próximos,
também por elas e pela luz gerados.
 
 
 
antónio osório
a ignorância da morte
editorial presença
1982




 

28 maio 2022

ernesto sampaio / famílias russas

 
 
A neve cobre com um velho xaile
a nova ideia do belo
das famílias russas
 
Electrificadas
perderam-se da aldeia
aos setenta anos
 
De joelhos no ar
volvem os olhos para o céu
discutida panaceia farmacológica
 
Com um apetite imperturbável
avançam iluminadas
para a noite sem limites
 
 
 
ernesto sampaio
feriados nacionais
fenda
1999




27 maio 2022

dick davis / ibn battuta

 
 
Perto do princípio da sua primeira viagem
O grande viajante (que havia de sofrer
Naufrágio, a perda de todos os bens, dos escravos
– De quem tanto gostava – e do filho; que havia
De enfrentar piratas, salteadores, ser gasalhado
Por príncipes como um igual e ser alvo de escárnio
Como um pedinte; que havia de ver o conhecido
Mundo e suas maravilhas) perto do princípio
Da sua primeira viagem diz-nos ele como,
Companheiro duma caravana de viandantes,
Chegou a uma cidade e como a multidão
De gentes amigas e de parentes saiu dela
A dar-lhes as boas vindas, cada homem saudado
Por um rosto que conhecia, à excepção dele,
Ibn Battuta, a ele ninguém o saudava
Visto que lá ele era um estrangeiro, e como
Chorou.
           Quando se fecha o livro este retrato
De um homem com cerca de vinte anos a chorar
– E não os príncipes, os escravos e os naufrágios –
É o que fica comigo
                            quase que sentes
Através dos séculos a compressão dos
Teus dedos de encontro ao seu braço e escutas
A tua voz erguer-se para saudá-lo.
 
 
 
dick davis
trinta e dois poemas
trad. joaquim manuel magalhães
as escadas não têm degraus – 2
livros cotovia
1990